Sistema de Abastecimento de Água em Moçambique: Sucessivas tentativas de privatização do Sector e o Aumento das desigualdades Sociais

Em Moçambique a água não é propriedade privada do capital, porém os encaminhamentos legais apontam para essa tendência, apesar de Moçambique ser um país com diferentes fontes de água doce, os desafios de acesso à água tratada e canalizada para o consumo humano ainda constitui um grande constrangimento para uma maior abrangência dos serviços de abastecimento. No entanto, diante do período de crise de reprodução do valor em que vivemos actualmente, as soluções encontradas pelo sistema capitalista que nos rodeia passam sempre pela continuidade do processo de acumulação desenfreada e a mercantilização sobre todos os aspectos da vida social.

No nosso país em 1995 foi aprovada a Política Nacional de Água assinalando os primeiros passos rumo a privatização dos sistemas existentes na época, o que se veio a concretizar em 1998 com a privatização do sector público de abastecimento de água urbano. Através da criação do órgão criado entre 1998 e 1999, denominado Fundo de Investimento para o Abastecimento de Água (FIPAG) ao qual compete a função de atrair e gerir investimentos para a reabilitação e expansão do património de água em Moçambique e também da gestão, monitoramento e garantia do cumprimento das obrigações contratuais do operador privado em Moçambique.

Foi nestes moldes que o processo de mudança organizacional no sector público de abastecimento de água passou de gestão estatal para uma de cariz essencialmente privado (Rebelo, A.2005), gerido através da transformação da empresa estatal Aguas de Moçambique, SARL em uma empresa de gestão delegada através da cessação de exploração e de gestão, mais virada ao mercado que não requer mais cidadãos, mas sim apenas fornecedores e clientes (Zavale,2013). Já nessa época reconhecia-se o sistema de abastecimento como deficitário, daí a necessidade de uma reestruturação estabelecida através de uma parceria-público-privada (PPP) legalmente instituída em 1999.

Todo este processo foi alavancado a partir das inúmeras reformas feitas em Moçambique através do Banco Mundial que chegou a injectar 36 milhões de dólares para a melhoria dos sistemas de abastecimento de água e não só. No entanto, as experiências à volta da privatização do sector da água não tem sido positivas, quer na Europa, América ou em África, uma vez que estas tem despoletado problemas tais como: redução de postos de trabalho, diminuição de direitos e de vínculos laborais o que influencia na qualidade dos serviços prestados.

E a experiência de Moçambique não tem sido diferente, após tentativas falhadas nos últimos 20 anos, o nosso país prepara-se para uma nova era da privatização do sector da água.

Comecemos por analisar a primeira fase deste processo, em que a adesão de Moçambique ao sistema de privatização, no modelo público-privado visava a plena recuperação de custos, porém passos foram dados no sentido do estabelecimento de uma estrutura tarifária que procurava promover o equilíbrio entre os clientes com capacidade de pagamento e os sem capacidade para tal através de um sistema de subsídios cruzados onde os que supostamente tem mais recursos pagam a mais para cobrir os custos dos que tem menos recursos. Porém, o sistema de subsídios cruzado é aplicado nos locais onde os sistemas públicos de abastecimento de água conseguem fornecer o serviço. Com o crescimento populacional, novos centros habitacionais foram surgindo através de iniciativas individuais dos cidadãos face aos desafios da falta de habitação, os moçambicanos passam a privilegiar a auto-construção, fora das áreas urbanas. Assim, com vista a responder as necessidades de abastecimento de água nas novas áreas de expansão urbana, surgem de forma independente pequenos provedores privados que investem em sistemas de conexão ao lençol freático para responder as suas necessidades individuais e num sistema de apoio aos vizinhos surge uma oportunidade de negócio, e é desta forma que as alternativas de estratégia hídricas passam para incluir prestadores de serviços independentes de uma forma espontânea e sem nenhuma planificação (Matsinhe,2008). As razões para isso, foram durante muito tempo a falta de legislação e de um quadro administrativo que possa ser utilizado para conceder licenças ou regular suas actividades, o que contribui para que as suas tarifas sejam mais altas do que as tarifas normais principalmente nas cidades de Maputo e Matola o que não permite que o sistema de subsídios cruzados abranja um segmento da sociedade que busca alternativas habitacionais fora do centro da cidade.

Por outro lado, os investimentos levados a cabo pelo Fundo de Investimento para o Abastecimento de Água (FIPAG) com vista a melhoria dos serviços de abastecimento por terem em vista a recuperação dos custos de investimento tem como alvo preferencial as áreas onde as condições económicas dos clientes propiciem um rápido retorno dos gastos e onde exista uma economia de escala suficiente para gerar sustentabilidade financeira o que acentua as desigualdades sociais entre pobres e ricos que tem prioridade no acesso a água devido a capacidade de pagar pelas facturas (Uandela, 2018). Ao longo dos anos, no âmbito da implementação do Quadro da Gestão Delegada dos sistemas principais de abastecimento de água, investimentos significativos foram realizados nas

principais cidades, resultando na melhoria da qualidade e na extensão dos serviços para as áreas periféricas. Porem, os gestores dos sistemas (sejam eles públicos ou privados) não possuíam as capacidades necessárias nem a possibilidade de desenvolver sinergias com estruturas de suporte a nível mais alto, ou seja, as instituições existentes para a gestão dos serviços são descontínuas e, não se reforçam mutuamente.

Apesar destas mudanças no sistema de provimento de agua às populações, persistem as desigualdades flagrantes nos serviços de abastecimento de água e saneamento entre as pessoas que vivem nas zonas rurais e as que vivem nas zonas urbanas, razão pela qual até 2015, 49% da população moçambicana continuava sem acesso a água potável de acordo com o UNICEF. Aumentando assim o fosso de desigualdade social entre ricos e pobres potenciado pelo processo de privatização que apesar de longo e complexo e sem resultados que respondam as necessidades de uma população cada vez mais crescente.

Apesar de um progresso considerável registado ao longo dos anos, pouco menos que a metade dos moçambicanos tem acesso ao abastecimento de água melhorado e menos de um quarto (um em cinco) usa o saneamento melhorado.

Diante das falhas registadas para que o nível de cobertura de abastecimento de água em Moçambique se torne mais alargado e responda às reais necessidades da população urbana e rural, novas estratégias são avaliadas mas sempre com foco na privatização e não na construção de sinergias que permitam uma gestão pública e participativa. Neste âmbito, em 2021 foi lançado um programa de investimentos destinado a reforçar a expansão da rede de abastecimento de água nos próximos 10 anos, uma iniciativa orçada em 1,8 mil milhões de dólares. Que visa alcançar o objectivo de fornecer água a 80% da população urbana que corresponde a 5,1 milhões de pessoas, e para tal vai necessitar de 941 milhões de dólares, diante da falta deste montante para a implementação deste programa foram criadas as sociedades comerciais regionais que poderão ser adjudicadas através de concurso público, que numa primeira fase, será gerida a 100% pelo FIPAG, que venderá as suas acções até ao limite de 49% ao sector privado. Por outro lado, as concessões ao privados incluem na zona urbana o uso do sistema pré-pago da água que basicamente cancela a possibilidade de acesso à água ao pobres e dificulta o acesso às famílias não muito abastadas.

Os processos de privatização onde quer que sejam implementados valorizam sempre o princípio de maximização de lucros, descurando a real importância da água como um bem universal e como um direito humano. Por outro lado, nas zonas rurais tem-se notado um aumento de projectos de exploração de recursos naturais. Aliás, nos últimos tempos Moçambique entrou na lista dos países ricos em recursos naturais tais como carvão, ouro, areias pesadas, grafite, diamantes, gás natural entre outros. A exploração dos mesmos requer o uso excessivo de água, o que tem contribuindo para a privatização e poluição dos cursos naturais de água e como consequência há cada vez mais restrição do acesso para as comunidades que só possuíam estas fontes naturais muitas vezes impróprias para o consumo devido a falta de sistemas de canalização e tratamento. A poluição química e bloqueio protagonizadas por grandes corporações multinacionais, indústrias extrativas e de processamento, que não respeitam os padrões normativos ambientais constitui igualmente um nó de estrangulamento para as autoridades resolverem.

Lamentavelmente, a posição geográfica do nosso país coloca-nos igualmente numa situação de vulnerabilidade climática, daí sermos dos países mais propensos a catástrofes naturais que colocam-nos também com dificuldades na disponibilidade de água adequada ao consumo humano e aumentam o risco de ocorrência de doenças hídricas.

Sendo assim, diante do acima exposto precisamos chamar atenção às lideranças para os desafios de privatização em um país onde as carências de diferentes níveis ainda são alarmantes. Não podemos incorrer no risco de privatizar a terra, a água ou até mesmo o ar que são dos poucos recursos que ainda restam aos pobres para que possam ter uma sobrevivência condigna. Busquemos um desenvolvimento inclusivo e sustentável que não se deixa engolir pela acumulação de lucros sem olhar para as reais necessidades das camadas mais desfavorecidas para as quais as políticas públicas devem ser desenhadas. Apesar do licenciamento ambiental para exploração de recursos ser acompanhado de estudos de ar e de água, os quais se encontram sob a alçada de autoridades competentes, percebe-se um distanciamento das autoridades que gerem o ar e água no que concerne a monitoria, avaliação e fiscalização de impacto dos tipos de uso e de gestão da água e da poluição do ar e também da água . Apesar das auditorias periódicas aos usos de terra no âmbito dos EIA’s não se fazem sentir as actualizações relativas ao uso intensivo, a poluição química, desvio de cursos e até mesmo a proibição as comunidades de ter acesso a um bem comum. O facto de nenhum tipo de responsabilização ser atribuída as multinacionais diante de denúncias feitas demonstra uma violação das leis e dos direitos das comunidades e uma grave negligencia diante da soberania do Estado.

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