pelos Moçambicanos e Moçambicanas abaixo assinados.
CONTEXTUALIZAÇÃO
Nos dias 3 e 4 de Julho de 2018, mais de 80 pessoas em representação de diversas instituições governamentais e não-governamentais participaram numa sessão de formação e debate, em Maputo, com o objectivo de discutir o poder desregulado das corporações transnacionais e como a impunidade corporativa tem resultado em graves violações de direitos humanos por todo o planeta, particularmente em países do Sul Global. Convidados pela Justiça Ambiental (JA!) / Amigos da Terra Moçambique, os participantes tiveram a oportunidade de reflectir e debater os diferentes elementos que sustentam a desenfreada exploração dos recursos naturais e das pessoas.
O grupo envolveu-se em debates, abordando temas como a ineficácia de mecanismos não
vinculativos que pretendem garantir a protecção dos direitos humanos, as desiguais relações de poder entre os diferentes Estados e entre Estados e grandes corporações, bem
como a consequente perda de soberania e de independência nos processo de tomada de decisões por parte de alguns Estados, que se tornaram economicamente mais fracos que muitas companhias transnacionais. Tornou-se claro para muitos participantes que há uma urgente necessidade de repensar o nosso modelo de desenvolvimento e impôr padrões melhores e mais elevados a todo o investimento estrangeiro na região.
Um dos amplos temas abordados durante esta formação foi a arquitectura do comércio, e o importante papel desempenhado por Acordos de Livre Comércio e Investimentos em reforçar o poder das corporações transnacionais e limitar a capacidade dos Estados de regulá-las. Ficou evidente que estes acordos internacionais estão a ameaçar e a violar os pilares mais básicos da nossa democracia, e um esforço organizado deve ser posto em prática de forma a garantir que o nosso Governo se senta à mesa de negociações devidamente preparado, bem informado e comprometido a exigir a protecção e salvaguarda dos melhores interesses da sua população.
Foi com tudo isto em mente que, no final do primeiro dia desta sessão de formação e debate, os participantes apelaram à realização de uma acção específica para lidar com esta situação. Foi então colectivamente decidido que deveria ser enviada uma carta a todas as autoridades competentes Moçambicanas, exortando o nosso Estado a que reveja urgentemente todos os Tratados Bilaterais de Investimento dos quais Moçambique é signatário.
Sumariamente explanadas abaixo estão algumas das preocupações de indivíduos e organizações da sociedade civil Moçambicana.
O PERIGO DOS ACORDOS INTERNACIONAIS DE INVESTIMENTO e o que estes significam para um país como Moçambique
Um Acordo Internacional de Investimento (AII) é um compromisso entre dois ou mais Estados estabelecendo normas vinculativas em questões relacionadas com políticas de protecção e promoção de investimentos. Os AII mais conhecidos são os Tratados Bilaterais de Investimentos (TBI) e os capítulos de investimento contidos nos Acordos de Livre Comércio (ALC).
Existe uma preocupação crescente, por todo o mundo, em relação às concessões e compromissos a serem celebrados pelos ditos países menos desenvolvidos, numa busca por investimento estrangeiro. De indicadores financeiros e económicos a análises de risco, esta corrida para o fundo do poço tem vindo a obstruir a nossa capacidade de solucionar os principais desafios ambientais e sociais dos dias de hoje. A actual arquitectura de comércio promove uma exploração desregulada de recursos naturais e humanos e influencia todos os aspectos das nossas vidas – da gestão de resíduos à conservação da vida selvagem, da nutrição às energias sujas – e portanto necessita de uma reforma urgente.
Uma das cláusulas mais controversas que existe na maioria dos AII é o ISDS (resolução de litígio investidor-Estado). Diz respeito a um mecanismo obscuro para resolver litígios entre Estados e investidores por meio de um tribunal internacional de arbitragem que frequentemente está alinhado aos interesses do capital privado. O ISDS tem possibilitado que companhias privadas contestem decisões e políticas de Governo pelas alterações na legislação nacional que possam vir a afectar os lucros projectados da empresa – muitas vezes em sigilo absoluto, uma vez que a maioria dos AII permite uma arbitragem totalmente confidencial. Isto tem resultado em Estados condenados a pagar bilhões de dólares Norteamericanos de multas a grandes corporações, enquanto vêem restringidos os seus esforços de avançar leis que protegem o meio ambiente e as pessoas.
Mais de metade de todos os casos de ISDS conhecidos foram iniciados contra países em desenvolvimento e países em transição – justo os países que estão mais dispostos a apresentar um ambiente interno que seja considerado “favorável ao negócio”. O Governo do México, por exemplo, foi processado pela companhia Norte-americana de gestão de resíduos Metalclad Corporation e recebeu uma sanção de USD 16 milhões por proibir uma lixeira de resíduos tóxicos.
E não só é o ISDS uma ameaça à democracia, como pode também ser uma enorme despesa pública, ao conceder a corporações quantias absurdas de dinheiro de contribuintes para pagar astronómicas despesas legais, para não mencionar as sentenças. Por todas estas razões e mais, existe uma visível e crescente sensibilização e oposição ao ISDS, e vários países estão a re-desenhar os seus modelos de tratados para que não contenham este tipo de direitos corporativos extremos.
Até onde conseguimos apurar, Moçambique conta actualmente com 20 Tratados Bilaterais de Investimento em vigor. Alguns destes terminarão o seu primeiro termo em Setembro de 2019, no próximo ano. Tanto o tratado com a Holanda como o tratado com a BLEU (União Económica Belgo-Luxemburguesa) serão automaticamente renovados por mais 10 anos se nenhuma das partes decidir terminá-los respeitando o aviso prévio de 6 meses. Ambos TBI contém cláusulas de ISDS.
A IMPORTÂNCIA DE REFORMAR as leis e regulações do investimento internacional
Com o poder vem a responsabilidade? Não necessariamente. O actual quadro legal de comércio e investimentos é incapaz de assegurar um equilíbrio de direitos e responsabilidades entre os investidores estrangeiros e os Estados. Estes Acordos Internacionais de Investimento transferem um enorme poder para as corporações transnacionais, e estas entidades guiadas pelo princípio do lucro privado nem precisam de se preocupar com responsabilidades correspondentes.
Talvez a maior ironia de todas seja que os AII são celebrados entre os Estados com a intenção de atrair investimento e impulsionar a economia – mas não só esta premissa tem se provado errada, como estes acordos acabam por resultar, frequentemente, num enorme encargo financeiro para o país receptor do investimento estrangeiro. Outra ironia é que estas cláusulas que protegem os investidores são bastante selectivas. Se uma corporação transnacional baseada na Holanda, por exemplo, considera que o Governo de Moçambique alterou a legislação do país de uma forma que possa reduzir os seus resultados financeiros projectados, ela poderá fazer uso do mecanismo de ISDS para abrir um processo num tribunal internacional de arbitragem e, provavelmente, lucrar com isso. Se, por outro lado, um produtor e revendedor Moçambicano for vítima de violação dos seus direitos por parte das entidades Governamentais, apenas poderá apresentar o seu caso perante tribunais nacionais, não internacionais.
No que diz respeito a terminar Acordos de Investimento que não estejam alinhados com as necessidades e prioridades actuais do país, podemos encontrar inspiração em outros países Africanos. Depois de algumas más experiências, decisores políticos e especialistas em desenvolvimento da África do Sul consideraram que a primeira geração de TBI deste país favorecia desproporcionalmente os investidores estrangeiros, preocupando-se menos com a criação do equilíbrio sócio-económico almejado pelo país. Em seguida, o país iniciou uma revisão de todos os TBI em vigor, concebendo novos modelos de tratados que não continham uma cláusula de ISDS.
Recentemente, a ONG regional Africana Seatini, em conjunto com o seu parceiro Holandês Both Ends, elaborou uma análise técnica exaustiva do TBI entre Uganda e Holanda, chamando a atenção para os seus potenciais impactos negativos. O Governo do Uganda optou mesmo por terminar este TBI, uma decisão aceite pela parte Holandesa, e estão agora a discutir um novo tratado.
O recém terminado TBI entre Uganda e Holanda é semelhante a muitos outros TBI entre países Africanos e Europeus. É praticamente idêntico ao TBI em vigor entre Moçambique e Holanda, que cumpre o seu primeiro termo em Setembro de 2019 – a pouco mais de 10 meses de hoje. Conforme previsto pelo Artigo 14 deste TBI, as partes signatárias devem dar um aviso prévio de seis meses antes da data de término para poder efectivamente interrompê-lo. Isto significa que temos aqui uma janela de oportunidade para negociar as condições do actual TBI entre Moçambique e Holanda, se devidamente manifestado até Março de 2019, e formular um novo acordo que respeite os direitos humanos e o meio ambiente. Não o fazendo, caso Moçambique decida ignorar este importante prazo, ficaremos de mãos atadas por mais uma década, enquanto temos motivos suficientes para estar preocupados com os potenciais impactos negativos deste Tratado tal qual se encontra hoje.
À medida que o criticismo em relação a AII perigosos e anti-democráticos continua a aumentar, cada vez mais Governos procuram uma saída, seja terminando ou renegociando acordos. Acreditamos que este processo, embora não seja simples, é fundamental para o estabelecimento de uma arquitectura de comércio e investimentos diferente e que não esteja ancorada na exploração desumana das populações do Sul Global nem na destruição do meio ambiente.
Assim sendo:
Os indivíduos e organizações Moçambicanas abaixo assinados apelam ao Estado Moçambicano, por meio de todos os seus ministérios competentes para os quais esta carta é endereçada, a analisar e rever ou terminar todos os seus Tratados Bilaterais de Investimento e Acordos de Livre Comércio em vigor, com particular atenção para os TBI prestes a atingir o fim do seu primeiro termo – como o TBI entre Moçambique e Holanda e o TBI entre Moçambique e BLEU, ambos a terminar no próximo ano (2019). Ao manifestarmos interesse em re-negociar as condições destes acordos, teremos a oportunidade de posicionar os direitos humanos e o meio ambiente correctamente acima dos interesses corporativos, e seleccionar cuidadosamente as condições e limitações pelos quais os investimentos estrangeiros terão de ser regulados em Moçambique.
A JA! / Amigos da Terra Moçambique, enquanto organização a coordenar esta petição, bem como diversas outras que a apoiam, gostaria de manifestar a sua disponibilidade para contribuir com análises aprofundadas e discussão em torno dos conteúdos para o processo de revisão dos Acordos de Livre Comércio e Acordos Internacionais de Investimento actualmente em vigor em Moçambique. Consideramos que as organizações e indivíduos da sociedade civil devem ser consultados para que contribuam para o processo de estabelecimento dos termos de referência para avaliar e analisar os custos e benefícios desses acordos, e a nossa diversidade de experiência e conhecimento deve ajudar a definir e moldar o modelo de investimento que buscamos, enquanto país.
Esta Carta Aberta reuniu assinaturas de 62 Moçambicanos e Moçambicanas e 6 Organizações da Sociedade Civil Moçambicana. Foi entregue no passado dia 22 de Novembro às seguintes repartições públicas: Ministério da Terra e Desenvolvimento Rural, Ministério da Indústria e Comércio, Ministério da Justiça, Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Procuradoria da Cidade de Maputo, Procuradoria-Geral da República, Gabinete do Provedor de Justiça e Comissão Nacional de Direitos Humanos.