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Posicionamento sobre o 18 de Março

Nunca foi tão evidente o fechamento da democracia em Moçambique como no último dia 18 de Março, em particular nas cidades de Maputo, Beira, Nampula, e outras. É uma realidade que precisamos urgentemente de resistir e combater. Desde 2008 que a liberdade de expressão, manifestação e do associativismo têm sido reprimidas, mas foi em 2020 que o governo e os seus parceiros internacionais encontraram na Covid19 um pretexto quase plausível para restringir as liberdades dos cidadãos, com o anúncio de um conjunto de medidas que deram origem a restrições na mobilidade das pessoas e bens, restrições nas reuniões públicas, privadas e a limitação do direito à manifestação, direito este, que nos é constitucionalmente conferido através dos artigo 51 da Constituição da República que supostamente rege o Estado Moçambicano.

Sábado, 18 de Março é uma data que ficará na história do nosso país, como um dia em que as nossas forças policiais, munidas de blindados, cães de raça e armas de gás lacrimogénio, impediram uma marcha pacífica com uma brutalidade e agressividade nunca antes vista. O que assistimos nas ruas de Maputo revoltou-nos a todos.

O povo Moçambicano, na sua maioria jovens, com alguma ou nenhuma afiliação partidária ou institucional, pessoas ligadas a organizações da sociedade civil ou não, decidiram marchar para comemorar a vida e obra do nosso rapper e activista social, Edson da Luz, mais conhecido por Azagaia, que perdeu a vida no dia 9 de Março de 2023.

Foram seguidos todos os trâmites legais para garantir que a marcha decorreria sem problemas. De acordo com a lei Moçambicana, as marchas não necessitam de ser autorizadas, mas deve ser submetida uma carta a dar informação às autoridades. Assim foi feito, e a maioria dos municípios deu a luz verde às marchas, com itinerário bem definido. Em Maputo, o ponto de partida seria na estátua do Eduardo Mondlane, e iríamos marchar até à praça da Independência, junto da estátua do Samora Machel, dois símbolos do poder popular e de liberdade do nosso país.

Logo cedo, naquela manhã, começaram a circular relatos de que estavam posicionados carros blindados em vários pontos da cidade, mas isso não nos preocupou, porque já estamos habituados à presença de fortes contingentes policiais quando se trata do exercício da nossa cidadania. Pensámos que talvez fosse para garantir a nossa segurança. Pensamento ingénuo e inocente, típico de quem acredita que ainda se pode viver uma democracia em Moçambique.

Em todos os acessos à estátua de Eduardo Mondlane, o local de início da marcha, havia um forte contingente policial que foi travando os grupos de jovens que pretendiam chegar ao local de concentração. Segundo ‘ordens superiores’, não nos era permitido estar em grupos, mesmo sabendo que tínhamos autorização para nos agruparmos, nos reunirmos e juntos marchar. Sem qualquer aviso prévio, a polícia começou a disparar balas de gás lacrimogénio para todos os lados, e nesse momento começamos todos a correr. No entanto, a vontade de usufruir do nosso direito à manifestação, como tão bem promovido e defendido pelo Azagaia, era grande. Precisávamos desta última homenagem a uma das poucas vozes, senão a única dos últimos tempos, que nos representava, que cantava as nossas dores, angústias e revoltas sem temer as represálias. Era essa vontade que nos fazia escondermos-nos em esquinas próximas à praça, em grupos menores com as nossas camisetas, estampadas com o rosto do nosso jovem herói do povo, que armado de papel e caneta lutou pela nossa liberdade. Os nossos punhos mantinham-se no ar, mas o grito de povo no poder foi rapidamente engolido pela agressividade que se abatia contra todos nós.

Por todo o mundo o gás lacrimogéneo tem sido usado como um mecanismo de controle e para dispersar protestos, mas ainda assim, a sua utilização obedece a normas segundo as quais este não pode ser atirado directamente para as pessoas. Entretanto, no dia 18 de Março, a PRM disparou várias vezes as balas de gás lacrimogéneo directamente para os participantes. Um membro da equipe da JA! foi atingido de raspão nas costas ao desviar-se de uma bala de gás que foi apontada directamente para o seu corpo, uma jovem ao nosso lado foi atingida nos dois tornozelos. Registou-se ainda o caso do jovem Inocêncio que perdeu o olho esquerdo após ser atingido por uma destas balas que supostamente não matam mas podem causar sérios danos nos pulmões, pele e olhos. Uma destas balas incendiou uma viatura. Um dos organizadores da marcha foi torturado durante horas em Nampula. Outra violência gratuita aconteceu no Parque dos Madgermanes, um ponto da cidade que representa um símbolo de protesto e de resistência pela luta dos antigos trabalhadores da extinta RDA que têm vindo a protestar pelos seus direitos há mais de 30 anos. Vários jovens se juntaram lá cantando a música de Azagaia que deu nome à marcha: “Povo no Poder”, ou mesmo “A Marcha”. Os jovens simplesmente aglomeravam-se entoando alguns dos grandes sucessos do seu ídolo Azagaia de forma pacífica, mas mais uma vez os ataques da polícia vieram e desta vez com ainda mais brutalidade. Desceu sobre o parque uma cortina de fumo de gás lacrimogéneo e todos fugiram em direcção à Praça da Independência. Nem mesmo os jovens que se refugiavam dentro da Catedral de Maputo escaparam à fúria dos agentes da PRM.

A rua é o único lugar para onde podemos ir protestar quando nos tiram o poder e nos violam os direitos, e a polícia responde envenenando o ar?

Igualmente repudiáveis são as perseguições e intimidações sofridas por alguns membros de organizações da sociedade civil desde o dia do velório do Azagaia, com policias à paisana que se dirigiam a pessoas pelo nome para intimidar e questionar se eram os mentores daquelas acções. Além da brutalidade e violência da polícia, acções de contra inteligência e vigilância foram levadas a cabo por alguns agentes não uniformizados. Estes tiravam fotos às pessoas que estavam na marcha, registavam matrículas de viaturas e chegaram mesmo a seguir algumas pessoas até suas casas, numa autêntica acção de intimidação que não podemos mais tolerar.

Azagaia já bem dizia na letra da música A Marcha:

Agora que estamos juntos, vou contar-vos um segredo

Eles não podem connosco

Eles agora é que tem medo

E na nossa causa justa, eles não podem se infiltrar…”

No meio de tudo isto, somos ainda surpreendidos pelo comunicado de imprensa da PRM, onde tentam de forma maquiavélica justificar a sua actuação brutal contra cidadãos indefesos numa manifestação pacífica. A PRM justifica a sua brutalidade contra cidadãos indefesos alegando ter utilizado proporcionalidade de força perante ‘manifestantes que arremessavam objectos contundentes’, numa ‘tentativa de golpe de Estado’. Um completo absurdo, uma mentira grosseira, e um insulto a quem lá esteve no dia. As inúmeras imagens e relatos dos acontecimentos comprovam dezenas de vezes que a PRM agiu fora da lei e com tremenda brutalidade. É uma postura criminosa e condenável a todos os níveis, desde os agentes que levaram a cabo as acções repressivas nas ruas do nosso país, e acima de tudo os superiores que deram as ordens, que devem ser julgados e condenados. Aos agentes da polícia e da UIR que reprimiram e massacraram os cidadãos no dia 18, nenhuma ordem superior justifica os vossos actos, pois a Constituição da República consagra o direito de resistência a ordens ilegais. Façam a vossa parte e marchem também pelo vosso direito de resistência, pela vossa obrigação de proteger o povo.

E a comunidade internacional, os doadores e parceiros do desenvolvimento, as supostas referências de direitos humanos e democracia, não se pronunciam perante estes acontecimentos, ficam apenas a murmurar nos corredores, porque não convém criticar o governo do qual dependem para continuar a explorar o nosso gás, areias pesadas, carvão ou rubis.

É importante que permaneçamos juntos, fortes e firmes na causa do povo. Esta será a real homenagem a Azagaia, o homem que lutou para descolonizar as nossas mentes.

Continuaremos a marchar e a cantar por liberdade e justiça! Abaixo a repressão e os ataques aos Moçambicanos e Moçambicanas que acreditam num país melhor!

Povo no poder!

Justiça Ambiental JA!

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Declaração de Imprensa do Dia Mundial da Água 2023

22 de Março de 2023


Nossa água, nosso direito: os africanos pedem aos líderes que “acelerem a
mudança” para longe da falsa solução de privatização da água no Dia Mundial da
Água

Em comemoração ao Dia Mundial da Água 2023, a sociedade civil, os trabalhadores e os
ativistas comunitários que lideram a Coalizão Nossa Água, Nossa Direito (OWORAC)
pedem aos líderes locais, nacionais e regionais que prestem atenção às lições da história
abandonando de uma vez por todas a falsa solução de privatização da água sob qualquer
pretexto.


A OWORAC (sigla em inglês) – composto por ativistas e sindicalistas em Camarões,
Gabão, Gana, Quênia, Moçambique, Nigéria, Senegal e Uganda, entre outros países
africanos – condena o aumento alarmante dos esforços neocoloniais para entregar o
controle de serviços essenciais a corporações multinacionais que buscam para explorar
nossa necessidade de água para lucrar.
O tema do Dia Mundial da Água deste ano é “Acelerando a Mudança”. É bastante claro,
a partir de décadas de experiências fracassadas com a privatização da água, que
devemos acelerar a mudança desse modelo de exploração para a propriedade e
controle públicos. Devemos também acelerar os investimentos públicos e garantir a
responsabilidade dos funcionários públicos que têm a obrigação de servir aos interesses
das massas, não de poucos privilegiados.

Esta semana, enquanto os governos, a sociedade civil e o sector empresarial se reúnem
na cidade de Nova York para a Conferência das Nações Unidas sobre a Água, a realidade
diária da crise da água é sentida por centenas de milhões em todo o continente africano.
O papel contínuo das corporações de privatização da água e seus representantes na
definição da agenda e das prioridades da Conferência da Água da ONU e da Água da
ONU de forma mais ampla minam a legitimidade desses espaços. O envolvimento da
AquaFed, a organização que representa esta indústria abusiva no cenário mundial, na
coordenação do Dia Mundial da Água é totalmente inapropriado e deve terminar. Prevenir
a captura corporativa é essencial para que o continente cumpra o Objetivo de

Desenvolvimento Estratégico 6, que defende a disponibilidade e gestão sustentável de
água e saneamento para todos até o ano 2030.


Anabela Lemos, Directora da Justiça Ambiental (JA!) em Moçambique referiu que:
“É urgente que se evite a cooptação destes espaços de tomada de decisões pelas
grandes empresas, que vêem a água como um recurso económico e não como um direito
humano. O envolvimento de empresas e corporações que focam os seus objectivos no
lucro mancham o processo e abrem espaço para a privatização de ainda mais recursos
naturais, que pode ocorrer também na forma de poluição, vedações e limitações no
acesso a rios e cursos de água, e controlo de fontes de água das populações locais. A
água deve ser vista como um bem comum, essencial à vida, e não como um recurso ao
serviço do lucro de algumas empresas poderosas!”

O OWORAC, lançado em outubro de 2021 em resposta ao aprofundamento da crise
global da água e ao capitalismo de desastres para os quais a pandemia abriu as portas,
detalhou os impactos mundiais reais da privatização da água nas comunidades em seu
relatório África deve levantar e resistir à privatização da água. Relatos perturbadores dos
abusos de corporações multinacionais como Veolia e Suez, ambas membros da AquaFed,
levaram comunidades em todo o continente a rejeitar a privatização da água em suas
diversas formas, incluindo as chamadas “parcerias público-privadas”.

Akinbode Oluwafemi, Diretor Executivo de Responsabilidade Corporativa e Participação
Pública da África (CAPPA), falando em nome do OWORAC, disse:

“O tema da comemoração do Dia Mundial da Água deste ano reforça a necessidade de
governos a procurar soluções comprovadas para a crise da água no continente dentro do
reino de opções democráticas controladas pela comunidade e financiadas publicamente.
A privatização da água é um fracasso opção que apenas coloca os lucros acima das
pessoas.”

Sani Baba, secretário regional para África e países árabes da federação sindical global
Public Services International (PSI), disse:

“A privatização da água rouba das comunidades o direito à vida e ao bem-estar, da
mesma forma que rouba dos trabalhadores o direito ao trabalho decente. Os governos
africanos devem se recusar a ceder aos ditames do Banco Mundial e de outras
instituições que desejam colonizar nossos recursos hídricos”.

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Petição para travar o projecto da barragem de Mphanda Nkuwa entregue à Assembleia da República

A organização Moçambicana Justiça Ambiental (JA!) entregou na última quarta-feira (21 de Dezembro) uma petição com mais de duas mil e seiscentas assinaturas de cidadãs e cidadãos Moçambicanos para exigir que se trave imediatamente o avanço do controverso projecto da barragem de Mphanda Nkuwa, proposta para o Rio Zambeze.

Os termos em que foi concebido, e nos quais tem avançado, o projecto hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa não vai de acordo com os objectivos fundamentais do Estado Moçambicano consagrados no artigo 11o da Constituição da República, sobretudo no que respeita os direitos humanos e o desenvolvimento equilibrado. Além do mais, este projecto acarreta elevadíssimos riscos ambientais, ecossistémicos, climáticos, sísmicos, sociais e económicos, que ainda não foram devidamente avaliados e estudados pelo governo de Moçambique. Não obstante estes riscos, e os inúmeros pedidos de esclarecimento e de informação enviados pela Justiça Ambiental ao governo e ao Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa (GMNK), o projecto tem estado a avançar, nesta sua nova fase, desde 2018, de forma acelerada e sem o devido escrutínio público.

Além do mais, o projecto está ainda em violação dos artigos 21º, 22º e 24º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, que estabelecem o direito dos povos à livre disposição, proibição de privação do uso de recursos naturais; direito à escolha do modelo de desenvolvimento económico, social e cultural no respeito estrito de suas liberdades e identidade; e direito a um ambinte equilibrado e propício ao seu desenvolvimento.

Importa referir que, embora o projecto esteja a avançar nesta nova etapa há 4 (quatro) anos, ainda não foi realizada nenhuma consulta pública deste projecto, nem nenhuma consulta com as comunidades locais que serão directa e indirectamente afectadas pelo mesmo. Isto está em clara violação de várias directrizes e princípios assumidos pelo país a respeito da protecção e promoção do direito ao consentimento livre, prévio e informado (CLPI).

Os mais de 2.600 Moçambicanos e Moçambicanas exigem, com esta petição, que se promova um diálogo aberto, inclusivo e profundo e que o governo de Moçambique esclareça cabalmente os contornos, objectivos e racional por detrás deste projecto “prioritário”, incluindo:

• De onde vem o investimento e qual a contrapartida?

• Por que é que este projecto é uma prioridade para o País, tendo em conta os nossos níveis

de pobreza e desigualdade; que milhares de crianças não têm lugar na escola, e que ainda

não há serviços de saúde adequados para todos?

• A que se deve a insistência neste projecto, que já foi abandonado tantas vezes? Que outros

interesses existem por detrás de um projecto desta envergadura?

• Foram equacionadas outras alternativas energéticas? Se sim, quais?

• Quem será responsável por indemnizar as comunidades que vivem há 20 anos com o seu

futuro hipotecado, sem poder investir na sua comunidade e em infra-estruturas

necessárias, por medo de perderem os seus investimentos, uma vez que em 2000 foram

aconselhadas pelo governo a não construir nenhuma nova infraestrutura?

• Qual o real propósito da barragem e que hipotéticas mais-valias julgam que traria para o

País a curto e longo prazo, incluindo como planeiam rentabilizá-la?

Exigimos também a elaboração de estudos cientificamente válidos e imparciais que respondam a todas estas questões levantadas desde a aprovacao do estudo de impacto ambiental em 2011 como:

• A indefinição sobre o regime de fluxo em que a barragem irá operar (base-load ou mid-

merit);

• A indefinição sobre a área escolhida para reassentamento das comunidades directamente

afectadas;

• A pobre análise de sedimentos elaborada com dados insuficientes, que não permite uma

análise científica válida;

• A fraca análise sismológica, sem dados concretos e com resultados e conclusões que

contrariam outros estudos de especialistas de renome;

• A fraca análise aos potenciais impactos das mudanças climáticas e mudanças na demanda

de água a montante da barragem, que irá afectar a viabilidade económica do projecto;

• O facto de não terem sido consideradas e tampouco seguidas as directrizes da Comissão

Mundial de Barragens, particularmente no que se refere aos direitos e justiça sociais e

ambientais, entre outras;

• As alternativas energéticas viáveis para o país, comparando e analisando os benefícios e

impactos de cada uma;

• A forma como o projecto irá garantir que os benefícios gerados não serão apropriados por uma pequena elite política e económica nacional, e pelas grandes companhias ransnacionais.

Exigimos ainda que se promova um diálogo aberto, inclusivo e profundo em torno de soluções energéticas limpas, justas e acessíveis a todos os Moçambicanos e Moçambicanas, de forma a enveredarmos por um desenvolvimento sustentável que garanta a protecção dos importantes ecossistemas que garantem a vida no planeta.

A Justiça Ambiental apela ainda que este assunto seja tratado em carácter de urgência, tendo em conta o crescente e preocupante cenário de intimidação e ameaças que temos observado no contexto do nosso trabalho no Distrito de Marara, incluindo acusações de terrorismo, exigência de “autorização para trabalhar no local”, e indicação de que as comunidades locais não devem receber capacitações legais sobre os seus direitos ou informações sobre os impactos das barragens. Vários membros das comunidades que terão de ser reassentadas para dar lugar a este megaprojecto também têm reportado ameaças, intimidações e ‘avisos’ para que não se pronunciem contra o projecto.

Além das assinaturas recolhidas no Distrito de Marara, na Cidade de Maputo e um pouco por todo o país, mais de 70 organizações não-governamentais nacionais, regionais e internacionais assinaram também a petição em formato online, em solidariedade.

É hora de dizermos BASTA a um modelo de desenvolvimento que enriquece as nossas elites e as grandes empresas transnacionais, às custas da maioria da população e da natureza. Vamos juntos exigir projectos de energia limpa, descentralizada e que beneficie o povo Moçambicano!

Leia o texto integral da petição na página da Justiça Ambiental: https://justica-ambiental.org/2020/12/16/salve-o-rio-zambeze-da-barragem-de-mphanda-nkuwa/

#MphandaNkuwaNão

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Comunidades ameaçadas pela barragem de Mphanda Nkuwa acusadas de ‘terroristas’ por terem viajado para um Workshop em Maputo

Apelidar de ‘terroristas’ é a mais recente forma de intimidar, ameaçar, e deter arbitrariamente as pessoas que tenham posições contrárias ao governo. Isto está a acontecer em vários pontos do país, e em particular no distrito de Marara, província de Tete, onde o governo pretende construir a barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa, um projecto altamente controverso que nunca respondeu às inúmeras questões ambientais, sociais, económicas e climáticas que têm sido levantadas por organizações da sociedade civil e especialistas de Moçambique e outros países.

Recentemente, de 22 a 25 de Novembro, a organização moçambicana Justiça Ambiental (JA!) organizou o seu 6o Workshop de Maputo sobre Impunidade Corporativa e Direitos Humanos, que reuniu representantes de várias organizações da sociedade civil, do governo, académicos, advogados, activistas e pessoas afectadas por megaprojectos de várias províncias do país. Da província de Tete, em particular, vieram vários participantes provenientes do distrito de Marara, incluindo o líder da comunidade de Chirodzi-Nsanangue, uma das comunidades em risco de ser reassentada se a proposta barragem de Mphanda Nkuwa fôr construída. Enquanto esteve fora da sua comunidade, o líder recebeu várias chamadas de membros da comunidade a alertá-lo que as autoridades locais estavam muito desagradadas por este ter-se deslocado a Maputo e que estavam a mobilizar a comunidade para eleger um novo líder.

Uns dias após regressar a casa, o líder de Chirodzi-Nsanangue recebeu uma notificação para se apresentar no Comando Distrital de Marara a fim de prestar declarações. Chegando ao Comando, o líder ficou retido durante 10 horas, foi-lhe negado o direito de ser acompanhado pela advogada que estava no local, foi acusado de ser terrorista e foi interrogado a respeito da sua viagem a Maputo pela Comandante Distrital de Marara, por um agente da SERNIC e um representante do Ministério da Defesa. Por fim, pediram-lhe que listasse o nome de todos os membros da sua comunidade que haviam se deslocado a Maputo para participar no Workshop. O líder foi solto por volta das 18h30, sem qualquer esclarecimento adicional.

A equipa da JA! que se encontrava no local a acompanhar os acontecimentos foi igualmente acusada de terrorismo, e informada que não deve fornecer informações às comunidades locais a respeito dos impactos das barragens, ou de problemas causados por outros megaprojectos no país. Tudo isto aparenta ser uma estratégia para intimidar os membros das comunidades que serão afectadas pela proposta barragem de Mphanda Nkuwa e impedi-los de defenderem os seus direitos.

Alguns dias depois, as 10 outras pessoas de Chirodzi e Chococoma que haviam participado no Workshop foram também notificadas para comparecerem no Comando Distrital de Marara no dia 08 de Dezembro, incluindo o ponto focal da JA! na comunidade, para que também fossem interrogados.

Um grande movimento de solidariedade para com os membros das comunidades que estavam sob ameaça emergiu, de diversas partes do país e de outros países. Quando os 10 membros das comunidades chegaram ao Comando Distrital de Marara no dia 08, este assunto estava a circular amplamente nas redes sociais e na rádio. Eles foram interrogados no Comando, mas desta vez, não foram feitas ameaças além da presença intimidadora de agentes policiais armados. O ponto focal da JA! foi interrogado separadamente, em seguida foi-lhe pedido que saísse da sala, e os outros membros da equipa da JA! no local não foram autorizados a entrar. Todos foram dispensados algumas horas depois.

Importa referir que estas situações não são casos isolados, e surgem na sequência de uma série de outras intimidações e restrições que têm sido feitas à equipa da JA! no âmbito do seu trabalho no Distrito de Marara. Por várias ocasiões, a Comandante Distrital de Marara e os Chefes do Posto Administrativo e da Localidade de Marara exigiram à JA! as suas credenciais e prova de comunicação prévia com a PRM, algo que não é exigido por lei. Além disso, vários outros membros da comunidade de Chirodzi-Nsanangue que têm levantado críticas ou questões a respeito da barragem têm reportado crescentes intimidações e ameaças desde Agosto de 2022, momento em que o governo, seus parceiros e empresas interessadas começaram a frequentar a área nesta nova etapa do projecto da barragem de Mphanda Nkuwa.

Exigimos um esclarecimento do Comando Distrital de Marara, do SERNIC, do Ministério da Defesa e do Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa a respeito destas intimidações às comunidades que são ameaçadas pelo projecto de Mphanda Nkuwa: afinal é assim que se obriga o povo a aceitar os projectos de ‘desenvolvimento’?

Exigimos um pronunciamento por parte dos assessores do governo, financiadores e potenciais investidores do projecto de Mphanda Nkuwa, como o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), a Associação Internacional de Hidroelectricidade (IHA), a Agência Norueguesa de Desenvolvimento (NORAD), o Reino da Noruega, o Governo da Suíça, a União Europeia (UE): estão dispostos ter o vosso nome num projecto que já está a contribuir para a violação de Direitos Humanos e liberdades fundamentais das comunidades locais?

Para mais informações, contacte: jamoz2010@gmail.com

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA NA SEMANA DE ACÇÃO DA ÁFRICA CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA 2022

Comunidades africanas levantam suas vozes contra a privatização da água

As comunidades afectadas e aquelas sob ameaça de privatização da água em toda a África pediram aos governos africanos que abandonem a privatização da água e devolvam os sistemas de água privatizados às localidades para uma gestão acessível e equitativa. Comunidades locais na Nigéria, Moçambique, Senegal, Gana, Camarões, Quênia, Gabão, Uganda e uma série de outros países africanos estão fazendo disso sua demanda principal ao marcar a segunda edição da Semana de Acção da África contra a Privatização da Água, que acontece de 11 -14 de Outubro de 2022 para coincidir com as reuniões anuais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.

As comunidades, trabalhando em colaboração com a sociedade civil e grupos trabalhistas sob a égide da “Coligação, Nossa Água, Nosso Direito” estão a realizar reuniões municipais, compromissos comunitários, colectivas de imprensa, marchas de protesto, reuniões com formuladores de políticas e uma série de compromissos para enfatizar sua oposição aos esquemas de privatização da água e à mercantilização da água, promovidos pelo Banco Mundial e outras instituições financeiras internacionais, que continuam a privar as comunidades de seu direito à existência. Em algumas comunidades, o preço da água está fora do alcance dos habitantes locais, forçando mulheres e raparigas a caminharem quilómetros, inclusive expondo-as a perigos para obter água para necessidades básicas.

As comunidades, trabalhando em conjunto com a sociedade civil e sindicatos de trabalhadores, insistem que, embora a água continue sendo uma das necessidades mais fundamentais para a vida, corporações gigantes como Veolia e Suez, apoiadas por instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial, estão explorando essa necessidade básica tentando privatizar a água em todo o continente africano, ameaçando deixar milhões de pessoas em comunidades sofrendo sem água.

Akinbode Oluwafemi, Diretor Executivo de Responsabilidade Corporativa e Participação Pública da África (CAPPA), explicando o significado da comemoração de 2022, disse:

“Quando as comunidades forem privadas de um direito básico que garante sua existência e o vínculo que as manteve conectadas à sua cultura e espiritualidade por gerações, acabará por deixar de existir. É por isso que as comunidades estão a liderar o movimento de resistência ao que as corporações como a Veolia e instituições do Banco Mundial estão comercializando no continente africano. Mas a mensagem é clara. Não queremos que os nossos sistemas de água sejam privatizados”

Sobre os impactos da privatização da água nas comunidades, Anabela Lemos, Directora da Justiça Ambiental – Friends of the Earth Moçambique disse:

Se o governo decidir usar a água para construir uma barragem, ou desviar um curso natural da água para alguma empresa de agronegócio, ou de mineração de carvão e de outros tipos de recursos naturais e esta empresa precisar de uma grande quantidade de água, o governo permitirá, infelizmente, prioriza-se sempre o crescimento económico, o lucro e as corporações. As grandes empresas têm sempre a vantagem sobre as necessidades de sobrevivência das nossas comunidades. Pessoas, ecossistemas e biodiversidade não têm os mesmos direitos que as corporações, por isso consideramos ter chegado o momento das comunidades dizerem BASTA à privatização da água nas suas diferentes formas de actuação.”

A primeira Semana de Acção da África contra a Privatização da Água, realizada de 11 a 15 de Outubro de 2021, foi liderada pela sociedade civil e grupos trabalhistas no continente. O ponto alto foi o lançamento de um relatório – África Precisa Levantar-se e Resistir a Privatização da Água – que detalha como a privatização se tornou a ameaça mais potente ao direito humano à água dos africanos. Ele cita os fracassos da privatização da água nos Estados Unidos, Chile e França como lições para os governos africanos sendo pressionados pelo Banco Mundial e uma série de instituições financeiras multilaterais a seguir o caminho da privatização. As versões em português e francês do relatório serão divulgadas em uma coletiva de imprensa em 11 de Outubro, onde histórias e realidades das comunidades africanas serão apresentadas em vídeos para iniciar a semana de acção.

Uma das principais demandas das comunidades é que seus governos suspendam os planos de privatização e, em vez disso, invistam em sistemas públicos de água que incluam participação pública significativa na governação da água, com foco particular nas perspectivas daqueles que normalmente ficam de fora dos processos de tomada de decisão, incluindo, mas não limitado a mulheres, pessoas de baixa renda e comunidades rurais.

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Parem com o Gás no Continente!- COMUNICADO DA CONFERÊNCIA OILWATCH AFRICA, 2022

A Oilwatch África (OWA) realizou a Conferência e Reunião Geral Anual de 2022 em Acra, Gana, entre 8 e 12 de Agosto. O tema do encontro anual foi “Parem com o Gás no continente: Canais de Descontentamento.” A Conferência teve apresentações e a representação de OSC’s, activistas, académicos, jornalistas, pescadores e Eco-defensores, de comunidades afectadas por combustíveis fósseis por todo o continente. A Conferência providenciou também mais uma oportunidade de aprofundar a missão da OWA, como uma rede de pessoas e organizações para a construção de solidariedade em prol do fim da expansão das actividades de gás e petróleo, devido aos seus impactos negativos nas pessoas e meio-ambiente em África.

Algumas das principais observações feitas pelos delegados incluíram os seguintes aspectos:

  • Que a actual corrida aos recursos de petróleo, gás e minerais de África, equivale a uma perpetuação dos modelos extractivos de exploração colonial, o mesmo modelo que condenou o continente ao comércio predatório de escravos, seguido da violação maciça de recursos agrícolas e florestais, antes da actual iteração com o foco nos minerais e combustíveis fósseis.
  • Que o argumento de que a África merece utilizar os seus recursos naturais para suficiência energética e desenvolvimento, oculta o facto de que a extracção dos recursos naturais tem sido historicamente orientada para a exportação, em benefício das necessidades de consumo do Hemisfério Norte e dificilmente aponta para as necessidades do continente Africano. E, que a retórica dos líderes Africanos de que os combustíveis fósseis poderiam ser utilizados pelo continente como um combustível de transição “menos prejudicial”, é uma ilusão, porque o gás contribúi massivamente para alterações climáticas, devido ao seu teor de metano.
  • Que o financiamento e desenvolvimento contínuo de grandes projectos de gasodutos, tais como o projecto do Oleoduto de Petróleo Bruto da África Oriental (EACOP), o Projecto de Gasoduto da África Ocidental WAGP, e o Gasoduto Trans-Sahariano, entre outros, constituem uma agressão aos Direitos da Terra das comunidades e, representam perturbações maciças dos meios de subsistência, conflitos, violações dos Direitos Humanos e degradação ambiental em todo o continente.
  • Que a tendência actual em que as companhias multinacionais de petróleo e gás vendem as suas acções, em activos de petróleo e gás em terra e se deslocam para fora dos países Africanos, ou para mais longe da costa, equivale a uma renúncia à responsabilidade por danos históricos causados pelas suas actividades nesses mesmos países.
  • Que o Acordo de Paris e a sua meta de 1.5 graus celcius, impulsionado pelas chamadas Contribuições Determinadas a Nível Nacional (CND), é uma enorme traição para África, uma vez que o continente aquece cerca de 50% acima da média global, o que significa que, seguindo as CND’s, no melhor dos cenários, África está literalmente condenada a arder.
  • Que África é rica em energias renováveis e que obtém a crescente competitividade das tecnologias de energia limpa e o potencial de fazer avançar a sua transição energética por uma via de carbono zero. A propósito, África tem o potencial solar mais elevado do mundo, mas é actualmente responsável por apenas um.
  • Que os países industrializados têm demonstrado insinceridade ao gastar, sistemáticamente, cerca de 2 triliões de dólares anuais em equipamento militar e de guerra, ao mesmo tempo que arrastam o passo quanto aos compromissos climáticos, especialmente o do financiamento da adaptação.
  • Que as normas emergentes de política global e regional, em torno de uma chamada revolução da economia azul, constituem uma enorme ameaça para os recursos marítimos e aquáticos das comunidades costeiras africanas, assim como para o meio-ambiente do continente e, irão incentivar ainda mais a pesca ilegal e excessiva nas suas águas.
  • Que tem havido um aumento da vitimização dos Eco-defensores, em todo o continente, pelas companhias petrolíferas e seus colaboradores estatais, e que este clima repressivo tem sido agravado nos últimos tempos pela proliferação das chamadas reformas regulatórias do petróleo e gás (como a Lei da Indústria Petrolífera da Nigéria de 2021) que diminuem o espaço cívico, ao constranger a voz e a agência das comunidades afectadas pela extracção, na tomada de decisões relacionadas com os seus recursos naturais e ambiente.

A Oilwatch Africa denunciou os esforços para encurralar África no caminho da exploração dos combustíveis fósseis, para satisfazer as necessidades energéticas das nações poluentes e para alimentar a ganância da indústria dos combustíveis fósseis. Para assegurar uma transição justa e justiça climática segura para os nossos povos, a conferência fez as seguintes exigências:

1. Deve haver uma interrupção de todas as novas actividades de exploração e extracção de carvão, petróleo ou gás em África, em consonância com os imperativos da transição energética. Exigimos, especificamente, a paralisação dos planos de exploração e expansão de petróleo na bacia da Virunga na RDC, na região de Keta no Gana, no Delta do Okavango no Botswana, na Bacia do Rio Orange na Namíbia, e a paralisação de todos os planos para o Projecto de Gasoduto da África Ocidental, o Projecto de Gasoduto Trans-Sahariano, e o Projecto de Gasoduto da África Oriental, entre outros.

2. Que os governos Africanos devem aproveitar o acolhimento da COP27, este ano, para exigir medidas de grande alcance no que diz respeito à adaptação climática e ao financiamento, incluindo cortes nas fontes das emissões.

3. Os governos Africanos devem exigir, dos países industrializados poluidores, uma dívida climática anual de 2 triliões de dólares, sendo este o montante que actualmente gastam em equipamento militar e guerra, anualmente. Isto pagará por perdas e danos e servirá como reparação parcial dos danos históricos.

4. Que as multinacionais de petróleo e gás, que actualmente planeam alienar e escapar à responsabilidade pelos seus danos históricos às comunidades Africanas (como a Shell e a Exxon Mobil no Delta do Níger da Nigéria), devem restaurar o ambiente e compensar as comunidades pelo ecocídio cometido nos seus territórios, antes da sua saída.

5. Os Estados Africanos devem desenvolver planos de transição de energia centrados em África, tanto onde estes ainda não existem, como onde já existem, para integrar tais planos em planos nacionais de desenvolvimento mais amplos, de modo a tomar conhecimento do enorme potencial renovável da África.

6. Os países Africanos e a União Africana, devem ter cautela com a chamada economia azul, e devem sobretudo denunciar, incondicionalmente, todas as tentativas de normalizar a Exploração Mineira do Fundo do Mar (DSM) dentro do continente.

7. Instituições Financeiras Internacionais, incluindo o Banco Africano de Desenvolvimento e agências de crédito à exportação, devem cortar todos os financiamentos a projectos de combustíveis fósseis, em África.

  1. Governos Africanos e organizações internacionais, devem respeitar o Direito à Vida, dos Direitos Humanos e dos Eco-defensores no continente, que são cada vez mais reprimidos.

Adoptado a 11 de Agosto de 2022, pelos membros e organizações da Oilwatch África:

1. Costa do Marfim

2. República Democrática do Congo

3. Gana

4. Quénia

5. Moçambique

6. Nigéria

7. Senegal

8. África do Sul

9. Sul do Sudão

10. Suazilândia/Eswatini

11. Chade

12. Togo

13. Uganda

Organizações / Redes:

1. FishNet Alliance (Aliança FishNet)

2. Policy Alert (Alerta Política)

3. We the People (Nós o Povo)

4. Peace Point Development Foundation (Fundação para o Desenvolvimento do Ponto de Paz)

5. Oilwatch Gana

6. Oil Change International (Troca de Petróleo Internacional)

7. Host Communities Network, Nigeria (Rede de Comunidades Anfitriãs, Nigéria)

8. Environmental Rights Action/Friends of the Earth Nigeria (Acção de Direitos Ambientais/Amigos da Terra Nigéria)

9. Kebetkache Women Development Centre (Centro de Desenvolvimento da Mulher, Kebetkache)

10. Foundation for Development in the Sahel (FDS) (Fundação para o Desenvolvimento no Sahel (FDS))

11. Health of Mother Earth Foundation (Fundação Saúde da Mãe Terra)

12. Africa Institute for Energy Governance (AFIEGO) (Instituto Africano de Governação da Energia (AFIEGO))

13. Jeunes Volontaires pour l’Environnement (JVE) (Jovens Voluntários pelo Ambiente)

14. Justiça Ambiental (JA)

15. Ground Work

16. Friends of Lake Turkana (Amigos do Lago Turkana)

17. Femmes Solidaire (FESO) (Mulheres em Solidariedade)

18. Centre for Research and Action on Economic, Social and Cultural Rights (CRADESC) (Centro de Investigação e Acção sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (CRADESC))

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Inundações no Paquistão – mais uma catástrofe climática a devastar o Hemisfério Sul

De Junho a Setembro deste ano, no Paquistão, chuvas torrenciais sem precedentes, causaram inundações numa escala inimaginável, deixando um terço do país debaixo de água. O Secretário-Geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, descreveu este evento como uma “monção sobre esteróides”

Foram divulgados nos meios de comunicação, imagens e vídeos de edifícios inteiros, de vários andares, em colapso, auto-estradas e pontes a serem arrastadas e pessoas a serem afogadas por cascatas urbanas. Mas nessa altura, as cheias, principalmente nas regiões do Sindh e Balochistão, já duravam há semanas, escondidas do mundo. O silêncio dos principais meios de comunicação e dos governos internacionais era insurdecedor e quando as notícias finalmente ultrapassaram as barreiras dos meios de comunicação, já era tarde demais. E mesmo nessa altura, foi difícil acreditar como é que tal catástrofe estaria a acontecer, como a vida inteira das pessoas estava a ser destruída. Enquanto isso, o mundo se limitava a assistir, prestando atenção a outras questões que pareciam ser mais pertinentes e de partes mais importantes do mundo.

A situação no Paquistão é desoladora – a ONU diz que quase 650 000 de mulheres nas áreas afectadas necessitam desesperadamente de serviços de maternidade. Em todo o país, 1460 centros de saúde foram total ou parcialmente destruídos, e milhares de pessoas estão a viver em tendas à beira da estrada, sem casas de banho.

A ligação entre a crise climática e as inundações é clara – o Ministro do Clima, do Paquistão, Sherry Rehman, apontou à Agence France-Presse: “Isto está muito longe de ser uma monção normal [estação do ano] – é uma distopia climática à nossa porta. Estamos neste momento no ground zero da linha da frente de eventos climáticos extremos, numa implacável cascata de ondas de calor, incêndios florestais, inundações repentinas, múltiplas erupções de lagos glaciares, inundações, e agora a monção monstruosa da década está a causar uma devastação contínua em todo o país”. Na província de Sindh, a quantidade de precipitação foi 4,5 vezes maior que a média dos últimos 30 anos.

O mais revoltante, é que o país nem sequer é marginalmente responsável pela crise climática, mas tem sido um dos mais afectados, por uma catástrofe de origem humana que é apenas um sintoma da emergência climática que o mundo enfrenta. Uma emergência que foi criada e beneficiada pelos Estados e empresas ricas do Hemisfério Norte, mas que devastou sobretudo povos do Hemisfério Sul. O director residente do Comité Internacional de Resgate, Shabnam Baloch, afirmou: “Apesar de produzir menos de 1% da pegada de carbono mundial, o país está a sofrer as consequências da inacção mundial e permanece no top 10 dos países que enfrentam as consequências”.

Enquanto os governos e corporações continuarem a perpetuar os aspectos mais feios do sistema capitalista, possibilitando e encorajando a extracção de combustíveis fósseis, é muito provável que não sejam as últimas inundações no Paquistão, assim como os ciclones Idai e Kenneth, também não serão os últimos em Moçambique, e até mesmo as recentes inundações em Durban, não serão as últimas. Mas os culpados recusam-se a ser responsabilizados, por isso temos de nos certificar que eles também seráo ensurdecidos pela sirene gritante que eles próprios detonaram.

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Lei das organizações sem fins lucrativos

– Uma revisão a uma parte da Lei das Associações ou um atentado à liberdade das organizações sem fins lucrativos, reconhecido na Constituição da República?

Foi recentemente aprovada pelo Conselho de Ministros uma proposta de Lei das Organizações sem fins lucrativos que levanta inúmeras e sérias preocupações por parte da sociedade civil e associações da sociedade civil, relativamente aos reais propósitos por trás desta proposta de Lei.

Há muito que se pretende rever a Lei das Associações, para adequa-la ao actual contexto, procedimentos e assim assegurar a efectiva participação dos cidadãos nos mais diversos aspectos do processo democrático em Moçambique. No entanto, esta proposta de Lei não representa de forma alguma o processo de revisão que se pretendia, nem tão pouco vem simplificar ou promover uma maior e melhor participação dos cidadãos no desenvolvimento do país, pelo contrário restringe e viola direitos e liberdades já reconhecidas na Constituição da República.

A presente proposta ignora por completo o facto da participação pública ser inerente ao príncipio de Estado de Direito Democrático estabelecido no artigo 3 da CRM, pois as organizações da sociedade civil, principais visados nesta lei, e os cidadãos no geral não participaram no processo de revisão da presente proposta de lei.

A alegada fundamentação para a revisão da Lei, particularmente para o controle exagerado e ilegal que se pretende impor às associações na presente proposta, assenta-se nos esforços do governo de combate ao terrorismo e ao branqueamento de capitais, no entanto, em momento algum se apresentam evidências claras, nem tão pouco indícios de qualquer ligação entre as associações e o terrorismo e branqueamento de capitais que se pretende combater. Estamos cientes de que as liberdades e direitos consagrados na Constituição da república não são absolutos e portanto são passíveis de ser em certa medida restringidos, desde que as restrições pretendidas sejam devidamente fundamentadas, com base em análises sérias e evidências, demonstrando o risco ou a ligação que se alega, que não é o presente caso.

Sob diferentes pretextos, o governo tem cada vez mais limitado o espaço de actuação e as liberdades dos cidadãos e da sociedade civil em geral. Este controle tem sido bastante evidente na repressão policial e demonstração de forças, com que é recebida qualquer possibilidade de manifestação pública, seja pelo aumento do custo de vida, seja para reivindicar direitos como tem sido frenquente em comunidades afectadas por megaprojectos, todas estas iniciativas são agressivamente combatidas, cultiva-se o medo, para que ninguém se atreva a sequer ter a ideia de manifestar-se!

Este controle e repressão tem sido evidente no trabalho de muitas associações, tanto nacionais, como provinciais e locais, particularmente as que trabalham junto a comunidades afectadas seja por megaprojectos ou por deslocamentos forçados, as que apoiam na denúncia de violação de direitos e que fazem eco às vozes dos mais silenciados, as que denunciam a imensa rede de corrupção que inviabiliza o futuro do nosso país, muitas destas tem sido combatidas, acusadas de defender interesses externos, acusadas até de favorecer ou facilitar o terrorismo, acusações sérias e extremamente graves, sem qualquer fundamento ou base, simplesmente porque incomodam.

A presente proposta de Lei, a ser aprovada, irá muito provavelmente ditar a extinção de muitas destas associações, pois atribui ao governo excessivo poder sobre as associações, sobre o seu funcionamento e inclusive sobre o seu processo democrático de tomada de decisões, dando poderes ao governo para uma uma excessiva interferência no trabalho destas e até sobre a sua extinção. Por exemplo, o Artigo 33 da proposta de Lei exige que as associações apresentem a diversos orgãos do governo os seus relatórios de actividades e financeiro no primeiro trimestre de cada ano, e a não apresentação deste por duas vezes consecutivas implica a extinção da associação.

Importa esclarecer que a maioria, se não todas, as associações que recebem financiamento para o seu trabalho, recebem-no mediante um plano de trabalho, um acordo ou contrato com os financiadores, que curiosamente também financiam o Orçamento Geral do Estado e o governo, e via transferencia bancária. Para além disto, os bancos para disponibilizar os fundos exigem os contratos assinados por ambas as partes, portanto o controle que alegam ser fundamental para evitar o branqueamento de capitais já existe, e as associações já disponibilizam toda a informação sobre os fundos que recebem. Para além do controle já feito pelo sistema bancário, a maioria das associações tem os seus planos de trabalho, elabora relatorios anuais de actividades e relatorios de prestação de contas e levam a cabo auditorias anuais que são partilhadas com os seus financiadores onde devem claramente demonstrar que os fundos recebidos foram utilizados para os propósitos previamente acordados.

Estes relatórios, controle e evidências não são suficientes para demonstrar que não há branqueamento de capitais? Que os fundos recebidos não estão de forma alguma a financiar o terrorismo? Se de facto, o objectivo da presente proposta é a luta contra o terrorismo e o branqueamento de capitais claramente não há fundamento algum para a interferência e controle que o governo pretende assegurar sobre as associações, e sobre os cidadãos ao restringir o seu direito à associação.

Estas pretensões levantam inúmeras suspeitas, entre estas, a quem favorece o silêncio das associações? A quem favorece o silêncio da sociedade civil? A quem incomoda este poder de nos associarmos e lutarmos por direitos, por justiça, por boa governação e transparência, por soluções viáveis, sustentáveis e que de facto favorecem e contribuem para o desenvolvimento local? A quem favorece extinguir associações que trabalham por um país melhor para todos e não apenas alguns?

Outro aspecto, entre tantos, nesta proposta de lei que levanta suspeita é distinção e separação entre as associações mediante o seu objectivo, nesta proposta de lei não estão abrangidas as associações religiosas, culturais, desportivas nem os partidos políticos, será que estas não correm o mesmo tipo de riscos no que se refere ao branqueamento de capitais e terrorismo? Não estão igualmente vulneráveis?

Se a presente proposta de Lei for aprovada pela Assembleia da República estará em clara e grave violação a direitos e liberdades consagradas na Constituição da República e na Carta Africana de Direitos Humanos que Moçambique ractificou, e contraria os principios e directrizes da Comissão Africana dos Direitos Humanos.

Os Estados não devem usar o combate ao terrorismo como um pretexto para restringir liberdades fundamentais, incluindo a liberdade religiosa e de consciência, expressão, associação, reunião e deslocação, e o direito à privacidade e propriedade”. Princípios e Diretrizes sobre Direitos Humanos e dos Povos no Combate ao Terrorismo na África – Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

A luta continua… por um país justo, livre, transparente e onde todos tem os mesmo direitos!

#NadaParaNóSemNós

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COMUNICADO

Campanha sobre a Proposta de Lei que estabelece o regime jurídico de criação,
organização e funcionamento das Organizações Sem Fins Lucrativos

‘POR UMA LEI DAS ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS QUE GARANTE O
LIVRO ASSOCIATIVISMO E CONSENTÂNEA COM OS DIREITOS E LIBERDADES
CONSTITUCIONAIS’


As organizações da Sociedade civil e os cidadãos no geral, foram surpreendidos com o recente
anúncio da aprovação, pelo Conselho de Ministros, da Proposta das Organizações Sem Fins
Lucrativos na República de Moçambique que, se for aprovado pela assembleia da República,
revoga os instrumentos legais que regulam as associações e organizações não governamentais
estrangeiras, nomeadamente a Lei nº. 8/91 de 18 de Julho, o Decreto nº 55/ 98, de 13 de Outubro
e todos os dispositivos que contrariem a presente Lei. Conforme se fundamenta na própria proposta
de Lei feita pelo Governo, ela mesma tem como base a necessidade de se estabelecer o regime
jurídico das Organizações Sem Fins Lucrativos à nova realidade do país e a actual conjuntura
político-social e económica, em conformidade com os padrões normativos internacionais sobre a
matéria, determinando o seu mecanismo e procedimentos de actuação que tornam o direito a livre
associação passível de ser exercitado e no respeito pelos demais princípios e direitos
constitucionalmente estabelecidos.
Depois de terem feito uma análise a proposta de lei das Organizações Sem Fins Lucrativos,
promovida pelo governo, as organizações da sociedade civil constataram que parte significativa
das disposições que constam da proposta de lei, a ser submetida à apreciação da Assembleia da
República para os devidos efeitos de aprovação em lei representa um retrocesso nos esforços feitos
ao longo dos anos para a consolidação do Estado de Direito Democrático e salvaguarda dos direitos
e liberdades fundamentais, na medida em que apresentam diversas disposições que violam a
Liberdade de Associação, a Participação Pública, e outros Direitos e Liberdades Fundamentais conexos que são fundamentais para o exercício da cidadania, bem como para o processo da
democratização do País e desenvolvimento do espaço cívico, conforme o Estabelecido na
Constituição da República de Moçambique (CRM) que estabelece no artigo 52, o seguinte:

  1. Os cidadãos gozam da liberdade de associação.
  2. As organizações sociais e as associações têm direito de prosseguir os seus fins, criar
    instituições destinadas a alcançar os seus objectivos específicos e possuir património para
    a realização das suas actividades, nos termos da lei.
  3. São proibidas as associações armadas de tipo militar ou paramilitar e as que promovam a
    violência, o racismo, a xenofobia ou que prossigam fins contrários à lei.
    No mesmo sentido, o artigo 78 da CRM determina:
  4. As organizações sociais, como formas de associação com finalidades e interesses próprio,
    desempenham um papel importante na promoção da democracia e na participação dos
    cidadãos na vida pública.
  5. As organizações sociais contribuem para a realização dos direitos e liberdades dos
    cidadãos, bem como para a elevação da consciência individual e colectiva no cumprimento
    dos deveres cívicos.
    Ora, estranha e propositadamente, a proposta de Organizações Sem Fins Lucrativos não se mostra
    em conformidade com a CRM por constituir uma ameaça à essência da liberdade de associação
    estabelecida no artigo 52 e 78 da CRM e, sobretudo, por manifesta contradição com os princípios
    e objectivos fundamentais constitucionalmente consagrados, quais sejam:
    a. Princípio do Estado de Direito Democrático plasmado no artigo 3 da CRM que
    determina que “a República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no
    pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos
    direitos e liberdades dos cidadãos.” As normas da proposta de lei das organizações sem
    fins lucrativos como são casos das que estabelecem uma ambígua e abusiva interferência
    do governo no seu modo de funcionamento. Aliás, as normas da Proposta de lei em causa
    2limitam rigidamente o funcionamento dos órgãos sociais das organizações sem fins
    lucrativos, são contrárias à prática da democracia. Mais do que isso, é que a proposta de lei
    em referência foi aprovada pelo governo sem a necessária participação pública dos maiores
    interessados que são as próprias organizações sem fins lucrativos, num clara ignorância do
    facto da participação pública ser inerente ao princípio do Estado de Direito Democrático
    estabelecido no artigo 3 da CRM de tal sorte que violar a participação pública é,
    simultaneamente, violar o princípio do Estado de Direito Democrático do qual se funda a
    nossa Constituição e que deve nortear a actividade do Estado.
    b. Princípio do constitucionalismo previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 2 da CRM que
    determinam, respectivamente, que: “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na
    legalidade.” “As normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do
    ordenamento jurídico.”
    A Proposta de lei objecto deste comunicado estabelece limitações à liberdade de associação
    não previstas na Constituição da República. Um dos papeis das organizações da sociedade da
    sociedade civil é monitorar a actividade do Governo no quadro do Estado de Direito
    Democrático. No entanto, a proposta de lei em causa confere poderes exacerbados ao Governo
    que passam por extinguir estas mesmas organizações e determinar como as mesmas devem
    realizar as suas actividades, o que é contrário a independência e essência das mesmas previstas
    nos artigos 52 e 78 da CRM. Em bom rigor jurídico, há qui violação da supremacia
    constitucional relativamente ao processo de limitação dos direitos, liberdades e garantias dos
    cidadãos: “O exercício dos direitos e liberdades pode ser limitado em razão da salvaguarda
    de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição.” (n.º2 do artigo 56 da CRM). “A
    lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
    Constituição.” (n.º 3 do artigo 56 da CRM). O que não é o caso da proposta de lei em análise.
    c. Objectivo fundamental previsto a alínea e) do artigo 11 da CRM que consiste na
    “defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei”;
    a proposta de lei das organizações sem fins lucrativos ao limitar o funcionamento das
    organizações visadas sem base constitucional para o efeito e estabelecer normas que visam
    extingui-las com base no poder discricionário do Estado viola este objectivo, uma vez que
    o associativismo, mas do que integrar os direitos humanos promove outros direitos
    3humanos como a liberdade de expressão, a liberdade de manifestação, o direito à
    informação, para além de que o associativismo é basilar para o exercício da cidadania.
    d. Objectivo fundamental previsto a alínea f) do artigo 11 da CRM que consiste no
    reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e
    individual. Um dos símbolos do processo da democratização do nosso país é a
    possibilidade de existência de organizações sociais que de forma independente monitoram
    a actividade governamental e a gestão do bem público. No entanto, a independência e livre
    funcionamento das organizações está em perigo com a possibilidade da aprovação da
    referida proposta em Lei pela Assembleia da República nos termos em que foi concebido,
    contendo normas que permitem o governo ameaçar e determinar o modo de realização das
    actividades das organizações, sob pena de extinção.
    e. Objectivo fundamental previsto a alínea g) do artigo 11 da CRM que consiste na
    promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz. A proposta de lei
    em causa é intolerante para com a actividade independente das organizações da sociedade
    civil e apresenta normas que visam silencia-las ou transformá-las em uma espécie de
    entidades governamentais. Aliás, sobre o regime jurídico, refere o artigo 4 da Proposta de
    lei em análise que “as Organizações Sem Fins Lucrativos regem-se pela presente lei e
    subsidiariamente pela legislação sobre a prevenção, repressão e combate ao terrorismo e
    a proliferação de armas de destruição em massa, sobre branqueamento de capitais e
    demais legislação aplicável.” Esta legislação recentemente aprovada pela Assembleia da
    República é extremamente limitadora da liberdade de associação e atribui carta branca ao
    Governo para um exacerbado policiamento através do poder discricionário sobre as
    organizações da sociedade civil, com o falso argumento de combate ao terrorismo e ao
    branqueamento de capitais.
    Quanto a autonomia das organizações sem fins lucrativos
    Importa referir que em consonância com a CRM, o artigo 9 da proposta de lei que estabelece o
    regime jurídico de criação, organização e funcionamento das Organizações Sem Fins Lucrativos
    na República de Moçambique relativamente à autonomia estabelece o seguinte:
    “As Organizações Não-Governamentais Nacionais gozam de autonomia administrativa,
    patrimonial e financeira e prosseguem os seus fins livremente, de acordo com os princípios gerais
    4do direito e a vontade dos associados expressa nos estatutos, e nas deliberações dos órgãos sociais
    sem interferência de qualquer entidade pública ou privada, nacional ou estrangeira, salvo as que
    resultem de decisão judicial e nos casos previstos na presente Lei.”
    Todavia, muitas das disposições que constam da proposta contraria os termos, senão o sentido e
    alcance desta norma sobre a autonomia das organizações não governamentais, senão vejamos:
    a. Refere o n.º 2 do artigo 21 da proposta de lei em causa que “os membros dos órgãos sociais
    não podem abster-se de votar nas deliberações tomadas em reuniões que estejam
    presentes, e são responsáveis pelos prejuízos delas decorrentes, salvo se houverem
    manifestado a sua discordância.” Ora, não se percebe a razoabilidade desta norma em
    proibir os membros dos órgãos sociais de se absterem de votar nas deliberações tomadas
    em reuniões que estejam presente e nem se percebe, com clareza, as consequências em caso
    de efectiva abstenção. No mesmo sentido, não se vislumbra a racionabilidade de
    responsabilização por prejuízos causado por exercício de um direito de se abster de votar.
    b. A proposta de lei aqui em análise é excessivamente interventiva e proibitiva relativamente
    a estrutura e funcionamento dos órgãos sociais das Organizações Sem Fins Lucrativos no
    sentido de impor uma certa rigidez no funcionamento da organização de tal maneira que
    constitui limitação infundada da liberdade de associação, uma vez que fere a ideia de
    flexibilidade na determinação das funções estatutárias das organizações tendo em conta o
    objecto, campo de actuação e finalidades das mesmas.
    c. No que respeita ao artigo 33 da mesma proposta de lei que estabelece a regra da prova de
    prossecução do objecto das organizações sem fins lucrativos, não é de se aceitar os termos
    em que a mesma está prevista, na medida em que só faz sentido a obrigação da prova do
    bom e regular funcionamento em caso de haver indícios ou sinais bastante que justifiquem
    tal obrigação. Trata-se de uma norma que estabelece a inversão do ônus de prova, sem
    motivos bastante para o efeito.
    d. Mais preocupante e assustador ainda, é o facto de se pretender sancionar a organização
    com a medida grave de extinção da mesma pelo Governo por não apresentação do relatório
    de actividade e da contabilização dos fundos. Daqui percebe-se a pretensão do Governo
    em eliminar as organizações sem fins lucrativos nos termos concebidos na Constituição da
    República, sem no entanto rever a própria Constituição da República, o que é juridicamente
    5incoerente e inaplicável. A não apresentação consecutiva de 2 relatórios pode ser
    fundamento para investigação de modo a se procurar perceber as razões que ditaram essa
    falta de apresentação de relatórios. A ideia de extinção das organizações sem fins lucrativos
    pelo cometimento de algumas irregularidades que podem ser resolvidas com outras
    penalizações menos graves é forçoso para obriga-las a funcionar alinhadas com o governo
    como forma de sobrevivência. É intromissão, intimidatório e constitui insegurança no
    existencialismo e funcionamento das organizações sem fins lucrativos o facto da proposta
    da lei em análise dar competência a entidade governamental que confere reconhecimento
    as mesmas para decidir sobre a extinção destas com base em fundamentos mesquinhos!
    e. A entidade governamental que procede o reconhecimento das organizações sociais não
    significa que a mesma tem poder de interferir e orientar o funcionamento das Organizações
    Sem Fins Lucrativos e devendo estas prestar contas das suas actividades àquela entidade
    como se de uma relação governamental de subordinação se tratasse, ou seja, como se
    existisse uma relação hierárquica administrativa.
    f. Estabelece o n.º 3 do artigo 41 da já referida proposta de lei em ataque que: “As
    organizações beneficiárias de doações não podem dar descaminho às verbas recebidas,
    nem afectá-las a outras actividades, sob pena de responderem civil e criminalmente,
    juntamente com os órgãos sociais, nos termos da lei civil e da llei penal.” Esta norma
    é mais uma inequívoca evidência de interferência injustificável no funcionamento das
    organizações sem fins lucrativos pretendendo policiar, no sentido prejudicial das suas
    actividades, na medida em que cabe as próprias organizações e os seus parceiros decidirem
    sobre onde afectar as verbas recebidas e que actividades realizarem, ainda que as alterem,
    desde que caibam no objectivo e finalidades das mesmas de acordo com a liberdade de
    associação à luz do artigo 52 e 78 da Constituição da República. Pelo que, não há espaço
    para responsabilidade civil ou criminal por essa actuação. Caso contrário, fica prejudicada
    as actividades de emergência e de quaisquer outras de fiscalização da actividade estadual
    que as organizações pretendam desenvolver ainda que não tenham planificado aquando do
    recebimento das verbas e, consequentemente, prejudicada o exercício da ampla liberdade
    do exercício da democracia e da cidadania. A liberdade de associação é inerente ao
    princípio constitucional da permanente participação democrática dos cidadãos na vida
    pública, de modo a formular e manifestar o seu juízo de opinião sobre a gestão da coisa
    6pública e assim influenciar os processos decisórios das entidades que exercem o poder
    público.
    Quanto a questão dos padrões internacionais
    O preâmbulo da proposta de lei das organizações sem fins lucrativos refere que o funcionamento
    das mesmas deve estar em conformidade com os padrões normativos internacionais. Ora, as
    normas do direito internacional sobre os direitos humanos de que o Estado moçambicano é parte,
    cujos princípios orientadores inspiraram a elaboração da CRM, também protegem os direitos e
    liberdades fundamentais, incluindo o direito à liberdade associação, de restrições ou limitações
    arbitrárias que não respeitam o quadro constitucional como se pode aferir da Declaração Universal
    dos Direitos Humanos, da Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos, do Pacto
    internacional dos Direitos Civis e Políticos, etc. Aliás, determina o artigo 43 da CRM que: “Os
    preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados de
    harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana sobre os
    Direitos Humanos e dos Povos.”
    Concluindo
    Pelos argumentos apresentados neste comunicado, não deve, pois, a proposta de lei em referência
    ser aprovada e vigorar no ordenamento jurídico moçambicano nos termos em que está elaborada.
    O mais prudente é levar a proposta a um debate público abrangente, sobretudo com o grupo alvo
    que são as organizações da sociedade civil e o cidadão no geral.
    É, pois nestes termos, que as organizações da sociedade civil pretendem levar a cabo desde já uma
    campanha nacional para que seja aprovada uma lei das organizações sem fins lucrativos que
    respeite a liberdade de associação e os ditames constitucionais para o efeito, com a devida
    participação pública no processo de produção e aprovação da lei em causa.
    Essa campanha vai consistir em:
  6. Realizar, a partir de hoje, um movimento de auscultação e mobilização das organizações
    das Sociedade Civil e outras entidades colectivas e individuais para que possam dar as suas
    contribuições sobre os problemas e propostas de melhoria. Este processo visa captar as
    78
    perceções, desafios e expectativas dos cidadãos e das organizações da sociedade civil na
    sua diversidade e vai ser feito através de um canal online de comentários à Proposta da Lei
    das Organizações Sem Fins Lucrativos, assim como através de Seminários Provinciais, a
    terem lugar amanha (dia 21 de Setembro), em todas as capitais provinciais, cujos locais
    serão anunciados ao longo do dia de hoje (dia 20 de Setembro);
  7. Com base nas contribuições recolhidas, vai ser feita um parecer analítico sobre as propostas
    das Leis, compreendendo as medidas rectificativas propostas pelas Organizações Sem Fins
    Lucrativos, a nível Nacional, expressando a sua vontade e os seus pontos de vistas em
    relação ao que deve nortear a revisão;
  8. A campanha também vai incluir um conjunto de esforços de diálogo e lobby com os
    diversos actores relevantes, em particular o Governo e o Parlamento, por forma a
    adoptarem as medidas correctivas a serem propostas pelas Organizações Sem Fins
    Lucrativos;
  9. Para os devidos efeitos e, em casos de necessidade, as Organizações Sem Fins Lucrativos
    não irão prescindir do recurso aos processos de litigação, assim como do Direito à
    Manifestação, caso os seus resultados não sejam alcançados a partir dos encontros de
    advocacia e negociação. 9
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A nova diretiva da UE sobre a diligência devida- um passo relevante para acabar com a impunidade corporativa?

Este é um momento crítico para a União Europeia (UE) no que diz respeito ao sofrimento humano e impactos ambientais, causados por corporações transnacionais, com ênfase especial nas corporações de combustíveis fósseis, que continuam a tomar medidas deliberadas para queimar o planeta. Foi apresentada uma nova lei importante, ‘a qual foi dada o nome de Directiva de Diligência Devida da UE para Sustentabilidade Corporativa’, e que ainda está sob discussão.

No entanto, esta lei deixa muito a desejar e, na sua forma atual, pode acabar por fornecer às companhias, estados investidores e instituições financeiras, um mero exercício de assinalar com “certos” nas caixas, e de criar brechas que acabarão por permiti-las que continuem, com impunidade, a devastar a terra, o clima e as pessoas. O caso da indústria de gás em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, é um exemplo concreto de como isto pode e inclusive já está a acontecer.

Muitas organizações na Europa, incluindo os Amigos da Terra Europa (Friends of The Earth Europe) têm lutado contra a aprovação desta lei na sua corrente forma. Inclusive, estabeleceram parceria com os ativistas da JA! na Comissão da UE em Bruxelas, em Maio, para falar com Ministros no Parlamento Europeu (MEP).

Para ver o relatório completo “TRABALHO INTERNO: Como os lobistas empresariais utilizaram os procedimentos de controlo da Comissão para enfraquecer os Direitos Humanos e a legislação ambiental” escrito pelos Amigos da Terra Europa, clique aqui:

A maioria dos protagonistas na indústria de gás de Cabo Delgado, são internacionais e, muitos são de países de dentro da UE, tais como a Total da França, a Eni da Itália e a Galp de Portugal. São também alguns bancos franceses, portugueses, holandeses, suecos, e dinamarqueses.

Muitas destas companhias de petróleo, carvão e gás, registram indústrias subsidiárias no país onde operam, como é o caso de Moçambique. E, pelo facto do atual projeto de lei da UE dizer que só “grandes” companhias podem ser responsabilizadas, isto permitirá a estas subsidiárias que possam escapar impunes com os seus abusos e violações a nível doméstico, especialmente em países com um sistema de justiça fragilizado.

Outra questão importante é que o tema do Consentimento Prévio Livre e Esclarecido (FPIC) tem que ser claro e forte. Isto é apenas mencionado num anexo e utiliza o termo “consulta” ao invés de consentimento, o que significa que as comunidades apenas terão de ser informadas sobre o projeto. Isto não garante o direito claro de dizer “não”, quando as comunidades locais não aceitam um projeto específico nos seus territórios, por medo dos impactos previstos.

Em segundo lugar, a proposta não tem em consideração as dificuldades ligadas a obter este consentimento, isto porque até o consentimento pode ser comprado, coagido ou até conseguido através de ameaças. Isto relacionado ao que significa uma “consulta legitima”. Por exemplo, em Cabo Delgado, o processo de consulta da Total, com as comunidades afetadas, tem sido uma farsa. Quando os representantes da Total visitaram e ainda visitam as comunidades, para as reuniões de consulta, são acompanhados por uma comitiva militar.

Isto, juntamente com a presença de líderes que têm uma relação de benefício com a companhia, significa que os membros da comunidade têm demasiado medo de falar e divergir, mesmo que discordem e, por fim, muitos assinaram acordos de compensação em público e num idioma que não compreendiam. No entanto, a Total foi capaz de assinalar as caixas necessárias para um processo legítimo.

Em geral, não há ênfase suficiente na prevenção de danos, e muito menos na reparação. A proposta não lida com o que deveria ser a base do diálogo, que é o fato de que não deveria haver danos ou violações cometidas em primeiro lugar. E que, sanções punitivas e coercivas apropriadas, devem ser aplicadas quando estes danos e violações são cometidos.

O ónus da prova é demasiado alto.

Em várias leis, incluindo nesta proposta de lei da UE, o ónus de provar o crime cabe ao requerente, o que significa neste caso que as corporações são tidas como inocentes até serem provadas culpadas. E o pressuposto é de que as comunidades não estão a dizer a verdade.

Espera-se que as comunidades mostrem que os seus Direitos Humanos foram violados, no meio de todas as dificuldades ligadas à assimetria de poder e cumplicidade com os governos nacionais. Enquanto isto, as empresas apenas terão de mostrar que seguiram os processos necessários para o desenvolvimento de um projecto nessa área. Para que as denúncias da comunidade sejam consideradas “credíveis”, é esperado que a comunidade providencie informação, que não é fácil de obter, como documentos escritos e emails, provas de vídeos e fotografias, testemunhas e testimonios com nomes, para provar que as companhias não atuaram de acordo com a lei e com as normas e padrões internacionais. 

Em meio a uma crise global de sobreposição, fortemente ligada ao poder e à impunidade destas empresas transnacionais, o ónus da prova deve recair sobre as companhias, para que estas provem que não são responsáveis pelos danos, ou que não conseguem controlar as empresas através das suas cadeias de valores globais.

A legislação não reconhece que as pessoas não conseguem fornecer esta informação – elas muitas vezes não têm acesso à tecnologia, conhecimento da língua utilizada, informação sobre como escrever e, para além disto, em muitos dos casos as suas vidas seriam postas em risco apenas por falar.

No caso de Cabo Delgado, muitos dos artigos lançados pelos principais meios de comunicação social seguem a linha do que o governo diz. Houve casos em que jornalistas que dizem a verdade foram presos e torturados e até desapareceram. Os media, sociedade civil e oficiais do governo, que entram na área do gás, são acompanhados por uma comitiva militar e do governo, o que faz com que seja muito improvável que as comunidades falem sobre as suas experiências, de forma sincera. Nenhum destes obstáculos são tidos em consideração.

E sobre alterações climáticas

O projeto de lei da UE não é claro no que diz respeito à complacência das companhias com o Acordo de Paris e, com o cumprimento de manter o objetivo de emissões, abaixo de 1,5 ºC. Ao invés disso, o projeto fala sobre “compatibilidade”, o que deixa muito espaço para que a indústria alegue que  o acordo é “aberto a interpretação”, tal como já o fizeram várias vezes.

Enquanto as questões essenciais do projecto de lei da UE não forem abordadas, incluindo a lei vinculativa sobre o cumprimento dos acordos climáticos, a inversão do ónus da prova e o estabelecimento de disposições claras para lidar com a dinâmica do poder neocolonial e a natureza sistemicamente exploradora das grandes companhias transnacionais, isto será apenas mais um selo com o qual a indústria mostrará os seus processos enganosos para “cumprir os requisitos”.

Quando os governos são questionados sobre a sua relutância em sancionar companhias e financiadores, muitas vezes alegam que “manter um diálogo” com estas companhias é mais eficaz, a longo prazo. Disseram, em vários casos, que sancionar as companhias deveria ser o último recurso, e que isso os levaria a não conseguir ter qualquer tipo de contributo nas ações das mesmas. Este sistema de diálogo contínuo, claramente não funciona – as companhias continuam a atuar com impunidade – ao invés disso, instituições como a UE, precisam de “assumir a responsabilidade pelos danos das suas companhias, com grandes impactos no Sul global, e dar um passo em frente para de facto, sancioná-las.”

A insuficiência e as limitações de uma legislação regional

A um nível mais amplo, e apesar das leis de regulamentação corporativa da UE serem sem dúvida necessárias, esta diretiva de Devida Diligência, não resolverá o problema global da impunidade corporativa. Uma diretiva regional – especialmente uma ligada a um conceito tão fraco como a ” devida diligência ” – deve complementar o processo com um instrumento juridicamente vinculativo da ONU para regular as empresas transnacionais, no que diz respeito a leis para o cumprimento de Direitos Humanos internacionais (o “tratado vinculante da ONU sobre os TNCs”), em curso desde 2014.

Surpreendentemente, a relutância da UE e da maioria dos seus Estados membros no que toca a se envolverem adequadamente nas negociações do tratado vinculante da ONU, foi reafirmada sessão após sessão e, sem surpresa, foi fortemente criticada pela sociedade civil, por todo o mundo.

Sem condições equitativas a nível global, as companhias continuarão a escolher os melhores locais para violar os Direitos Humanos e causar impactos económicos, sociais, ambientais e climáticos. Ou, continuarão a escolher a melhor jurisdição para registar as suas empresas-mãe. Ambas as leis da UE e da ONU, devem incluir obrigações legais diretas às companhias, afirmar a primazia dos Direitos Humanos sob os acordos de comércio e investimento, e estabelecer mecanismos de execução judicial.As negociações destas ou de quaisquer leis destinadas a regulamentar as atividades corporativas, devem logicamente ser protegidas da captura e influência corporativa. A UE deve incluir alguns elementos chave nas suas diretivas, para que estas sejam significativas – e este esforço deve ser acompanhado pelo assumir da responsabilidade da UE de se começar a envolver ativa e construtivamente nas negociações para um tratado ambicioso e eficaz, de carácter vinculativo da ONU.

O fim da impunidade corporativa deve obrigatoriamente significar que colmatamos as brechas e lacunas jurídicas que permitem às companhias transnacionais escapar à sua responsabilidade – a nível nacional, regional e internacional.

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