Impunidade Corporativa: Estratégias de Luta (Parte III)

jpg_montajeO padrão repete-se. O dono da bola é quem dita as regras do jogo. E quando os outros não querem aceitar as suas regras, ameaça ir-se embora com a bola.

Bem, a história já se cansou de nos provar que, enquanto as decisões forem tomadas por algumas (curiosamente as mesmas) minorias, as “maiorias” vão continuar a arcar com as despesas e consequências dessas decisões. Por outras palavras, enquanto a irresponsabilidade for um privilégio de alguns, a impunidade será o karma de muitos.

Parece-nos mais do que óbvio que não podem ser as empresas Vale e BHP Billiton a propor e administrar os programas de reparação dos danos causados pelo enorme crime ambiental cometido pela sua “filha” inconsequente, a Samarco. Parece-nos igualmente óbvio que não pode ser a Monsanto a influenciar as decisões em relação à protecção das sementes nativas; nem uma empresa de agronegócio a desenhar um projecto de agroecologia numa qualquer comunidade rural. Parece tudo tão óbvio, que nem deveria ser preciso lembrar. Mas é.

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Se não fosse preciso lembrar, não teríamos ministros do meio ambiente a validar licenças de impacto ambiental das suas próprias empresas. Se não fosse preciso lembrar, não teríamos tribunais internacionais ou mecanismos de resolução de lítigios investidor vs. Estado onde a deliberação cabe a juristas conhecidamente do seio desses investidores. Se não fosse preciso lembrar que não cabe ao réu definir a sua própria sentença, também não teríamos organizações que representam o interesse privado a apresentar as suas demandas ao Grupo de Trabalho Intergovernamental (GTI) da ONU cujo mandato é elaborar um tratado para regular as empresas Transnacionais.

Mas não só é preciso lembrar, como é urgente tomar medidas para impedir a captura corporativa de espaços e entidades que se propõem a responsabilizar agressores e impedir que os crimes aconteçam na impunidade. A postura e o discurso da União Europeia durante a terceira sessão deste GTI, no fim do mês passado, serviu também para nos mostrar quão atentos devemos estar a hipocrisias ideológicas. Quando falamos de Direitos Humanos, todos os Estados parecem estar mais do que empenhados para os proteger. Os discursos assemelham-se e as promessas amontoam-se, mas quando chega a hora de fazer avançar um instrumento que realmente poderá oferecer um contrapeso ao excessivo poder e liberdade das grandes corporações, algumas máscaras começam a cair. Afinal, responsabilizar criminosos que sempre contaram com um tal de “ambiente favorável a negócios” não parece ser algo que a União Europeia esteja assim tão disposta a fazer.

Um processo de tomada de decisões, para ser democrático, tem de ser participativo e inclusivo. A mudança social no sentido de colocar os Direitos Humanos acima dos interesses privados do lucro não só partiu como está a ser impulsionada pelas vítimas das violações corporativas. São os testemunhos e as lutas destas pessoas, organizadas e mobilizadas para exigir o fim da impunidade, que têm sido o coração e a alma da proposta de Tratado elaborada pela Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo. Este documento, cuidadosamente preparado por activistas, académicos, advogados e vítimas de violações de Direitos Humanos e submetido ao GTI, é resultado de um processo de consultas amplo e colaborativo e portanto traz as soluções consideradas mais eficientes por aqueles que mais anseiam pela justiça, como a criação de um Tribunal Internacional para julgar os crimes das corporações transnacionais.

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Felizmente, a verdade é que mesmo com os atrasos e tentativas de sabotagem da União Europeia e de alguns Estados, a sessão deste ano levou-nos um passo adiante em direcção ao Tratado. As mais de 200 organizações da sociedade civil presentes, de mais de 80 países, não teriam aceitado outro desfecho. No fim da semana, o Presidente do GTI Guillaume Long, do Equador, aprovou consensualmente o avanço do processo rumo à quarta sessão, que deverá acontecer em Outubro de 2018 e contará já com um draft do Tratado.

Mas o Tratado da ONU não é o único caminho que temos para combater a supremacia do lucro sobre todas as outras esferas da vida. A JA, bem como grande parte das OSCs que fazem parte da Campanha Global, tem em curso, a nível nacional, processos legais contra empresas transnacionais que actuam inconsequentemente; processos de formação e capacitação de comunidades afectadas e de OSCs – que desempenham um papel crucial na consciencialização e mobilização dos povos para a exigência dos seus direitos; bem como a criação de alianças entre organizações e comunidades, local e internacionalmente. Além disso, estamos também empenhados na construção de alternativas práticas, colectivas e de pequena escala ao modelo global de desenvolvimento que está na base desta lógica da impunidade. De projectos de gestão comunitária de recursos naturais a escolas de activismo, as oportunidades são infindáveis.

A nível do que tem sido feito numa escala mais regional, a Campanha da África Austral para Desmantelar o Poder Corporativo tem se focado no Direito a dizer que NÃO, uma campanha lançada após a segunda sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) da África Austral, em Agosto deste ano, para ressaltar o papel das comunidades locais na aprovação (ou não) de projectos de investimento nas suas terras. Este trabalho enquadra-se na problemática da pilhagem desenfreada dos recursos naturais de África por parte de corporações estrangeiras e nacionais mascarada pelos chamados projectos de “desenvolvimento” e do fenómeno de usurpação de terras que tem afectado o continente de forma particularmente preocupante.

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O Direito a dizer que NÃO parte do direito substantivo dos povos ao consentimento livre, prévio e informado (CLPI), um princípio protegido pelas leis internacionais de Direitos Humanos em que as comunidades têm o direito de dar o seu consentimento a projectos que afectem as suas terras, recursos ou meios de vida. Para que este direito se materialize, a decisão da comunidade deve ser tomada sem qualquer tipo de obrigação ou coerção e toda a informação sobre o projecto deve ser apresentada de forma clara e compreensível para que a comunidade compreenda a natureza e o escopo do projecto, bem como os seus possíveis impactos ambientais, sociais, económicos e culturais. Este direito ao CLPI põe a decisão do desenvolvimento nas mãos da comunidade local, e não deve ser visto como uma mera consulta pública. Significa, na verdade, que a comunidade tem o Direito a dizer que NÃO a qualquer projecto no seu território, e também o direito de propor e sugerir projectos alternativos de desenvolvimento.

O Direito a dizer que NÃO é fundamental para o momento que vivemos globalmente, mas principalmente a nível do continente Africano. Ameaçado por sérias crises ambientais, climáticas e sociais, colocar a negociação do futuro de África nas mãos das comunidades é, não só, garantir que as opções escolhidas representam as suas prioridades e necessidades mais urgentes, como é também mais um passo dado na direcção da soberania dos povos Africanos. Conforme deliberação do painel de jurados da sessão de Agosto do TPP da África Austral, “a reafirmação constante ‘NÃO sem o nosso consentimento’ demonstra um desenvolvimento que parte do povo, que não acontece contra ou em prejuízo da natureza mas sim por meio de uma rede holística, conectada e inter-relacionada entre o planeta e todos os seus habitantes, onde todos os povos se podem mover livremente, sem qualquer perseguição ou preconceito.”

O Direito a dizer que NÃO representa, portanto, a luta contra um capitalismo neoliberal imposto pelos países do Norte Global, a luta contra a hegemonia do lucro e do interesse privado sobre a vida, a luta das mulheres pelo controlo das suas vidas e dos seus corpos, a luta dos povos rurais pela defesa dos seus meios de vida, a luta contra o extractivismo e as energias sujas que são um retrocesso nos nossos esforços globais para alcançar a justiça climática, a luta contra o neocolonialismo e o imperialismo. É uma luta por soberania e pelo protagonismo na tomada de decisões, que devem ser tomadas, acima de tudo, por aqueles que vão ser mais afectados por elas. Para nós, Africanos, representa ainda uma reapropriação do direito de decidir o nosso futuro, direito que, há séculos, nos tem vindo a ser negado.

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