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Encurralados – Como quebrar uma comunidade que resiste?

O caso de Quitupo

O caso de Quitupo

Localizada no distrito de Palma, na província nortenha de Cabo Delgado, a aldeia de Quitupo é uma das 63 aldeias do distrito1. Em 2010, com a descoberta de quantidades comerciáveis de gás natural na Bacia do Rovuma a aldeia de Quitupo passou a fazer parte das comunidades afectadas pelo projecto da fábrica de liquefacção do gás natural, a ser construída pela Total em Palma. Na fase inicial do projecto, as consultas públicas em Quitupo foram das mais acesas que já se viram na história dos megaprojectos em Moçambique. A comunidade de Quitupo não facilitou a vida aos investidores do gás.

Na época, decorria o ano de 2013, o processo estava nas mãos da Anadarko, que encontrou uma população minimamente informada sobre os seus direitos, e que vezes sem conta abandonava os encontros com a empresa quando não encontrava respostas satisfatórias às suas preocupações.

A comunidade confrontava a empresa, bem como ao governo, sobre a autenticidade das actas das consultas comunitárias que facilitaram o processo de aquisição do DUAT da Anadarko na ordem dos 7 mil hectares. A comunidade de Quitupo chegou a solicitar apoio técnico e assessoria jurídica de emergência a organizações da sociedade civil como ao Centro Terra Viva (CTV) e ao Iniciativa para Terras Comunitárias (ITC) com as quais já vinham trabalhando no âmbito de capacitação legal. Os chefes das aldeias não reconheceram as assinaturas das supostas actas das consultas comunitárias2 e reivindicaram que assinaram uma lista de presenças de uma reunião em que foram convocados simplesmente para informá-los de que investidores estavam interessados em trabalhar no distrito, oferecer emprego e desenvolver as comunidades.

Cerca de 7 mil hectares foram cedidos ao projecto sem o conhecimento e consentimento das comunidades. Claramente o processo foi cravado de irregularidades e ilegalidades gritantes que deviam envergonhar o governo que muito se esforçou para evitar que tais irregularidades sejam tornadas públicas. As organizações da sociedade civil envolvidas no processo foram apelidadas de contra o desenvolvimento entre outros adjectivos nada abonatórios3. Numa clara tentativa de desacreditar e desmerecer o excelente trabalho que foi feito em prol das comunidades.

Numa tentativa desesperada de provar que o processo decorreu dentro de trâmites legais o então Ministério para a coordenação da acção ambiental (MICOA), através da Direcção Nacional de Avaliação de Impacto Ambiental (DNAIA) entidade responsável por emitir as licenças ambientais, chegou a participar de um encontro provavelmente organizado por sugestão da consultora ambiental responsável por produzir o estudo de impacto ambiental, onde foram convidadas as organizações da sociedade civil e demais interessados a estar nesta reunião que teve lugar em um dos hotéis de luxo da cidade de Maputo. Numa clara tentativa de provar transparência do projecto, as OSC’s foram chamadas para que todas as questões que colocavam fossem esclarecidas, mas ainda assim não foi possível esclarecer em que condições foi atribuído o DUAT sem que a licença ambiental tenha sido tramitada, desta reunião ficou claro que o processo não cumpriu com etapas legalmente estabelecidas. A dada altura não se conseguia distinguir na reunião quem pertencia ao governo e quem pertencia à empresa, dada a necessidade de ambas as partes justificarem e fundamentarem as violações às leis aprovadas e reconhecidas pelo próprio governo.

Durante as consultas em Quitupo, os mapas apresentados pela Total eram completamente rejeitados pelas comunidades. As pessoas diziam que os mapas pouco lhes importavam porque não os sabiam ler, queriam era que lhes mostrassem no terreno os limites do projecto4. A população não se deixava intimidar pelas botas e pelos óculos escuros das equipas técnicas da Anadarko, e nem pelas falas do então administrador do distrito, nem mesmo pelos discursos elaborados dos directores provinciais do ambiente e dos recursos minerais. Estes últimos, tiveram que participar nos encontros para tentar apaziguar os ânimos das comunidades. Nada disto conseguiu convencer a comunidade de Quitupo que precisavam de transferir os seus cemitérios, perder as suas áreas de pesca e de agricultura para priorizar a exploração de gás natural.

Este processo mostrou a força de uma comunidade unida e consciente dos seus direitos, e que exigia negociar nos seus próprios termos. Lamentavelmente, às nossas comunidades nunca lhes é dada a oportunidade de dizer NÃO, é lhes incutido desde cedo que se o governo quer o governo faz, e que se o governo é o nosso pai a ele devemos respeito mesmo que isso signifique passar por cima do respeito que também merecemos. Por outro lado, é-lhes impingido o sentimento de eterna vassalagem a quem nos libertou do colonialismo, daí que não se deve questionar as decisões tomadas e somente aceitá-las. No entanto, a razão pela qual toda esta situação ficou ultrapassada foi quando se decidiu de forma astuta criar os famosos ‘‘comités de reassentamento’’, os grupos que iriam representar os interesses das comunidades nos encontros com o projecto, e desta forma evitar as “confusões” que se viam nas reuniões iniciais. Estes comités eram inicialmente compostos por pessoas influentes e respeitadas pelas comunidades e tinha o papel de mediadores dos processos de assinatura de acordos entre os membros das comunidades e a empresa.

A verdade é que a ideia de criação destes comités veio acompanhada por uma subtil gentileza de pagar um subsídio aos membros das referidos comités, a módica (para pessoas que vivem no limiar da pobreza) quantia de 7 mil meticais mensais, pagos pela Anadarko. Rapidamente, muitas das preocupações apresentadas pelas comunidades nas reuniões iniciais deixaram de ser preocupação, sem que nunca tenham sido devidamente acauteladas.

Estes comités após receberem alguns subsídios da empresa, começaram a deixar de representar de facto os interesses das comunidades, um dos primeiros passos foi a exclusão dos membros do comité que não deixavam de colocar questões consideradas do passado, especialmente as relacionadas com a apresentação das actas de consulta comunitária para aquisição de DUAT, novas áreas de pesca e de transferência dos túmulos.

Para além da exclusão de pessoas do comité que não se deixavam manipular, começaram a surgir denúncias sobre a inoperância dos comités diante das inúmeras reclamações apresentadas pelos afectados económica e fisicamente. Especialmente se existiam querelas internas típicas de pequenos vilarejos, algumas pessoas nem sequer se dirigiam aos comités porque sentiam que se tem problemas pessoais com um dos membros do comité o seu assunto nem sequer avançava até a empresa para que possam ser utilizados os canais disponibilizados para a apresentação de reclamações e reposição de direitos que muitas vezes se comprovava necessário .

A Justiça Ambiental espantada com o número de casos de reclamações que o nosso ponto focal recebia chegou a tentar contactar o comité, em Agosto de 2019 para perceber melhor o que se passa. Nos espantamos que para receber uma organização da sociedade civil o comité tenha solicitado a apresentação de uma credencial do governo e que devíamos estar acompanhados por um membro do governo e nesse momento percebemos que estes comités não mais estavam ao serviço do povo que os indicou para representá-los, o que para o povo moçambicano, infelizmente não mais se trata de uma novidade.

De maneira pouco clara, e a moda moçambicana foram abafados os comentários sobre a legalidade das actas das consultas comunitárias que facilitaram a cedência de terra a multinacional americana. O projecto avançou, no processo de reassentamento iam sendo tomadas todas as medidas para que a transferência das famílias iniciasse dentro do planificado, quando em 2016 a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), requereu ao Tribunal Administrativo5, a declaração de nulidade do documento que foi emitido após as actividades do projecto terem iniciado.

Porém, mais uma vez o governo e as instituições que os representa sai em defesa do projecto6, o Tribunal administrativo aparentemente sem analisar a essência do requerimento, limitou-se a justificar que as comunidades estão satisfeitas com o reassentamento e com as compensações, sem no entanto, referir-se à ilegalidade do DUAT.

O projecto original da Anadarko, hoje pertencente à Total, previa o reassentamento de cerca de 733 famílias de Quitupo. O processo de reassentamento das comunidades arrancou em Julho de 2019 onde os primeiros reassentados foram os habitantes da aldeia de Milamba. As 33 famílias daquela aldeia foram as primeiras a receber as casas construídas pela Anadarko. O processo de reassentamento em Quitupo arrancou em Março de 2020, mas apenas 161 famílias da comunidade foram reassentadas, tendo a maioria permanecido na aldeia aguardando pela sua vez. Enquanto decorria o processo de reassentamento, começou a ser erguida uma cerca nos supostos limites da área da fábrica, deixando a comunidade de Quitupo encurralada e sem permissão para desenvolver actividades de agricultura e pesca dentro da área com a cerca. A comunidade neste momento é obrigada a ter que sair dos limites da cerca para procurar alternativas a sua sobrevivência em áreas onde lhes seja permitido fazer machambas ou para pescar em Senga, Maganja, Monjane, Macala e Palma sede.

Questionados sobre a necessidade de apoio as comunidades que permanecem em Quitupo sem meios de subsistência e sem apoio da empresa enquanto esperam o dia do seu reassentamento a equipa da Total respondeu que não havia muito a ser feito e que não estão a dar nenhum apoio e nem permitem que sejam usadas a terra dentro da cerca para evitar conflitos futuros com as comunidades pois receiam que a qualquer momento as actividades retomem e se as famílias tiverem culturas nas machambas irão exigir compensação pela perda, enquanto que os processos de compensação já foram feitos em Quitupo e as pessoas já tinham sido compensadas pelas suas perdas, inclusive mostraram-se abertos a receberem propostas para solucionar o problema que reconhecem que a comunidade esta a ter que enfrentar com a construção desta cerca.

A construção desta cerca despertou muita preocupação por parte das comunidades, que aos poucos viam o seu maior receio concretizar-se: a perda total das suas terras.

No entanto, após o ataque em Palma no dia 24 de Março de 2021, a empresa Total que lidera o consórcio Mozambique LNG suspendeu as suas actividades emitindo uma declaração de força maior, suspendendo assim também o processo de reassentamento em curso. Esta paralisação colocou pelo menos 572 famílias da comunidade de Quitupo a viverem cercadas e encurraladas dentro da sua própria aldeia. Estas famílias para além de perderem as suas terras, ainda não receberam as prometidas terras de compensação, aliás, está claro que o grande calcanhar de Aquiles dos megaprojectos em Moçambique são as terras de compensação para as machambas e a gigante Total também está sem muito espaço de manobra para garantir terras às comunidades reassentadas. As poucas que conseguiram terra de compensação em Senga e em Macala, estão em conflito com as comunidades hospedeiras que queixam-se de irregularidades no processo de compensações. As famílias que permanecem em Quitupo vivem um cenário de total incerteza, uma vez que nem casa sabem se irão receber dado que parte das casas ainda estão em fase de construção, e nas actuais casas sentem-se limitados de fazer melhorias desde que foi declarada a moratória em 2017.

A Total declarou Força Maior7 na sequência dos ataques ocorridos em Palma no pretérito dia 24 de Março de 2021, que supõe a ocorrência de eventos não previstos. Apesar de nos parecer um pouco simplista a explicação do ataque a vila de Palma ser considerado imprevisível, numa região onde já ocorrem ataques há 5 anos, onde um dos ataques ocorreu em 2019 a mais ou menos 7km do acampamento da Total. O facto é que declarada a força maior foram suspensas as actividades em Palma, o que inclui o processo de reassentamento e enquanto a Total decide se é ou não seguro voltar para Afungi, as famílias de Quitupo e outras famílias já reassentadas na Vila de Quitunda em situação semelhante, sem terra, sem compensação (especialmente devido a situações de reclamações) e sem apoio, não têm opção senão buscar outras formas de sobreviver e de garantir uma alimentação adequada para as suas famílias, sem falarmos do cenário de constante insegurança em que vivem.

Após mais de 2 anos desde que perderam as suas terras, e mais de 1 ano desde que passaram a viver cercadas, as famílias da comunidade de Quitupo não viram nem vêem os alegados benefícios dos projectos de exploração de gás em Cabo Delgado. As suas desconfianças e resistência tinham razão de ser, e apesar da sua união e coragem, ainda assim foram encurraladas por um modelo de desenvolvimento que despreza os direitos e vontades do povo, e abre a porta escancarada para as grandes empresas transnacionais.

Foto do EIA

1https://www.cabodelgado.gov.mz/por/Ver-Meu-Distrito/Distrito-de-Palma/O-Distrito/Divisao-administrativa

2https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2013/09/comunidade-reage-mal-na-consulta-p%C3%BAblica-de-projeto-da-anadarko-no-norte-de-mo%C3%A7ambique.html

3 https://verdade.co.mz/projecto-de-exploracao-de-gas-natural-em-palma-por-alda-salomao/

4 https://www.youtube.com/watch?v=aa1ry6tzKWA

5https://oam.org.mz/comunicado-de-imprensa-primeira-seccao-do-tribunal-administrativo-nega-julgar-o-merito-da-causa-sobre-a-declaracao-de-nulidade-do-duat-atribuido-a-exploracao-exclusiva-pela-anadarko-no-contexto-do/

6https://verdade.co.mz/governo-de-guebuza-atribuiu-duat-de-palma-ilegalmente-e-mais-de-dois-mil-mocambicanos-aguardam-pela-solucao-do-executivo-de-nyusi/

https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2018/12/anadarko-nega-viola%C3%A7%C3%A3o-da-lei-na-obten%C3%A7%C3%A3o-de-terra-para-projecto-de-g%C3%A1s-natural.html

7https://totalenergies.com/media/news/press-releases/total-declares-force-majeure-mozambique-lng-project