AO PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA VALE MOÇAMBIQUE,
SR. MÁRCIO GODOY
cc: Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural
Ministérios dos Recursos Minerais e Energia
Comissão Nacional de Direitos Humanos
Maputo, 14 de Março de 2019
Assunto: Sobre a vossa postura hostil em Moçambique
A JUSTIÇA AMBIENTAL (JA!), uma organização da sociedade civil moçambicana de defesa do direito do ambiente e direitos sobre a terra das comunidades locais, vem por meio desta manifestar o seu total repúdio pela forma como a empresa Vale Moçambique desenvolve as suas actividades no nosso país, transformando destruição ambiental e degradação social e humana em lucros para os seus accionistas. Cabe esclarecer que a JA! solicitou à Vale, em diversas outras ocasiões e desde 2009, informações relacionadas com os vossos relatórios de monitoria ambiental, tendo a Vale se cingido a respostas evasivas.
Sem qualquer intenção de listar a totalidade de abusos e negligências cometidos pela empresa neste país, esta carta busca desmistificar alguns dos falsos pressupostos com que a Vale brinda o público no geral, com o claro objectivo de mascarar o impacto das suas actividades. Organizámos a nossa argumentação em torno dos seis temas que estruturam o Relatório de Sustentabilidade da Vale de 2017.
Sobre as PESSOAS, a Vale afirma-se empenhada em construir laços duradouros no meio onde opera, tanto com empregados como com as comunidades locais e sociedade no geral. No entanto, o tipo de relacionamentos que a Vale estabelece nos territórios onde opera estão longe de estar assentes no respeito mútuo. Com a chegada da Vale à província de Tete, milhares de famílias perderam as suas terras, os seus meios de subsistência, o seu acesso a infra-estruturas sociais e económicas, e vêem os seus direitos mais fundamentais serem permanentemente violados. Isto resulta em constantes conflitos com a empresa, litígios, manifestações e protestos, bem como na ruptura social de diversas comunidades devido às práticas de intimidação e cooptação de líderes comunitários por parte da empresa. Além dos enormes dividendos gerados para os seus accionistas, e dos parcos trabalhadores que auferem de salários e condições de trabalho dignos, que tipo de benefícios a Vale trouxe para as pessoas, em especial para as comunidades afectadas pela mineração em Tete? Os impactos das vossas actividades em muito ultrapassam os alegados benefícios.
Sobre o PLANETA, a Vale investe bastante na promoção de uma imagem de empresa sustentável, afirmando-se comprometida em “investir recursos (…) para mitigar e compensar os efeitos de suas actividades sobre o ambiente.” No entanto, recusa-se a disponibilizar os seus planos de monitoria da qualidade do ar, mesmo quando solicitados, e até ao momento não executou o devido plano de encerramento da mina de Moatize I. Degradação ambiental, altos níveis de poluição atmosférica e contaminação do solo e massas de água existem em todos os locais de extracção operados pela Vale S.A. Além do mais, como se justifica a dualidade de critérios em operações básicas da empresa, dependendo do local onde estas actividades são desenvolvidas? Por que razão é que o carvão que sai das minas da Vale em Moatize é transportado em vagões abertos e sem qualquer cobertura, permitindo a dispersão do material e exacerbando a poluição atmosférica, enquanto no Brasil, por obrigação da lei, os vagões da Vale circulam cobertos? Por fim, parece-nos uma contradição gritante o conceito de mineradora de carvão orientada para o desenvolvimento sustentável. É consenso científico que a queima de carvão é uma das principais causas das mudanças climáticas, o grande flagelo da nossa era. Se a Vale estivesse realmente interessada em minimizar os seus impactos no planeta, teria já abandonado esta tecnologia obsoleta e investido em alternativas mais sustentáveis, de modo a contribuir de forma significativa para a tão necessária redução drástica de emissões, para que o aumento da temperatura média global não exceda os 1.5°C, seguindo assim as recomendações científicas. Ainda mais preocupante é o facto da Vale afirmar o seu compromisso em resolver os problemas das mudanças climáticas através de soluções baseadas no mercado, tal como as iniciativas de “precificação do carbono” e “apoio de acções voltadas à conservação e recuperação florestal”. Estas medidas fazem parte de um conjunto de falsas soluções pois em nada contribuem para a necessária redução de emissões na fonte, pelo contrário, atribuem a responsabilidade aos mais vulneráveis, tal como as comunidades locais e indígenas e os pequenos agricultores. Servem apenas para permitir que a Vale continue a poluir de forma desregulada, escondendo-se por detrás de um compromisso falso de compensação das suas emissões através da conservação e recuperação florestal em outras regiões, como África.
Sobre PROSPERIDADE, a Vale está alegadamente orientada para um propósito nobre de gerar valor para a sociedade. No entanto, o que verificamos de forma inquestionável no entorno das minas de Moatize é uma degradação crescente e implacável da vida dos moradores da região. Qual será a ideia de prosperidade das mais de 1.300 famílias reassentadas para as precárias casas de Cateme, sob risco de desabamento a qualquer momento? Qual será a ideia de prosperidade dos oleiros que ficaram sem o seu ganha-pão, até hoje em luta contra a Vale para obterem uma justa compensação e indemnização? Qual será a ideia de prosperidade das famílias no bairro de Bagamoyo, adjacente à mina da Vale, que sem qualquer indemnização passaram a viver numa área altamente poluída e as suas casas sofreram inúmeras rachaduras provocadas pelas explosões na mina e pela trepidação dos comboios da Vale? (Aproximadamente 10 destas casas rachadas devido aos explosivos usados pela Vale, acabaram por desabar durante as recentes chuvas fortes, no início deste mês).
Sobre a PAZ, mais uma vez a Vale afirma-se comprometida em obter “legitimação e aceitação da empresa pela sociedade (…) em especial as comunidades locais”. A comunidade do bairro de Bagamoyo entrou em protesto em Outubro de 2018, devido aos altos níveis de poluição e danos nas residências, ambos causados pelas actividades da Vale. Em Novembro de 2018, nova manifestação dos residentes do Primeiro de Maio no Bairro de Bagamoyo por não aceitarem que a Vale prossiga com os seus planos de expansão (para a mina Moatize III), devido às pendências no pagamento de compensações à comunidade pela perda das suas machambas. Estas e outras comunidades têm manifestado há anos o seu desagrado pela instalação da empresa na região. O conceito de consentimento livre, prévio e informado das comunidades locais a respeito de megaprojectos desta natureza nos seus territórios, consagrado em inúmeros instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos, tem algum impacto na política de negócios da Vale?
Sobre PARCERIAS, a única parceria real que a empresa aparenta ter em Moçambique é com o governo, não medindo esforços para encontrar formas de legitimar as suas actividades e continuar a explorar as pessoas e o meio ambiente em Moçambique. O conluio da empresa com as forças de segurança nacionais é particularmente preocupante, tendo a Vale chegado ao ponto de levar o chefe de segurança e inteligência da empresa e um comandante da Polícia de República de Moçambique a encontros com as comunidades afectadas. Não é embaraçoso para a Vale que as manifestações e protestos pacíficos das comunidades afectadas, fruto dos enormes impactos da extracção mineira na região, sejam dura e violentamente reprimidos pela PRM? Ou dormem tranquilamente, à noite, pelo simples facto da responsabilidade directa não recair sobre vocês?
E por fim, a respeito do PROPÓSITO da Vale, esta afirma que o seu principal objectivo é, através da mineração, “transformar recursos naturais em prosperidade e desenvolvimento sustentável”. Cabe-nos concluir que não poderiam estar mais longe de alcançar este propósito. Em toda esta carta, optámos por falar apenas de questões particularmente relacionadas com o que a Vale trouxe para Moçambique. Não obstante, acompanhamos de perto as actividades da Vale em todo o mundo. Sabemos o suficiente para perceber que este modus operandi abrange toda a cadeia, e representa a materialização do único real propósito da Vale: gerar lucros crescentes para os seus accionistas, menosprezando qualquer impacto sobre o planeta e as pessoas, e fazendo o necessário para remover qualquer obstáculo que ameace o alcance desse objectivo. Todas as actividades da empresa são alinhadas com este propósito, seja de forma directa, pela própria actividade comercial da empresa (mineração, siderurgia, logística, etc), ou de forma indirecta, como os diversos programas de responsabilidade social corporativa e demais campanhas de greenwash (lavagem verde, por exemplo financiando actividades ligadas a áreas nobres como educação, saúde, cultura, para transmitir a imagem de empresa responsável e não de gigante poluidora). Prova disto é o prémio de Pior Empresa do Mundo, do Public Eye Awards, justamente recebido pela Vale em 2012, pela sua «história de 70 anos manchada por repetidas violações dos direitos humanos, condições desumanas de trabalho, pilhagem do patrimônio público e pela exploração cruel da natureza». Que tipo de credibilidade tem uma empresa cujo comportamento negligente deu lugar a dois dos maiores crimes ambientais e sociais dos últimos anos, o rompimento das barragens de rejeitos em Mariana e Brumadinho, no Brasil, o seu próprio país de origem?
Convictos de que não há espaço para empresas como a Vale, nem em Moçambique nem em qualquer país verdadeiramente empenhado em enveredar por um desenvolvimento focado nas pessoas e na protecção do meio ambiente, terminamos esta carta reiterando que o nosso compromisso – tanto da JA! como da nossa vasta rede de parceiros e aliados – de mobilização e resistência contra o modelo de desenvolvimento capitalista extractivista tão perfeitamente personificado pela Vale jamais esmorecerá.
Manifestação em frente aos escritórios da Vale em Maputo, por ocasião do Dia Internacional de Acção pelos Rios, momento em que foi entregue esta carta à empresa. A carta foi também distribuída aos transeuntes em forma de panfleto a explicar o porquê desta acção.