CARTA ao governo moçambicano sobre Mphanda Nkuwa

MN

NOTA: Esta carta é endereçada ao Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa, que segundo foi noticiado nos meios de comunicação nacionais foi criado por Decreto Ministerial em Fevereiro de 2019 e estaria sob alçada do Ministério dos Recursos Minerais e Energia (MIREME). No entanto, não conseguimos obter qualquer informação sobre onde ou a quem entregar esta carta, nem sequer no próprio MIREME. Assim sendo, a JA! entregou a carta apenas ao MIREME e ao MITADER (Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural).

Maputo, 14 de Março de 2019

A JUSTIÇA AMBIENTAL (JA!), uma organização da sociedade civil moçambicana de defesa do direito do ambiente e direitos sobre a terra das comunidades locais, vem por meio desta manifestar o seu total repúdio pela insistência do governo de Moçambique em procurar viabilizar e implementar o controverso projecto hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa, proposto para o Rio Zambeze, província de Tete. Abaixo apresentamos algumas das nossas preocupações sobre o referido projecto, destacando alguns dos seus potenciais impactos ambientais, climáticos, sociais e económicos.

Breve historial do projecto de Mphanda Nkuwa

Na década de 90 foi criada a UTIP (Unidade de Implementação de Projectos Hidroeléctricos) com o mandato de implementar a proposta do projecto Mphanda Nkuwa. Foram gastos milhares de dólares em estudos de viabilidade, avaliação de impacto ambiental entre vários outros estudos na sua maioria de fraca qualidade científica. Anos mais tarde e depois de milhares de dólares gastos, a UTIP foi dissolvida, sem que isso significasse que o povo Moçambicana estaria mais próximo de alcançar uma solução energética viável e sustentável.
Na década de 2000 foi estabelecido o consórcio de Mphanda Nkwua, em que a EDM detinha 20%, a Insitec 40% e a Camargo Corrêa 40%. Nesta fase, mais estudos foram elaborados, mais milhares de dólares foram desperdiçados. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) foi aprovado em 2011, com enormes e graves lacunas e sem resposta a muitas das nossas questões e preocupações levantadas na época. Também este consórcio foi dissolvido sem que o projecto avançasse.
Nos últimos dois anos, este projecto voltou a ser mencionado como prioridade do governo. Em seguimento disto, em Fevereiro de 2019, foi criado por Diploma Ministerial o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkwua. Em Março, foi lançado um concurso internacional para a selecção da empresa de consultoria que vai assistir o Executivo no desenho da estratégia da estruturação legal e financeira do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa. A consultoria inclui o sistema de transporte de energia e infra-estruturas associadas. Tudo indica que vamos assistir, uma vez mais, ao esbanjamento de milhares de dólares em intermináveis consultorias e estudos que na sua maioria permanecerão no segredo dos deuses.
Gostaríamos de saber do nosso governo quanto dinheiro foi investido neste projecto, desde a UTIP, passando pelo controverso e incompleto EIA, até ao momento actual? Quais são os resultados concretos dos milhares de dólares que já foram investidos ao longo dos últimos 19 anos?

Sobre os impactos ambientais, climáticos, sociais e económicos de mega-barragens, em particular sobre o Rio Zambeze

O projecto prevê que a Barragem de Mphanda Nkuwa seja construída a apenas 70km a jusante da Barragem de Cahora Bassa, o que poderá agravar os já tão graves impactos negativos das barragens existentes ao longo do Rio Zambeze.
Este projecto terá gravíssimos impactos sociais (em particular para as comunidades locais) e ambientais, sem que tenha uma possibilidade realista de trazer para o país os benefícios económicos apresentados pelos seus proponentes. O EIA aprovado em 2011 não considerava o risco de sismicidade induzida, não considerava o impacto das mudanças climáticas no caudal do rio (e a consequente redução da produção energética estimada) nem tampouco considerava o risco financeiro que o projecto representa. Por que razão o nosso governo continua a ignorar todos estes factos e lacunas?
O Rio Zambeze é o quarto maior rio de África, e estima-se que vivam nas suas margens cerca de 32 milhões de pessoas, das quais 80% dependem directamente do rio para a sua subsistência, através da prática da agricultura e pesca. No caso específico do projecto de Mphanda Nkuwa, a inviabilidade ambiental de que falamos não é justificada somente pela fundamental perspectiva de preservação ecológica, pois traduz-se também numa incontornável e taxativa inviabilidade económica. Tendo em conta os relatórios da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, e da International Rivers, mesmo sem a barragem em Mphanda Nkuwa, o Zambeze é um dos rios de África que mais irá sofrer os impactos das mudanças climáticas (influenciadas, em parte, pelas emissões dos gases de efeito de estufa das mega-barragens) em virtude das secas e cheias intensas que se projectam para o continente a médio e longo prazo. Tais eventos climáticos por certo colocarão em risco a produção de energia das suas várias barragens – sobretudo as moçambicanas que estão no fim da linha. Especificamente a respeito do seu caudal, estudos prevêem que até 2050 haverá uma redução considerável de escoamento de 26% a 40% no Rio Zambeze. Estes dados não são considerados, nem sequer estão a ser debatidos. Será que teremos que esperar até 2050 para comprovar este triste cenário, e todos os impactos negativos sobre as comunidades locais e sobre o riquíssimo ecossistema do Delta do Zambeze?
Incontáveis estudos e exemplos concretos demonstram que é um erro continuar a insistir na construção de grandes e mega-barragens para produção de energia. Um estudo de Oxford analisou todas as barragens construídas entre 1934 e 2007 e concluiu que as grandes e mega-barragens acabam por sair 96% mais dispendiosas que o projecto inicial, e demorar 44% mais tempo do que o estimado. Há igualmente evidências suficientes de que há uma urgente necessidade de se fazer uma transição energética e diversificação das mesmas, através do abandono das fontes tradicionais e obsoletas de energia e adopção de fontes de energia limpas e renováveis. Há actualmente registo de inúmeros países que se distanciaram deste tipo de soluções, nos últimos 100 anos, nos EUA apenas, cerca de 1150 barragens foram demolidas!
As recentes cheias do Rio Rovuboé, que estão a afectar a zona centro do país e todas as
comunidades que vivem às margens deste rio e do Rio Zambeze, vêm provar, mais uma vez, que as barragens (principalmente as desta dimensão) não servem para atenuar os impactos das cheias e secas. Pelo contrário, as grandes e mega-barragens exacerbam estes impactos, uma vez que o seu principal (e, na maioria das vezes, único) propósito é a geração de energia hidroeléctrica. Para atingir a sua capacidade máxima de produção, os reservatórios devem acumular o máximo de água possível. Em caso de cheias, a barragem vê-se obrigada a libertar a água armazenada, causando ainda mais destruição nas comunidades e infra-estruturas existentes ao longo da margem do rio.
Sem dúvida que a energia é um bem fundamental e indispensável para o desenvolvimento de uma nação, no entanto, há evidências científicas bastantes de que as grandes barragens não trazem os benefícios que se pretende, muito menos para quem mais destes necessita. É facto que a energia produzida em mega-barragens não beneficia as populações locais e serve maioritariamente para exportação e abastecimento das indústrias de energia intensiva, tal como acontece com a Barragem de Cahora Bassa. Os elevados aumentos sucessivos e sem aviso prévio das taxas a pagar pelo consumo de energia que os moçambicanos têm sofrido nos últimos 5 anos mostram claramente que o nosso governo não tem sido capaz de gerir correctamente a energia que já produz, nem tem sido capaz de planear devidamente e buscar soluções compatíveis à actual
vergonhosa e triste situação de crise em que o país se encontra mergulhado.

Em conclusão:

Conforme a informação exposta acima, e inúmeros outros estudos e análises científicas que poderemos disponibilizar havendo interesse, cabe-nos perguntar: por que estamos nós a remar contra a maré? Exigimos que o governo nos apresente e esclareça clara e cabalmente os contornos, objectivos e racional por detrás deste projecto, incluindo:
– De onde vem o investimento e a troco de quê?
– Por que é este projecto uma prioridade para o país (tendo em conta a actual conjuntura
sócio-económica)?
– Foram equacionadas outras alternativas? Se sim, quais?
– Quem será responsável por indemnizar as comunidades que vivem há 19 anos com o seu futuro hipotecado, sem poder investir na sua comunidade e em infra-estruturas necessárias, por medo de perderem os seus investimentos? Estas comunidades ouviram
falar do projecto da barragem de Mphanda Nkuwa pela primeira vez em 2000, tendo sido avisadas que não deveriam construir novas infra-estruturas pois estas não seriam
compensadas aquando do reassentamento. Até hoje não receberam outra informação por parte do governo.
– Qual o real propósito da barragem e que hipotéticas mais-valias julgam que traria para o país a curto, médio e longo prazo, incluindo como planeiam rentabilizá-la? Considerando que a Eskom (nosso principal cliente) é a companhia de electricidade que compra energia ao preço mais baixo do mundo, e compra a nós… e lembrando também que actualmente os moçambicanos estão a pagar uma das taxas mais altas de consumo de energia de África, ficamos atrás de apenas 3 países.

Se a prioridade do Governo é realmente o desenvolvimento, existem várias outras opções energéticas que devem ser devidamente estudadas e amplamente debatidas, como a energia de fontes limpas renováveis, para que a decisão a tomar seja a mais correcta e justa social, ambiental e economicamente. Mais uma vez, a Justiça Ambiental coloca-se à disponibilidade para ajudar a encontrar alternativas que estejam alinhadas com um desenvolvimento verdadeiramente inclusivo, sustentável e para a maioria dos Moçambicanos. Ou será que teremos que cometer novamente os mesmo erros? Será que nessa altura nos dirão que não sabiam?

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Fotografia tirada em Maputo, numa acção de sensibilização sobre os impactos da proposta barragem de Mphanda Nkuwa, por ocasião do Dia Internacional de Acção pelos Rios celebrado a 14 de Março

2 thoughts on “CARTA ao governo moçambicano sobre Mphanda Nkuwa

  1. Jose Forjaz diz:

    A pergunta inevitável? Quem ganha com este disparate criminoso?

    • JA diz:

      Os mesmos de sempre, uma pequena elite envolvida no negócio, corporações estrangeiras e a HCB, que nada faz pelo povo. E assim continuaremos a fornecer energia barata para a Eskom. O resto de nós, moçambicanos, e principalmente as pessoas que vivem na região, ficamos com todos os impactos, destruição dos ecossistemas, perda de meios de subistência das comunidades que dependem do rio Zambeze, etc…

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