“– O Moçambique que eu sonhei na minha juventude, sei que não vou viver para ver – disse o cota a título de conclusão. Cansado. Desiludido. Resignado.
E aquilo mexeu comigo. Queria poder discordar e dizer-lhe que estava errado. Dizer-lhe que não se preocupasse, que esse Moçambique por certo materializar-se-ia nos próximos anos e que, com alguma sorte, ainda viveria para testemunhá-lo. Mas sabia que ele tinha razão. Tinha e tem.”
As declarações de Sua Excelência o Presidente da República de Moçambique em Londres, no final da semana passada, não podem cair em saco roto. Não podem de maneira alguma ser encaradas pelos moçambicanos com a mesma leviandade com que foram ditas. Não podem.
Ao declarar que o pagamento das outrora ocultas dívidas do país deveria ser repartido com os credores, justificando-o dizendo que estes deveriam saber que Moçambique sendo um país pobre não poderia jamais honrar as obrigações acordadas, o Chefe de Estado – por sinal figura instrumental na contração da famigerada dívida enquanto ministro do anterior executivo – passou ao mundo uma imagem indecorosa de Moçambique e dos Moçambicanos, que julgamos ser matéria para uma séria reflexão.
Na nossa qualidade de organização da sociedade civil, apelamos apenas a que ninguém fique indiferente. Interprete como bem entender, mas reflita seriamente sobre o que Sua Excelência disse. Ele falava por si. Ele falava de si. E quem cala consente.
Posto isto, e porque somos também moçambicanos e temos princípios e dignidade e o direito de defender o nosso bom nome, não poderíamos – para mais dada a caótica situação em que o país se encontra – deixar de manifestar o nosso total repúdio pelas declarações de Sua Excelência o Presidente da República e de tecer algumas considerações quanto a essas incautas declarações:
- Para começar, podemos até ser pobres, mas caloteiros não somos. Nós não. Não foi o “povo pobre de Moçambique” que contraiu essa dívida. A dívida, relembramos, foi ilicitamente contraída por uma elite política da qual, aliás, (apesar da posição de relevante responsabilidade que ocupava no executivo então) Sua Excelência o Presidente da República nunca teve o cuidado ou fez questão de se demarcar, e que devia estar a contas com a justiça mas não está. Essa conveniente omissão de Sua Excelência o Presidente da República foi gravíssima. “Nós não vamos atirar corda no pescoço porque as coisas aconteceram. O que temos que fazer é encarar um processo normal e trabalhar para que isso se resolva.” – disse o nosso Chefe de Estado. E é isso que está fundamentalmente errado. Não nos endividámos de forma “normal”. E normal seria que houvesse uma série de indivíduos metaforicamente com a corda ao pescoço, a contas com a Justiça. Mas não há, e a história diz-nos que é deveras improvável que alguma vez venha a haver.
- Como pôde Sua Excelência, dois anos volvidos do escândalo sem proferir sobre o tema qualquer esclarecimento ou apreciação em território nacional, ir fazê-lo em Londres? Será que os moçambicanos, que já estão a pagar a elevada factura da vossa “imprudência”, não mereciam de vós uma qualquer explicação cabal antes de qualquer outra pessoa?
- Apesar da inquestionável verdade das suas palavras a propósito da parcial responsabilidade das instituições que viabilizaram a contração da dívida, como teve Sua Excelência a coragem de rotular despudoradamente Moçambique e os Moçambicanos de vigaristas perante o mundo, para promover a vossa (e nossa) mais recente fuga para a frente? É esse o exemplo que um líder deve passar ao seu povo? Aos seus subordinados?
Haja integridade. Haja decência. Haja vergonha. Se é verdade irrefutável que o actual lamentável estado da nação só foi tornado possível pelo deficit de educação da nossa consequentemente ingénua, submissa e apolítica população, é verdade igualmente incontornável que a falta de uma adequada postura cívica da maioria dos ditos “educados” tem sido tão ou mais danosa – porque permissiva – do que a inação dos que não sabem melhor. Vamos exercer cidadania senhoras e senhores. Antes que seja tarde demais.
O Moçambique sonhado pela geração que nos libertou do jugo colonial e edificou a nossa revolução, perdeu-se nos bolsos há muito cheios dos nossos libertadores. Nos bolsos dos falsos socialistas que se fizeram porcos capitalistas. E o seu legado – o Moçambique de hoje – é um nó cego. Propositadamente cego. Um nó dado para perpetuar o seu reinado. É por isso que quando o povo puxa a corda porque quer justiça e responsabilização, ou porque quer uma diferente distribuição do poder e\ou da riqueza, ou pura e simplesmente porque quer que “a realeza” se comporte adequadamente, o nó aperta. Estrangula. Silencia. Oprime. Mata. E fá-lo tão desavergonhadamente quão trivialmente. Um terrífico nojo.
O sonho de um país livre e justo, gerido de forma transparente, aberta e participativa por moçambicanos capazes, rectos e responsáveis, postos no poder de forma verdadeiramente meritocrática, é uma miragem.
Há que mudar o sistema, há que exorcizar a entranhada crença tribal de que é legítimo que o governo faça e desfaça a seu bel-prazer, há que quebrar o ciclo perpétuo que coloca o poder nas mãos de homens mordazes, inescrupulosos, ambiciosos e oportunistas, ou de suas atadas honorárias marionetas. Há que parar a máquina do regime. Mas não a tiro. Não cremos nisso. A tiro trocam-se os regimes, não se os aniquila. E de que nos serviria outra guerra?
Concomitantemente, com eleições à porta, é importante que estejamos cientes que tampouco mera “mudança de gerência” trará, por si só, imediatamente ao país a justiça e idoneidade de que tanto necessita. Não trará. A mudança tem de começar dentro das nossas casas, das nossas empresas, das nossas escolas, das nossas universidades. A mudança tem de partir de nós. A juventude moçambicana, a quem logicamente cabe encabeçar essa mudança, não carece de coragem, carece de bons exemplos.
O país está um caos. O custo de vida está insuportável e a tendência é piorar. Tudo está cada vez mais caro. O combustível, a electricidade, a água, os bens de primeira necessidade… tudo. Não há dinheiro. Não há investimento sadio. A economia está parada. A liberdade de expressão continua a ser violentamente puxada de debaixo dos pés de quem mais sabiamente a usa. O povo vive num sufoco e o governo está-se pouco marimbando. Pior, desesperado para “biznar” gás, carvão, areias pesadas, pedras preciosas, terra para agronegócios titanescos, ou qualquer outro negócio miraculoso que possa ser usado para branquear a sua calamitosa governação, o executivo está cada vez menos criterioso e não se coibirá de travar com o primeiro trapaceiro a mostrar a cor do seu dinheiro, mais negócios lesivos para os moçambicanos mais vulneráveis. E enquanto, no conforto da nossa inércia, continuarmos a consentir alegremente que os nossos governantes nos humilhem para fugirem às suas responsabilidades, nada mudará.
É uma questão de postura caros compatriotas.