Decorreu em Tóquio, no Japão, de 20 a 22 de Novembro, a IV Conferência Triangular dos Povos de Moçambique, Brasil e Japão. À semelhança das conferências triangulares anteriores, o objectivo principal desta conferência era debater o modelo de desenvolvimento agrário que se pretende impor ao povo de Moçambique através do Programa Prosavana, que tem sido altamente contestado e mesmo assim os governos de Moçambique e do Japão pretendem implementar a qualquer custo; e ainda promover uma discussão ampla e aberta sobre os desafios e as necessidades do campesinato e como podemos juntos caminhar para a soberania alimentar.
O primeiro dia foi dedicado à troca de experiencias com os camponeses de uma quinta em Narita, Sanrizuka, onde os representantes da Campanha Não ao Prosavana de Moçambique e do Brasil ficaram alojados. Para além do intercâmbio cultural, visitamos a quinta e ouvimos a história de resistência que estas pessoas carregam. Este local é um dos poucos que ainda se mantém. Resiste até hoje devido à perseverança e determinação principalmente das pouco mais de 400 famílias camponesas que lutaram contra o projecto de construção do Aeroporto Internacional de Narita, por onde entrámos no Japão.
Tsuné San, de 72 anos de idade – actual proprietário da quinta, que é da sua família há várias gerações – contou-nos como na década de 60 o governo japonês decidiu construir um novo aeroporto internacional para atender às necessidades de um país em crescimento e à ambição de levar a cabo o maior projecto de obras públicas do Japão; como este foi, sem dúvida, o projecto público mais contestado de sempre; e como, até ao momento e com sucessivos atrasos, apenas um terço da obra projectada pelo plano diretor original foi executada. Tsuné San explicou que nem todos os afectados eram camponeses com pequenas propriedades. No local pretendido, viviam e produziam cerca de 400 famílias, e a maior área era uma área de pasto que pertencia à Casa Imperial. A Casa Imperial cedeu as terras ao Estado para que o aeroporto fosse construído, apesar de ter recebido uma petição dos camponeses a solicitar que não o fizesse. Para a Casa Imperial e para o Estado Japonês o aeroporto representava, para além de uma oportunidade económica, um marco importante na história de sucesso de reconstrução do Japão pós guerra. O estado japonês ignorou por completo os camponeses da área onde pretendia construir o aeroporto, assumindo que seria um processo simples de compra de terra dos camponeses. No entanto, os camponeses e as autoridades locais que foram excluídas do processo de elaboração do projecto, apenas tomaram conhecimento sobre o projecto quando este foi publicamente anunciado. Foi assim que teve início o movimento de resistência contra a construção do aeroporto. Um movimento que dura até aos dias de hoje. O projeto de construção do Aeroporto Internacional de Narita foi anunciado pelo governo japonês em 1966. Dada a resistência dos camponeses em ceder as suas terras e a actuação do governo, esta causa rapidamente se tornou numa causa nacional – com activistas, académicos e estudantes de vários pontos do país a juntarem-se ao movimento. A primeira grande expropriação de terras aconteceu em 1967 e a segunda em 1971. A primeira pista só foi concluída em 1978. O aeroporto foi construído sobre várias áreas agrícolas, e a mais famosa destas que se tornou o símbolo da resistência foi a vila de Sanrizuka. O plano de construção original, revelado em 1966, previa que o aeroporto tivesse duas pistas de 4 km, uma pista de 3,6 km e duas de 2,5 km, mas apenas a pista A de 4 km tinha sido concluída quando o aeroporto foi inaugurado em 1978. (O movimento de resistência conseguiu atrasar a abertura do aeroporto por 7 anos, pois a previsão era que fosse inaugurado em 1971.) Com 2,2 km de comprimento, somente em 2002 é que a pista B – inicialmente projectada com 4 km de comprimento – foi concluída. Mais tarde, em 2009, a pista foi ampliada para 2,5 km, mas a construção do resto das pistas foi adiada indefinidamente. Dentro e fora das instalações do aeroporto, ainda há duas casas particulares, uma fábrica de produtos agrícolas, um santuário xintoísta e quintas pertencentes a moradores locais que se opõem à expropriação forçada do aeroporto que começou há quase meio século.
Este movimento de resistência dura desde a década de 60. Houve confrontos entre os que protestaram a sua construção e a polícia, houve feridos e mortos em ambos lados, houve quem perdesse as suas casas e machambas, houve quem decidisse vender a sua terra ao aeroporto por acreditar que a iria perder, e houve ainda tentativas de negociação e promessas que ficaram por cumprir. E assim permanecem alguns, ainda a resistir…
Tal como Tsuné San, que deixou os estudos em Tóquio para defender a propriedade da sua família, vários foram os estudantes e activistas que se juntaram ao movimento e ali permaneceram. Houveram inúmeras tentativas de destruir o movimento. Houveram grupos que se afastaram e a dado momento se posicionaram a favor da construção do aeroporto. Ainda assim, houve quem continuasse… Hoje, esta quinta produz cerca de 60 variedades de vegetais de forma orgânica, tem alguns animais de pequeno porte (porcos e galinhas) e tem ainda alguns pequenos canteiros a arrendar para os residentes da cidade que querem fazer a sua horta – pois segundo os nossos anfitriões, há cada vez menos terra para cultivar no Japão e cada vez menos pessoas a interessar-se pelo campo. No entanto, percebemos que há igualmente muitos jovens interessados na vida no campo, e que, inclusive, deixam as cidades para trabalhar a terra.
Quantos dos cerca de 40 milhões de passageiros, dos cerca de 250.000 voos que passam por Narita cada ano, conhecem a história deste local?
E o que importa esta história nesta Campanha Não ao Prosavana?
Tal como no Prosavana, os principais afectados nunca tiveram oportunidade de discutir o projecto. Os seus protestos e argumentos nunca foram devidamente considerados. E nem um movimento social tão grande – considerado o maior movimento social no Japão – foi capaz levar o governo japonês a reconsiderar… Mas esta história ainda não terminou, pois o governo mantém vivo o plano de finalizar o aeroporto; espera apenas que o ciclo natural da vida leve embora os poucos que, como Tsuné San, ainda resistem e se mantêm firmes na resistência, há 52 anos! Entretanto, a história da imposição de mega projectos vai se repetindo vezes sem conta: Prodecer, Prosavana, Matopiba… Até quando?
Este foi apenas um dos vários momentos ricos que vivemos na IV Conferência Triangular dos Povos. Mostrou-nos como age o governo japonês com os seus próprios cidadãos para que saibamos que tipo de tratamento podemos nós esperar; mostrou-nos que acima do bem-estar do povo estão os interesses económicos; mostrou-nos que, enquanto o povo japonês prioriza a agricultura orgânica e o bem-estar dos povos, os governos insistem em importar modelos agrícolas falhados e assentes na economia de mercado, altamente dependentes de químicos poluentes, sabendo dos inúmeros e graves impactos sociais, ambientais e económicos que estes trazem!
Os vários encontros que se seguiram com algumas das principais instituições envolvidas no Prosavana – nomeadamente a Agência Japonesa para a Cooperação Internacional (JICA), o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão (MOFA), o Banco Japonês para Cooperação Internacional (JBIC), o Ministério das Finanças (MOF) e inúmeras organizações da sociedade civil japonesa – foram, de um modo geral, muito importantes para partilhar os argumentos da Campanha Não ao Prosavana e os fundamentos do nosso “Não” a este programa que a todo o custo nos impõem. Foi igualmente importante denunciar perante a comunicação social do Japão todos os actos de manipulação e divisão da sociedade civil que estas agências tem promovido ao insistir na implementação do Prosavana, e foi uma oportunidade única para pedir respostas a questões concretas que a Campanha tem vindo a colocar há anos e permanecem sem resposta. Como era de esperar, não obtivemos todas as respostas que queríamos, nem tão pouco obtivemos qualquer compromisso destes no sentido de abandonarem o Prosavana, mas conseguimos deixar claro que não vamos desistir.
Segundo a JICA, até ao momento foram gastos cerca de 6,7 milhões de dólares americanos na elaboração do Plano Director; no entanto, a agência não foi capaz de explicar exactamente em quê que foram gastos todos esses milhões. E porquê que ainda continuam a gastar sabendo que há uma forte oposição ao Prosavana?
Inúmeras outras questões, como por exemplo: Quem pagou a última reunião do mecanismo? Ou o que espera realmente o Japão como benefício deste programa (uma vez que a narrativa da ajuda já há muito que não serve)? – ficaram ainda por responder. Mas mais do que respostas às inúmeras questões que temos vindo a colocar, queremos que parem imediatamente com o Prosavana!