Advogados, especialistas e activistas de Moçambique, Camarões, Quénia, Nigéria, Brasil e Estados Unidos da América fazem críticas contundentes aos poderes e sistemas dominantes e partilham estratégias para travar o poder e impunidade das grandes corporações*

Corporações transnacionais, organizações internacionais e arquitectura global de comércio: guardiões do neocolonialismo?
Nas últimas décadas, as grandes empresas transnacionais tornaram-se incrivelmente poderosas, chegando a ultrapassar muitos Estados, sobretudo no Sul Global, em virtude do advento da globalização e da consequente expansão do capitalismo neoliberal. Em vários países do sul, assistiu-se a um fenómeno de liberalização dos mercados nacionais e regionais e à flexibilização do quadro legal e institucional, principalmente nos sectores ambiental e laboral, assim como ao condicionamento de políticas sociais e económicas a favor do sector privado. Associado a isto, o lobby do poder corporativo levou à privatização da democracia e à usurpação de sectores públicos, fazendo com que as corporações transnacionais passassem a lucrar até com o fornecimento de serviços que deveriam estar a cargo dos Estados, como a saúde e a educação, com altos custos para a maioria dos cidadãos.
Moçambique: Políticas neoliberais do Banco Mundial e o Colapso da Indústria do Caju

Máriam Abbas, pesquisadora do Observatório do Meio Rural em Moçambique, falou do colapso da indústria do Caju no país, um sector muito vibrante entre 1960 e princípios dos anos 70, período em que Moçambique se tornou no maior produtor de castanha de caju no mundo. Com a nacionalização de algumas fábricas, muitos proprietários abandonaram o país, cessando os seus investimentos. Associado a isto, a guerra civil contribuiu significativamente para a destruição do cajual. Contudo, a razão mais importante para o declínio acentuado da indústria moçambicana de caju tem a ver com a imposição, pelo Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) – já que o país foi obrigado a implementar o programa de ajustamento estrutural a partir dos anos 80 – que Moçambique liberalizasse e privatizasse o sector do caju. Isto como condição para que o país acedesse a um financiamento de 400 milhões de dólares
Neocolonialismo, corporações transnacionais e a arquitectura de comércio global

De acordo com Nnimmo Bassey da organização HOMEF, Nigéria, o extractivismo neocolonial prospera na exploração irresponsável da natureza e do trabalho. O roubo dos recursos naturais de África pelas grandes empresas e elites domésticas é um segredo aberto. Acredita-se que cerca de 50 mil milhões de dólares foram perdidos anualmente nos últimos 50 anos através de fluxos financeiros ilícitos. Esta soma supera a ajuda económica que o continente recebe anualmente.
Bassey reforçou que “as corporações transnacionais e instituições financeiras internacionais constituem os principais guardiões do neocolonialismo, e que o investimento directo estrangeiro (IDE) continua a ser um dos instrumentos fundamentais do neocolonialismo ‘benigno’”. As nações competem pelos investimentos estrangeiros e, ao fazê-lo, baixam as barreiras regulamentares e normas de modo a assegurar a facilidade de fazer negócios. O Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, e outras instituições da globalização têm sistematicamente imposto condicionalidades económicas às antigas colónias e desta forma garantido a perpetuação da exploração Norte-Sul.
Capital agrário e regime alimentar global

Timothy A. Wise do Institute for Agriculture and Trade Policy (IATP), Estados Unidos da América, debruçou-se sobre a agenda de ‘modernização’ agrícola a ser imposta por grandes potências mundiais no sul Global, como a chamada Revolução Verde em África – que praticamente se traduz na usurpação de terras comunitárias, impondo plantações e monoculturas em grande escala. No entanto, estas iniciativas têm vindo a falhar, como o caso do ProSAVANA em Moçambique que fracassou em grande parte devido à resistência da sociedade civil moçambicana.
A narrativa corporativa insiste que as sementes camponesas são improdutivas e seus sistemas e práticas agrícolas retrógrados. Argumentam então que os agricultores precisam de apoio com fertilizantes, sementes geneticamente modificadas, pesticidas e outros insumos cuja produção e mercados são controlados e dominados por empresas transnacionais. Empresas transnacionais como a Monsanto pressionam então para a adopção de novas leis de sementes (e suas patentes), tornando ilegal a recolha, tratamento e troca de sementes nativas entre os camponeses. A iniciativa Aliança para a Revolução Verde em África, AGRA, por exemplo, recebeu cerca de 1 bilião de dólares americanos em financiamento ao longo dos últimos 14 anos, e instituiu um programa de subsídios a insumos, dando cupões aos agricultores para comprarem sementes comerciais, fertilizantes químicos e outros insumos agrícolas às empresas. Isto é, na verdade, um grande esquema para desviar importantes fundos públicos para estas corporações.
- Revisão da política de terras em Moçambique
A questão da revisão da política de terras em Moçambique foi também alvo de debate aceso durante o webinar. A falta de transparência que têm caracterizado o início deste processo parece confirma que o que está por detrás desta revisão são interesses nefastos. Os oradores e alguns participantes do webinar reiteraram que é preciso que haja maior envolvimento dos camponeses e da sociedade civil para fortificar a resistência, manter a vigilância, e monitorar e denunciar tentativas de mercantilização da terra e dos recursos naturais no seu todo.

Megaprojectos em África: motores do desenvolvimento ou do enriquecimento das elites?

Megaprojectos em todo o continente Africano representam visões utópicas de desenvolvimento, progresso e crescimento ancoradas em ideias coloniais e extrativistas. Tal como explicou Ruth Nyambura, activista ecofeminista do Quénia, os megaprojectos trazem uma abordagem muito hierárquica e de cima para baixo, e são intrinsecamente masculinistas, onde o Estado ou as empresas impõem à população local os projectos que foram previamente decididos sem qualquer envolvimento destas populações.
Os megaprojectos penetram nos planos de desenvolvimento nacional, onde o Estado decide investir milhões de dólares em infraestruturas que beneficiam as elites do país e as grandes corporações. Tendo em conta que a maioria dos camponeses em África são mulheres, é bastante preocupante que os megaprojectos agrícolas sejam altamente prejudiciais às mulheres, e invariavelmente excluam-nas de uma real participação. O único espaço que parece existir para mulheres neste tipo de projectos é o espaço para empreendedoras, trazendo uma concepção ingénua de que as mulheres Africanas se podem emancipar por meio do empreendedorismo, e Nyambura reiterou que esta narrativa ignora as estruturas e dinâmicas estruturalmente patriarcais das nossas sociedades.
Recursos naturais, hidrocarbonetos e o sector mineiro em Moçambique

Os recursos naturais, os hidrocarbonetos e o sector mineiro apresentam-se como setores que trarão grandes investimentos para os países, com promessas de altas receitas para o Estado e alavancamento da economia. No entanto, os megaprojectos nesta área não têm estado a trazer resultados satisfatórios para o país, explicou Inocência Mapisse, pesquisadora do Centro de Integridade Pública (CIP).
Em Moçambique, tal como em outros lugares, o sector extractivo apresenta uma diminuta capacidade de contratação de mão-de-obra, já que pela sua natureza estes projectos são intensivos em capital mas absorvem muito poucos recursos humanos. Um estudo do CIP em 2017 mostra que o sector extractivo em Moçambique contribuiu com apenas 1% da criação de emprego. Em termos de receitas fiscais, 42% do que se exporta em Moçambique vem do sector extractivo, porém, por exemplo em 2014, os megaprojectos do sector extractivo contribuíram com apenas 5% da receita fiscal total – e este cenário é comum em toda a região da África Austral.
Economia política dos recursos naturais: impactos e implicações de megaprojectos e extractivismo

Moçambique não é um caso raro – por todo o continente o cenário repete-se. Até à data, a indústria extractiva não tirou nenhum país Africano da pobreza. Pelo contrário, assiste-se a uma tendência de exacerbação de conflitos e do endividamento de países altamente dependentes do sector extractivo. Neste tema, Daniel Ribeiro, da Justiça Ambiental (JA!), alertou para o facto de Moçambique estar a apostar num recurso cujo preço oscila muito, o gás natural. Projecções são feitas com valores de mercado optimistas – há muita pressão para que assim seja – e portanto aliciam os Estados com o potencial de arrecadação destes projectos, mas desconsideram vários factores incluindo as quedas nos preços globais, o que é cada vez mais frequente. “Essas quedas têm um impacto muito forte na economia e destroem aquilo que pode ter sido alcançado durante o período de alta de preços”, explicou Ribeiro. Além disso, com projecções mais optimistas aumentam as facilidades de empréstimos, incentivando uma propensão a contrair dívidas (como aconteceu em Moçambique); criam-se mais expectativas nas populações locais e nacionais a respeito dos alegados benefícios do projecto, e consequentemente aumentam os níveis de frustração, tensão social e instabilidade quando estas promessas ou expectativas não são cumpridas.
Por fim, Ribeiro ressaltou que a estrutura fundamental dos investimentos na indústria extractiva, aliada à falta de transparência que caracteriza o sector, tornam-nos muito susceptíveis à corrupção. Isto reduz ainda mais as chances já ínfimas que estes projectos contribuam para a melhoria das condições de vida da população.

Justiça e direitos humanos em Moçambique e no mundo: dos desafios na implementação à perpetuação da impunidade. Que alternativas e resistências estão a ser construídas?

O advogado e defensor de Direitos Humanos João Nhampossa defendeu que Moçambique vive uma situação terrível no que diz respeito à violação dos direitos humanos das comunidades locais em virtude da exploração dos recursos naturais, por diversas empresas, e que prevalece no país uma cultura de impunidade. Focando em alguns casos emblemáticos como as mineradoras em Tete e as empresas do gás em Cabo Delgado, Nhampossa discorreu sobre as violações de direitos humanos associadas à perda de terras, característica comum de todos estes megaprojectos. As comunidades locais acabam por ser marginalizadas e largadas em situação precária após processos de reassentamento que não cumprem com a legislação nacional – que estipula claramente que as condições de vida das populações reassentadas devem ser equivalentes ou melhores a antes do reassentamento. Estas pessoas vêm tentando usar os espaços democráticos para exigir justiça e dignidade, mas quando apelam ao governo, este remete a responsabilidade de repôr as terras, meios de subsistência, ou acesso à água à empresa, mas quando se aborda a empresa, esta sacode qualquer responsabilidade e remete as comunidades ao governo.
Os processos judiciais sobre violações de direitos humanos nos tribunais infelizmente não são tratados como matéria urgente e prioritária, e ao se tratarem de casos politicamente sensíveis, os tribunais aplicam artimanhas para não julgarem a favor das comunidades. As injustiças inerentes aos processos de perda de terras e reassentamentos inadequados conduzem a revoltas sociais e protestos, que invariavelmente são respondidos com repressão policial e violência.
Assimetrias Norte-Sul e arquitectura da impunidade

O académico Giverage Amaral defendeu que, por todo o mundo, a definição de ser humano ideal ou exemplar está muito atrelada a concepções ocidentais que pouco dialogam com as narrativas locais em países como Moçambique. Argumentou ainda que a globalização veio se tornando um processo asfixiante e de dominação sobre as lógicas locais, e que trouxe consigo riscos ecológicos, políticos, económicos, ao invés dos benefícios sociais que prometera. A lógica da colonização vem com nomes corporativos neocoloniais, entre doadores e investidores. Estados são ameaçados, sancionados ou processados por se posicionarem contra os interesses do capital global, como é o caso do Zimbabwe, Tanzânia, Ecuador, e tantos outros.
Nos tempos actuais, temos presenciado o aumentar de várias formas de violência, com incidência particular em zonas de exploração extractiva. A par disto, as empresas encontram novas formas de permanecer em impunidade e capturar os nossos Estados – que se tornam cúmplices e partes activas nestes crimes.
Limitações da protecção dos direitos humanos em África

A estrutura de protecção dos direitos humanos em África está em três níveis, o nacional, o sub-regional ou panafricano, e o universal, que se baseia no sistema das Nações Unidas. Quando analisamos todas essas etapas, o nível mais importante de protecção dos direitos humanos é o nacional. Para Apollin Koagne, pesquisador de direito internacional dos Camarões baseado em Genebra, o nível nacional é o único nível onde se pode ter uma abordagem verdadeiramente conciliadora, onde se pode ter um sistema onde o juiz pode ao mesmo tempo aplicar as leis de direitos humanos, e as leis de investimentos, por exemplo. Quando se vai para o nível pan-africano da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, a Comissão só aplicará a carta Africana e demais instrumentos de direitos humanos, e nada poderá dizer, por exemplo, sobre tratados de investimento.
Esta situação representa um problema, porque a maior parte dos nossos Estados tem que fazer uma arbitragem entre diferentes tipos de leis e normas, tendo que por vezes escolher se é preferível violar um tratado de direitos humanos ou um de investimento. “Uma vez que os detentores de direitos nos tratados de investimentos são as corporações e os Estados – que são muito mais poderosos que os cidadãos comuns, que são os detentores de direitos nos tratados de Direitos Humanos – o que observamos é que, na maioria das vezes, o Estado acabará por considerar mais rentável violar os tratados de Direitos Humanos”, concluiu Koagne.
Lutas contra a mineração e barragens no mundo: o caso do Brasil

Tchenna Maso, advogada popular do Brasil, destacou que a mineração é uma actividade histórica no Brasil e vem deixando vários passivos sociais e ambientais de violações que se interligam. Tivemos os casos gravíssimos e emblemáticos do rompimento das barragens de Fundão, em 2015, em Mariana, e em 2019 em Brumadinho. As populações afectadas até hoje lutam por justiça. A Vale, por exemplo, goza de uma ampla protecção do Estado. A nível do sistema internacional de Direitos Humanos, ainda existem muitos vazios legais que não possibilitam que uma empresa transnacional seja colocada no banco dos réus, e é fundamental que os movimentos sociais lutem para mudar esse cenário.
“Nas regiões onde encontramos estes projectos de mineração, onde entram essas empresas transnacionais, percebemos que elas actuam numa capilaridade para capturar todo o poder público local, e aquilo que deveriam ser políticas públicas fornecidas pelos Estados, passam a ser políticas públicas fornecidas pelas empresas”, reiterou Maso.
RECOMENDAÇÕES DO WORKSHOP
Entre oradores e participantes, o debate aceso girou em torno de várias lições aprendidas e recomendações, que deverão nortear os nossos movimentos sociais por direitos e justiça. Destacamos aqui as seguintes:
- É urgentemente necessário romper com a crença de que os megaprojectos (principalmente os extractivistas) podem trazer desenvolvimento, e começar a construir e exigir alternativas radicalmente opostas. O Estado precisa de apoiar modelos e sistemas de desenvolvimento inclusivos e endógenos, que beneficiem e sejam geridos pelas comunidades locais;
- É necessário estabelecer sinergias e unir forças entre os povos de várias regiões para travar o poder e impunidade das companhias transnacionais, de forma a que estas companhias sejam responsabilizadas pelos seus crimes e violações de Direitos Humanos;
- É fundamental usarmos os mecanismos jurídicos e legais nacionais, regionais e internacionais existentes para procurar acesso à justiça, e denunciar e expôr as lacunas que ainda existem na regulação de companhias transnacionais;
- Deve ser reconhecido e garantido às comunidades locais o direito à auto-determinação, que inclui o direito ao consentimento livre, prévio e informado e necessariamente a possibilidade de dizerem NÃO a determinado projecto previsto para o seu território que considerem danoso;
- É necessário apostar na agricultura familiar, principalmente a agroecológica, para a construção da soberania alimentar. Isto inclui não só apoiar os camponeses como denunciar e resistir a projectos de agronegócio, monocultivos de árvores, ou plantio de culturas geneticamente modificadas que trazem impactos negativos para o ambiente e camponeses locais;
- É necessário apoiar e fortalecer movimentos que busquem fortalecer a protecção e promoção dos Direitos Humanos, como por exemplo o processo em curso nas Nações Unidas para elaborar um tratado vinculativo sobre corporações transnacionais e Direitos Humanos;
- É urgente repensar e redifinir os indicadores de progresso e desenvolvimento. Indicadores puramente económicos como o PIB não reflectem a qualidade de vida da população e nem os níveis de desigualdade, portanto constituem medidores enganadores do sucesso das políticas de desenvolvimento de cada país.
Em jeito de conclusão, oradores e participantes reforçaram a necessidade da sociedade civil se organizar e articular, na sua pluralidade de actores e lutas e com o devido protagonismo das pessoas mais afectadas, de forma a exigir mudanças sistémicas nas nossas sociedades, que terão que ser fundamentalmente feministas, anticapitalistas, anticolonialistas e anti-racistas.
*Durante o mês de Setembro de 2020, a Justiça Ambiental JA! realizou o seu habitual workshop de Maputo sobre impunidade corporativa e direitos humanos, desta vez em formato virtual através de 3 Webinars. Este artigo é um resumo dos principais pontos apresentados pelos oradores e participantes ao longo do workshop.
Para mais informações: jamoz2010@gmail.com
Para assistir à gravação dos Webinars acesse: