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Posicionamento sobre o 18 de Março

Nunca foi tão evidente o fechamento da democracia em Moçambique como no último dia 18 de Março, em particular nas cidades de Maputo, Beira, Nampula, e outras. É uma realidade que precisamos urgentemente de resistir e combater. Desde 2008 que a liberdade de expressão, manifestação e do associativismo têm sido reprimidas, mas foi em 2020 que o governo e os seus parceiros internacionais encontraram na Covid19 um pretexto quase plausível para restringir as liberdades dos cidadãos, com o anúncio de um conjunto de medidas que deram origem a restrições na mobilidade das pessoas e bens, restrições nas reuniões públicas, privadas e a limitação do direito à manifestação, direito este, que nos é constitucionalmente conferido através dos artigo 51 da Constituição da República que supostamente rege o Estado Moçambicano.

Sábado, 18 de Março é uma data que ficará na história do nosso país, como um dia em que as nossas forças policiais, munidas de blindados, cães de raça e armas de gás lacrimogénio, impediram uma marcha pacífica com uma brutalidade e agressividade nunca antes vista. O que assistimos nas ruas de Maputo revoltou-nos a todos.

O povo Moçambicano, na sua maioria jovens, com alguma ou nenhuma afiliação partidária ou institucional, pessoas ligadas a organizações da sociedade civil ou não, decidiram marchar para comemorar a vida e obra do nosso rapper e activista social, Edson da Luz, mais conhecido por Azagaia, que perdeu a vida no dia 9 de Março de 2023.

Foram seguidos todos os trâmites legais para garantir que a marcha decorreria sem problemas. De acordo com a lei Moçambicana, as marchas não necessitam de ser autorizadas, mas deve ser submetida uma carta a dar informação às autoridades. Assim foi feito, e a maioria dos municípios deu a luz verde às marchas, com itinerário bem definido. Em Maputo, o ponto de partida seria na estátua do Eduardo Mondlane, e iríamos marchar até à praça da Independência, junto da estátua do Samora Machel, dois símbolos do poder popular e de liberdade do nosso país.

Logo cedo, naquela manhã, começaram a circular relatos de que estavam posicionados carros blindados em vários pontos da cidade, mas isso não nos preocupou, porque já estamos habituados à presença de fortes contingentes policiais quando se trata do exercício da nossa cidadania. Pensámos que talvez fosse para garantir a nossa segurança. Pensamento ingénuo e inocente, típico de quem acredita que ainda se pode viver uma democracia em Moçambique.

Em todos os acessos à estátua de Eduardo Mondlane, o local de início da marcha, havia um forte contingente policial que foi travando os grupos de jovens que pretendiam chegar ao local de concentração. Segundo ‘ordens superiores’, não nos era permitido estar em grupos, mesmo sabendo que tínhamos autorização para nos agruparmos, nos reunirmos e juntos marchar. Sem qualquer aviso prévio, a polícia começou a disparar balas de gás lacrimogénio para todos os lados, e nesse momento começamos todos a correr. No entanto, a vontade de usufruir do nosso direito à manifestação, como tão bem promovido e defendido pelo Azagaia, era grande. Precisávamos desta última homenagem a uma das poucas vozes, senão a única dos últimos tempos, que nos representava, que cantava as nossas dores, angústias e revoltas sem temer as represálias. Era essa vontade que nos fazia escondermos-nos em esquinas próximas à praça, em grupos menores com as nossas camisetas, estampadas com o rosto do nosso jovem herói do povo, que armado de papel e caneta lutou pela nossa liberdade. Os nossos punhos mantinham-se no ar, mas o grito de povo no poder foi rapidamente engolido pela agressividade que se abatia contra todos nós.

Por todo o mundo o gás lacrimogéneo tem sido usado como um mecanismo de controle e para dispersar protestos, mas ainda assim, a sua utilização obedece a normas segundo as quais este não pode ser atirado directamente para as pessoas. Entretanto, no dia 18 de Março, a PRM disparou várias vezes as balas de gás lacrimogéneo directamente para os participantes. Um membro da equipe da JA! foi atingido de raspão nas costas ao desviar-se de uma bala de gás que foi apontada directamente para o seu corpo, uma jovem ao nosso lado foi atingida nos dois tornozelos. Registou-se ainda o caso do jovem Inocêncio que perdeu o olho esquerdo após ser atingido por uma destas balas que supostamente não matam mas podem causar sérios danos nos pulmões, pele e olhos. Uma destas balas incendiou uma viatura. Um dos organizadores da marcha foi torturado durante horas em Nampula. Outra violência gratuita aconteceu no Parque dos Madgermanes, um ponto da cidade que representa um símbolo de protesto e de resistência pela luta dos antigos trabalhadores da extinta RDA que têm vindo a protestar pelos seus direitos há mais de 30 anos. Vários jovens se juntaram lá cantando a música de Azagaia que deu nome à marcha: “Povo no Poder”, ou mesmo “A Marcha”. Os jovens simplesmente aglomeravam-se entoando alguns dos grandes sucessos do seu ídolo Azagaia de forma pacífica, mas mais uma vez os ataques da polícia vieram e desta vez com ainda mais brutalidade. Desceu sobre o parque uma cortina de fumo de gás lacrimogéneo e todos fugiram em direcção à Praça da Independência. Nem mesmo os jovens que se refugiavam dentro da Catedral de Maputo escaparam à fúria dos agentes da PRM.

A rua é o único lugar para onde podemos ir protestar quando nos tiram o poder e nos violam os direitos, e a polícia responde envenenando o ar?

Igualmente repudiáveis são as perseguições e intimidações sofridas por alguns membros de organizações da sociedade civil desde o dia do velório do Azagaia, com policias à paisana que se dirigiam a pessoas pelo nome para intimidar e questionar se eram os mentores daquelas acções. Além da brutalidade e violência da polícia, acções de contra inteligência e vigilância foram levadas a cabo por alguns agentes não uniformizados. Estes tiravam fotos às pessoas que estavam na marcha, registavam matrículas de viaturas e chegaram mesmo a seguir algumas pessoas até suas casas, numa autêntica acção de intimidação que não podemos mais tolerar.

Azagaia já bem dizia na letra da música A Marcha:

Agora que estamos juntos, vou contar-vos um segredo

Eles não podem connosco

Eles agora é que tem medo

E na nossa causa justa, eles não podem se infiltrar…”

No meio de tudo isto, somos ainda surpreendidos pelo comunicado de imprensa da PRM, onde tentam de forma maquiavélica justificar a sua actuação brutal contra cidadãos indefesos numa manifestação pacífica. A PRM justifica a sua brutalidade contra cidadãos indefesos alegando ter utilizado proporcionalidade de força perante ‘manifestantes que arremessavam objectos contundentes’, numa ‘tentativa de golpe de Estado’. Um completo absurdo, uma mentira grosseira, e um insulto a quem lá esteve no dia. As inúmeras imagens e relatos dos acontecimentos comprovam dezenas de vezes que a PRM agiu fora da lei e com tremenda brutalidade. É uma postura criminosa e condenável a todos os níveis, desde os agentes que levaram a cabo as acções repressivas nas ruas do nosso país, e acima de tudo os superiores que deram as ordens, que devem ser julgados e condenados. Aos agentes da polícia e da UIR que reprimiram e massacraram os cidadãos no dia 18, nenhuma ordem superior justifica os vossos actos, pois a Constituição da República consagra o direito de resistência a ordens ilegais. Façam a vossa parte e marchem também pelo vosso direito de resistência, pela vossa obrigação de proteger o povo.

E a comunidade internacional, os doadores e parceiros do desenvolvimento, as supostas referências de direitos humanos e democracia, não se pronunciam perante estes acontecimentos, ficam apenas a murmurar nos corredores, porque não convém criticar o governo do qual dependem para continuar a explorar o nosso gás, areias pesadas, carvão ou rubis.

É importante que permaneçamos juntos, fortes e firmes na causa do povo. Esta será a real homenagem a Azagaia, o homem que lutou para descolonizar as nossas mentes.

Continuaremos a marchar e a cantar por liberdade e justiça! Abaixo a repressão e os ataques aos Moçambicanos e Moçambicanas que acreditam num país melhor!

Povo no poder!

Justiça Ambiental JA!

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Declaração de Imprensa do Dia Mundial da Água 2023

22 de Março de 2023


Nossa água, nosso direito: os africanos pedem aos líderes que “acelerem a
mudança” para longe da falsa solução de privatização da água no Dia Mundial da
Água

Em comemoração ao Dia Mundial da Água 2023, a sociedade civil, os trabalhadores e os
ativistas comunitários que lideram a Coalizão Nossa Água, Nossa Direito (OWORAC)
pedem aos líderes locais, nacionais e regionais que prestem atenção às lições da história
abandonando de uma vez por todas a falsa solução de privatização da água sob qualquer
pretexto.


A OWORAC (sigla em inglês) – composto por ativistas e sindicalistas em Camarões,
Gabão, Gana, Quênia, Moçambique, Nigéria, Senegal e Uganda, entre outros países
africanos – condena o aumento alarmante dos esforços neocoloniais para entregar o
controle de serviços essenciais a corporações multinacionais que buscam para explorar
nossa necessidade de água para lucrar.
O tema do Dia Mundial da Água deste ano é “Acelerando a Mudança”. É bastante claro,
a partir de décadas de experiências fracassadas com a privatização da água, que
devemos acelerar a mudança desse modelo de exploração para a propriedade e
controle públicos. Devemos também acelerar os investimentos públicos e garantir a
responsabilidade dos funcionários públicos que têm a obrigação de servir aos interesses
das massas, não de poucos privilegiados.

Esta semana, enquanto os governos, a sociedade civil e o sector empresarial se reúnem
na cidade de Nova York para a Conferência das Nações Unidas sobre a Água, a realidade
diária da crise da água é sentida por centenas de milhões em todo o continente africano.
O papel contínuo das corporações de privatização da água e seus representantes na
definição da agenda e das prioridades da Conferência da Água da ONU e da Água da
ONU de forma mais ampla minam a legitimidade desses espaços. O envolvimento da
AquaFed, a organização que representa esta indústria abusiva no cenário mundial, na
coordenação do Dia Mundial da Água é totalmente inapropriado e deve terminar. Prevenir
a captura corporativa é essencial para que o continente cumpra o Objetivo de

Desenvolvimento Estratégico 6, que defende a disponibilidade e gestão sustentável de
água e saneamento para todos até o ano 2030.


Anabela Lemos, Directora da Justiça Ambiental (JA!) em Moçambique referiu que:
“É urgente que se evite a cooptação destes espaços de tomada de decisões pelas
grandes empresas, que vêem a água como um recurso económico e não como um direito
humano. O envolvimento de empresas e corporações que focam os seus objectivos no
lucro mancham o processo e abrem espaço para a privatização de ainda mais recursos
naturais, que pode ocorrer também na forma de poluição, vedações e limitações no
acesso a rios e cursos de água, e controlo de fontes de água das populações locais. A
água deve ser vista como um bem comum, essencial à vida, e não como um recurso ao
serviço do lucro de algumas empresas poderosas!”

O OWORAC, lançado em outubro de 2021 em resposta ao aprofundamento da crise
global da água e ao capitalismo de desastres para os quais a pandemia abriu as portas,
detalhou os impactos mundiais reais da privatização da água nas comunidades em seu
relatório África deve levantar e resistir à privatização da água. Relatos perturbadores dos
abusos de corporações multinacionais como Veolia e Suez, ambas membros da AquaFed,
levaram comunidades em todo o continente a rejeitar a privatização da água em suas
diversas formas, incluindo as chamadas “parcerias público-privadas”.

Akinbode Oluwafemi, Diretor Executivo de Responsabilidade Corporativa e Participação
Pública da África (CAPPA), falando em nome do OWORAC, disse:

“O tema da comemoração do Dia Mundial da Água deste ano reforça a necessidade de
governos a procurar soluções comprovadas para a crise da água no continente dentro do
reino de opções democráticas controladas pela comunidade e financiadas publicamente.
A privatização da água é um fracasso opção que apenas coloca os lucros acima das
pessoas.”

Sani Baba, secretário regional para África e países árabes da federação sindical global
Public Services International (PSI), disse:

“A privatização da água rouba das comunidades o direito à vida e ao bem-estar, da
mesma forma que rouba dos trabalhadores o direito ao trabalho decente. Os governos
africanos devem se recusar a ceder aos ditames do Banco Mundial e de outras
instituições que desejam colonizar nossos recursos hídricos”.

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Comunidades ameaçadas pela barragem de Mphanda Nkuwa acusadas de ‘terroristas’ por terem viajado para um Workshop em Maputo

Apelidar de ‘terroristas’ é a mais recente forma de intimidar, ameaçar, e deter arbitrariamente as pessoas que tenham posições contrárias ao governo. Isto está a acontecer em vários pontos do país, e em particular no distrito de Marara, província de Tete, onde o governo pretende construir a barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa, um projecto altamente controverso que nunca respondeu às inúmeras questões ambientais, sociais, económicas e climáticas que têm sido levantadas por organizações da sociedade civil e especialistas de Moçambique e outros países.

Recentemente, de 22 a 25 de Novembro, a organização moçambicana Justiça Ambiental (JA!) organizou o seu 6o Workshop de Maputo sobre Impunidade Corporativa e Direitos Humanos, que reuniu representantes de várias organizações da sociedade civil, do governo, académicos, advogados, activistas e pessoas afectadas por megaprojectos de várias províncias do país. Da província de Tete, em particular, vieram vários participantes provenientes do distrito de Marara, incluindo o líder da comunidade de Chirodzi-Nsanangue, uma das comunidades em risco de ser reassentada se a proposta barragem de Mphanda Nkuwa fôr construída. Enquanto esteve fora da sua comunidade, o líder recebeu várias chamadas de membros da comunidade a alertá-lo que as autoridades locais estavam muito desagradadas por este ter-se deslocado a Maputo e que estavam a mobilizar a comunidade para eleger um novo líder.

Uns dias após regressar a casa, o líder de Chirodzi-Nsanangue recebeu uma notificação para se apresentar no Comando Distrital de Marara a fim de prestar declarações. Chegando ao Comando, o líder ficou retido durante 10 horas, foi-lhe negado o direito de ser acompanhado pela advogada que estava no local, foi acusado de ser terrorista e foi interrogado a respeito da sua viagem a Maputo pela Comandante Distrital de Marara, por um agente da SERNIC e um representante do Ministério da Defesa. Por fim, pediram-lhe que listasse o nome de todos os membros da sua comunidade que haviam se deslocado a Maputo para participar no Workshop. O líder foi solto por volta das 18h30, sem qualquer esclarecimento adicional.

A equipa da JA! que se encontrava no local a acompanhar os acontecimentos foi igualmente acusada de terrorismo, e informada que não deve fornecer informações às comunidades locais a respeito dos impactos das barragens, ou de problemas causados por outros megaprojectos no país. Tudo isto aparenta ser uma estratégia para intimidar os membros das comunidades que serão afectadas pela proposta barragem de Mphanda Nkuwa e impedi-los de defenderem os seus direitos.

Alguns dias depois, as 10 outras pessoas de Chirodzi e Chococoma que haviam participado no Workshop foram também notificadas para comparecerem no Comando Distrital de Marara no dia 08 de Dezembro, incluindo o ponto focal da JA! na comunidade, para que também fossem interrogados.

Um grande movimento de solidariedade para com os membros das comunidades que estavam sob ameaça emergiu, de diversas partes do país e de outros países. Quando os 10 membros das comunidades chegaram ao Comando Distrital de Marara no dia 08, este assunto estava a circular amplamente nas redes sociais e na rádio. Eles foram interrogados no Comando, mas desta vez, não foram feitas ameaças além da presença intimidadora de agentes policiais armados. O ponto focal da JA! foi interrogado separadamente, em seguida foi-lhe pedido que saísse da sala, e os outros membros da equipa da JA! no local não foram autorizados a entrar. Todos foram dispensados algumas horas depois.

Importa referir que estas situações não são casos isolados, e surgem na sequência de uma série de outras intimidações e restrições que têm sido feitas à equipa da JA! no âmbito do seu trabalho no Distrito de Marara. Por várias ocasiões, a Comandante Distrital de Marara e os Chefes do Posto Administrativo e da Localidade de Marara exigiram à JA! as suas credenciais e prova de comunicação prévia com a PRM, algo que não é exigido por lei. Além disso, vários outros membros da comunidade de Chirodzi-Nsanangue que têm levantado críticas ou questões a respeito da barragem têm reportado crescentes intimidações e ameaças desde Agosto de 2022, momento em que o governo, seus parceiros e empresas interessadas começaram a frequentar a área nesta nova etapa do projecto da barragem de Mphanda Nkuwa.

Exigimos um esclarecimento do Comando Distrital de Marara, do SERNIC, do Ministério da Defesa e do Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa a respeito destas intimidações às comunidades que são ameaçadas pelo projecto de Mphanda Nkuwa: afinal é assim que se obriga o povo a aceitar os projectos de ‘desenvolvimento’?

Exigimos um pronunciamento por parte dos assessores do governo, financiadores e potenciais investidores do projecto de Mphanda Nkuwa, como o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), a Associação Internacional de Hidroelectricidade (IHA), a Agência Norueguesa de Desenvolvimento (NORAD), o Reino da Noruega, o Governo da Suíça, a União Europeia (UE): estão dispostos ter o vosso nome num projecto que já está a contribuir para a violação de Direitos Humanos e liberdades fundamentais das comunidades locais?

Para mais informações, contacte: jamoz2010@gmail.com

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Mphanda Nkuwa, a caça às bruxas e um governo sem ouvidos

Após a sua fase ‘fantasma’ entre 2018 e 2021, período em que o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa (GMNK) já havia sido criado mas ninguém o encontrava (nem o próprio MIREME), ao longo do último ano, o GMNK tem feito questão de comunicar efusivamente vários avanços do projecto. A maioria destas notícias dizem respeito a novos parceiros, potenciais financiadores, e concursos para estudos necessários às diferentes etapas do projecto. O Jornal Notícias de 14 de Setembro de 2022 trouxe, no entanto, uma reportagem inédita sobre um tema que até então tinha sido tratado como tabu pelo nosso governo: a opinião das comunidades locais a respeito do projecto.

Intitulado ‘Comunidades dizem sim a Mphanda Nkuwa’, o artigo do Notícias relata que a população de Chirodzi-Nsanangue, uma das localidades que será reassentada para dar lugar ao projecto, vê com bons olhos a construção desta barragem. Várias informações contidas nesta notícia, e numa reportagem semelhante feita pela TVM no dia 07 do mesmo mês, levantam algumas questões que merecem ser debatidas e problematizadas.

Uma visita de médico

O artigo e a reportagem acima referidos foram produzidos no âmbito da primeira reunião do GMNK (acompanhados pelos seus consultores) com a comunidade de Chirodzi desde a revitalização do projecto em 2018.

Coincidência ou não, esta visita do GMNK a Chirodzi surge poucas semanas depois do evento de lançamento do estudo ‘Barragem de Mphanda Nkuwa: um grilhão climático à volta do pescoço de Moçambique’, que teve lugar no dia 21 de Julho, evento durante o qual o Director do GMNK foi questionado por alguns membros da comunidade que procuraram saber por que razão ainda não tinha sido realizada nenhuma reunião com as comunidades locais desde a revitalização do projecto. O Director Carlos Yum foi igualmente questionado, nesta mesma ocasião, por membros das comunidades locais a respeito dos benefícios do projecto para as comunidades locais, a respeito da manutenção das suas actividades de subsistência (pesca, pecuária e agricultura) e a respeito da terra que seria disponibilizada para o seu reassentamento. Algumas das respostas dadas pelo Director do GMNK foram consideradas ‘desrespeitosas’ pelas pessoas que assistiam ao evento, por ter afirmado que as populações locais não se devem focar apenas nos benefícios individuais, e sim acreditar nos benefícios ‘macroeconómicos’ que o projecto irá trazer para o país. A maioria das questões colocadas pelas comunidades locais foi respondida de forma evasiva, ambígua ou pouco clara pelo Director, desperdiçando uma oportunidade de finalmente esclarecer algumas das questões que têm afligido estas pessoas.

Esta menção aos benefícios macroeconómicos do projecto e a desconsideração pelas inquietudes das populações locais alinha-se com um conceito que tem sido apresentado por vários estudiosos e especialistas, em que chamam de ‘zonas de sacrifício’ àquelas regiões que são fustigadas por elevados impactos ambientais e sociais devido à existência de indústrias poluidoras ou outros megaprojectos, projectos estes que costumam ser justificados por um alegado ‘bem maior’ que supostamente beneficiará o país como um todo. Alguns sociólogos têm observado que a existência de zonas de sacrifício é tornada possível por uma cultura de vulnerabilização dos direitos humanos e ambientais de populações marginalizadas ou desfavorecidas, através da qual fica evidente que algumas pessoas têm direitos e privilégios, e outras sofrem os impactos.

Voltando à reunião do dia 07, importa referir que esta realizou-se em pleno feriado do dia da Vitória, num dia de festa na comunidade, o que por si só já é bastante inusitado. A JA! esteve presente na reunião que não durou mais que 15 minutos, e consistiu na fala de apenas uma pessoa, o representante do GMNK. Das várias comunidades que serão afectadas pelo projecto, apenas a comunidade de Chirodzi-Nsanangue (sede) estava presente, e não foram convidadas outras comunidades (tampouco os seus líderes), como os Bairros 1 a 6 de Chirodzi, Chococoma, Luzinga, entre outras. Não foi dado espaço para perguntas, comentários ou questões que a comunidade pudesse ter, nem tampouco foram recolhidas as suas preocupações: ninguém teve direito a falar além do GMNK. Conforme observámos no terreno, e segundo relatos que recebemos de vários membros da comunidade, esta primeira visita do GMNK a Chirodzi parecia ter apenas dois objectivos: informar a comunidade que o projecto está a avançar a todo o vapor; e produzir reportagens para dizer ao resto do país que as comunidades apoiam o projecto.

O cerco à sociedade civil

Tanto o artigo do Notícias como a reportagem da TVM, meios de comunicação conhecidos por estarem alinhados aos interesses e agenda do nosso governo, afirmaram ainda haver algumas ONGs que têm estado a instrumentalizar as comunidades para que não aceitem o projecto de Mphanda Nkuwa.

Ora, a Justiça Ambiental está a trabalhar há 22 anos com comunidades na região, com visitas e actividades regulares mesmo em fases ‘adormecidas’ do projecto, e nunca tivemos conhecimento ou nos cruzámos com tais organizações. É realmente deplorável que algumas organizações da sociedade civil tenham tendência a lidar com as comunidades locais como se fossem sua propriedade, falando em seu nome e controlando as suas opiniões, mas não tinhamos conhecimento de que isto pudesse estar a acontecer em Chirodzi.

No entanto, esta perseguição a organizações que criticam projectos ditos de desenvolvimento já é bem conhecida. São referidas como organizações anti-patrióticas, anti-desenvolvimento, ou mesmo terroristas. Agora, o governo prepara-se para fechar ainda mais o cerco à sociedade civil, tentando aprovar uma lei altamente controversa que atribui ao governo excessivos poderes, incluindo o de extinguir organizações sem fins lucrativos por não apresentarem relatórios das suas actividades. É fácil de imaginar que tipo de organizações seriam as primeiras a sofrer tais represálias.

É que certas verdades a respeito destes megaprojectos – os seus impactos no meio ambiente, as péssimas condições em que costumam ser reassentadas as comunidades locais, ou como as promessas de emprego acabam por nunca se concretizarem – não convém (ao governo) que sejam ditas em voz alta. E se as pessoas descobrem que as palavras ditas nas consultas comunitárias só servem para as convencer a aceitar o projecto? Pior, e se decidem se organizar para que o projecto avance apenas mediante as suas exigências, respeitando as suas vontades, e garantindo que estas se beneficiam verdadeiramente dele?

Comunidades acusam de manipulação de informação

Estando presente na região desde 2000, e tendo cultivado uma relação de amizade e solidariedade com estas comunidades que se manteve mesmo quando o projecto parecia ter sido engavetado, a JA! tem recebido inúmeros pedidos de apoio, capacitação legal e aconselhamento por parte das pessoas que temem pela perda das suas terras com a chegada da barragem. A actuação da JA! nesta e em outras comunidades ameaçadas ou afectadas por megaprojectos tem-se baseado na partilha de informações e intercâmbio de experiências sobre os impactos ambientais e sociais deste tipo de projectos, em acções de empoderamento e capacitação legal para que as comunidades sejam capazes de defender os seus direitos e negociar os termos em que concordam (ou não) em ceder as suas terras, e em actividades que buscam elevar a voz e dar a conhecer as inquietudes das comunidades locais através de entrevistas, vídeos e artigos.

Quando o Jornal Notícias de 14 de Setembro chegou a Chirodzi e arredores, causou muita indignação no seio da comunidade. A equipa da JA começou a receber telefonemas, SMS e vídeos de vários membros das comunidades a expressar o seu descontentamento pela informação ali retratada, e a acusar o Notícias de manipular a informação, de espalhar mentiras e de não ter perguntado à comunidade o que realmente pensa do projecto. Várias famílias de dois dos bairros ameaçados pela barragem juntaram-se num abaixo assinado onde pedem para que algum meio de comunicação que seja íntegro, imparcial e independente do governo se dirija a Chirodzi e demais comunidades com o objectivo de colher as opiniões reais das comunidades. Esta avalanche de indignação parece confirmar o que a JA! observou no terreno: que não houve interesse por parte do GMNK em ouvir e dar a conhecer a opinião real das comunidades locais a respeito deste projecto.

Direitos, justiça e caminhos para a paz

Não nos importa trazer para aqui os inúmeros riscos e potenciais impactos que temos vindo a apontar ao longo dos últimos 22 anos, e que têm sido negligenciados em todas as etapas do projecto. Nem tampouco cabe à JA! esclarecer se a comunidade está a favor ou contra o projecto. Cabe-nos, sim, como organização da sociedade civil, apresentar a nossa posição, fundamentá-la e trazê-la para debate no espaço público, com o governo, com os actores envolvidos, com as comunidades locais, pressionando por respostas e políticas que respondam aos problemas que enfrentamos como sociedade.

A pergunta que se coloca neste momento é outra: por que razão o governo insiste em não ouvir as comunidades locais, que serão afectadas pelo projecto de Mphanda Nkuwa? Por que insiste em menosprezar as suas preocupações, e mascará-las com um grande aparato mediático, para dar a entender que o projecto está a avançar com o apoio local? Se as comunidades locais colocarem as suas exigências e demandas que devem ser atendidas para o avanço do projecto, estas serão respeitadas e cumpridas? E se as comunidades disserem que se opõem ao projecto nos seus moldes actuais, e reivindicarem o seu direito a dizer que não, o governo estará disposto a ouvi-las?

Acreditamos que o exercício do diálogo, e uma ampla participação da sociedade civil neste tipo de questões, podem contribuir para começarmos a enveredar por um modelo de desenvolvimento que atenda às necessidades e vontades da maioria da população, e consequentemente reduza as tensões sociais e as guerras que temos no nosso país, provocadas também pela exclusão da maioria da população dos processos de tomada de decisão.

O caminho que temos vindo a percorrer, como país, não serve nem beneficia o povo. O ataque às organizações da sociedade civil e a qualquer voz crítica reflecte a falta de compromisso que o nosso governo tem com a democracia e com a ampla participação pública. É urgente traçarmos novos caminhos, que nos conduzam à paz e a um projecto de país do qual tenhamos orgulho – algo radicalmente diferente do que vivemos hoje.

*Este artigo foi originalmente publicado no Jornal Savana de 30 de Setembro de 2022

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA NA SEMANA DE ACÇÃO DA ÁFRICA CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA 2022

Comunidades africanas levantam suas vozes contra a privatização da água

As comunidades afectadas e aquelas sob ameaça de privatização da água em toda a África pediram aos governos africanos que abandonem a privatização da água e devolvam os sistemas de água privatizados às localidades para uma gestão acessível e equitativa. Comunidades locais na Nigéria, Moçambique, Senegal, Gana, Camarões, Quênia, Gabão, Uganda e uma série de outros países africanos estão fazendo disso sua demanda principal ao marcar a segunda edição da Semana de Acção da África contra a Privatização da Água, que acontece de 11 -14 de Outubro de 2022 para coincidir com as reuniões anuais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.

As comunidades, trabalhando em colaboração com a sociedade civil e grupos trabalhistas sob a égide da “Coligação, Nossa Água, Nosso Direito” estão a realizar reuniões municipais, compromissos comunitários, colectivas de imprensa, marchas de protesto, reuniões com formuladores de políticas e uma série de compromissos para enfatizar sua oposição aos esquemas de privatização da água e à mercantilização da água, promovidos pelo Banco Mundial e outras instituições financeiras internacionais, que continuam a privar as comunidades de seu direito à existência. Em algumas comunidades, o preço da água está fora do alcance dos habitantes locais, forçando mulheres e raparigas a caminharem quilómetros, inclusive expondo-as a perigos para obter água para necessidades básicas.

As comunidades, trabalhando em conjunto com a sociedade civil e sindicatos de trabalhadores, insistem que, embora a água continue sendo uma das necessidades mais fundamentais para a vida, corporações gigantes como Veolia e Suez, apoiadas por instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial, estão explorando essa necessidade básica tentando privatizar a água em todo o continente africano, ameaçando deixar milhões de pessoas em comunidades sofrendo sem água.

Akinbode Oluwafemi, Diretor Executivo de Responsabilidade Corporativa e Participação Pública da África (CAPPA), explicando o significado da comemoração de 2022, disse:

“Quando as comunidades forem privadas de um direito básico que garante sua existência e o vínculo que as manteve conectadas à sua cultura e espiritualidade por gerações, acabará por deixar de existir. É por isso que as comunidades estão a liderar o movimento de resistência ao que as corporações como a Veolia e instituições do Banco Mundial estão comercializando no continente africano. Mas a mensagem é clara. Não queremos que os nossos sistemas de água sejam privatizados”

Sobre os impactos da privatização da água nas comunidades, Anabela Lemos, Directora da Justiça Ambiental – Friends of the Earth Moçambique disse:

Se o governo decidir usar a água para construir uma barragem, ou desviar um curso natural da água para alguma empresa de agronegócio, ou de mineração de carvão e de outros tipos de recursos naturais e esta empresa precisar de uma grande quantidade de água, o governo permitirá, infelizmente, prioriza-se sempre o crescimento económico, o lucro e as corporações. As grandes empresas têm sempre a vantagem sobre as necessidades de sobrevivência das nossas comunidades. Pessoas, ecossistemas e biodiversidade não têm os mesmos direitos que as corporações, por isso consideramos ter chegado o momento das comunidades dizerem BASTA à privatização da água nas suas diferentes formas de actuação.”

A primeira Semana de Acção da África contra a Privatização da Água, realizada de 11 a 15 de Outubro de 2021, foi liderada pela sociedade civil e grupos trabalhistas no continente. O ponto alto foi o lançamento de um relatório – África Precisa Levantar-se e Resistir a Privatização da Água – que detalha como a privatização se tornou a ameaça mais potente ao direito humano à água dos africanos. Ele cita os fracassos da privatização da água nos Estados Unidos, Chile e França como lições para os governos africanos sendo pressionados pelo Banco Mundial e uma série de instituições financeiras multilaterais a seguir o caminho da privatização. As versões em português e francês do relatório serão divulgadas em uma coletiva de imprensa em 11 de Outubro, onde histórias e realidades das comunidades africanas serão apresentadas em vídeos para iniciar a semana de acção.

Uma das principais demandas das comunidades é que seus governos suspendam os planos de privatização e, em vez disso, invistam em sistemas públicos de água que incluam participação pública significativa na governação da água, com foco particular nas perspectivas daqueles que normalmente ficam de fora dos processos de tomada de decisão, incluindo, mas não limitado a mulheres, pessoas de baixa renda e comunidades rurais.

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Lei das organizações sem fins lucrativos

– Uma revisão a uma parte da Lei das Associações ou um atentado à liberdade das organizações sem fins lucrativos, reconhecido na Constituição da República?

Foi recentemente aprovada pelo Conselho de Ministros uma proposta de Lei das Organizações sem fins lucrativos que levanta inúmeras e sérias preocupações por parte da sociedade civil e associações da sociedade civil, relativamente aos reais propósitos por trás desta proposta de Lei.

Há muito que se pretende rever a Lei das Associações, para adequa-la ao actual contexto, procedimentos e assim assegurar a efectiva participação dos cidadãos nos mais diversos aspectos do processo democrático em Moçambique. No entanto, esta proposta de Lei não representa de forma alguma o processo de revisão que se pretendia, nem tão pouco vem simplificar ou promover uma maior e melhor participação dos cidadãos no desenvolvimento do país, pelo contrário restringe e viola direitos e liberdades já reconhecidas na Constituição da República.

A presente proposta ignora por completo o facto da participação pública ser inerente ao príncipio de Estado de Direito Democrático estabelecido no artigo 3 da CRM, pois as organizações da sociedade civil, principais visados nesta lei, e os cidadãos no geral não participaram no processo de revisão da presente proposta de lei.

A alegada fundamentação para a revisão da Lei, particularmente para o controle exagerado e ilegal que se pretende impor às associações na presente proposta, assenta-se nos esforços do governo de combate ao terrorismo e ao branqueamento de capitais, no entanto, em momento algum se apresentam evidências claras, nem tão pouco indícios de qualquer ligação entre as associações e o terrorismo e branqueamento de capitais que se pretende combater. Estamos cientes de que as liberdades e direitos consagrados na Constituição da república não são absolutos e portanto são passíveis de ser em certa medida restringidos, desde que as restrições pretendidas sejam devidamente fundamentadas, com base em análises sérias e evidências, demonstrando o risco ou a ligação que se alega, que não é o presente caso.

Sob diferentes pretextos, o governo tem cada vez mais limitado o espaço de actuação e as liberdades dos cidadãos e da sociedade civil em geral. Este controle tem sido bastante evidente na repressão policial e demonstração de forças, com que é recebida qualquer possibilidade de manifestação pública, seja pelo aumento do custo de vida, seja para reivindicar direitos como tem sido frenquente em comunidades afectadas por megaprojectos, todas estas iniciativas são agressivamente combatidas, cultiva-se o medo, para que ninguém se atreva a sequer ter a ideia de manifestar-se!

Este controle e repressão tem sido evidente no trabalho de muitas associações, tanto nacionais, como provinciais e locais, particularmente as que trabalham junto a comunidades afectadas seja por megaprojectos ou por deslocamentos forçados, as que apoiam na denúncia de violação de direitos e que fazem eco às vozes dos mais silenciados, as que denunciam a imensa rede de corrupção que inviabiliza o futuro do nosso país, muitas destas tem sido combatidas, acusadas de defender interesses externos, acusadas até de favorecer ou facilitar o terrorismo, acusações sérias e extremamente graves, sem qualquer fundamento ou base, simplesmente porque incomodam.

A presente proposta de Lei, a ser aprovada, irá muito provavelmente ditar a extinção de muitas destas associações, pois atribui ao governo excessivo poder sobre as associações, sobre o seu funcionamento e inclusive sobre o seu processo democrático de tomada de decisões, dando poderes ao governo para uma uma excessiva interferência no trabalho destas e até sobre a sua extinção. Por exemplo, o Artigo 33 da proposta de Lei exige que as associações apresentem a diversos orgãos do governo os seus relatórios de actividades e financeiro no primeiro trimestre de cada ano, e a não apresentação deste por duas vezes consecutivas implica a extinção da associação.

Importa esclarecer que a maioria, se não todas, as associações que recebem financiamento para o seu trabalho, recebem-no mediante um plano de trabalho, um acordo ou contrato com os financiadores, que curiosamente também financiam o Orçamento Geral do Estado e o governo, e via transferencia bancária. Para além disto, os bancos para disponibilizar os fundos exigem os contratos assinados por ambas as partes, portanto o controle que alegam ser fundamental para evitar o branqueamento de capitais já existe, e as associações já disponibilizam toda a informação sobre os fundos que recebem. Para além do controle já feito pelo sistema bancário, a maioria das associações tem os seus planos de trabalho, elabora relatorios anuais de actividades e relatorios de prestação de contas e levam a cabo auditorias anuais que são partilhadas com os seus financiadores onde devem claramente demonstrar que os fundos recebidos foram utilizados para os propósitos previamente acordados.

Estes relatórios, controle e evidências não são suficientes para demonstrar que não há branqueamento de capitais? Que os fundos recebidos não estão de forma alguma a financiar o terrorismo? Se de facto, o objectivo da presente proposta é a luta contra o terrorismo e o branqueamento de capitais claramente não há fundamento algum para a interferência e controle que o governo pretende assegurar sobre as associações, e sobre os cidadãos ao restringir o seu direito à associação.

Estas pretensões levantam inúmeras suspeitas, entre estas, a quem favorece o silêncio das associações? A quem favorece o silêncio da sociedade civil? A quem incomoda este poder de nos associarmos e lutarmos por direitos, por justiça, por boa governação e transparência, por soluções viáveis, sustentáveis e que de facto favorecem e contribuem para o desenvolvimento local? A quem favorece extinguir associações que trabalham por um país melhor para todos e não apenas alguns?

Outro aspecto, entre tantos, nesta proposta de lei que levanta suspeita é distinção e separação entre as associações mediante o seu objectivo, nesta proposta de lei não estão abrangidas as associações religiosas, culturais, desportivas nem os partidos políticos, será que estas não correm o mesmo tipo de riscos no que se refere ao branqueamento de capitais e terrorismo? Não estão igualmente vulneráveis?

Se a presente proposta de Lei for aprovada pela Assembleia da República estará em clara e grave violação a direitos e liberdades consagradas na Constituição da República e na Carta Africana de Direitos Humanos que Moçambique ractificou, e contraria os principios e directrizes da Comissão Africana dos Direitos Humanos.

Os Estados não devem usar o combate ao terrorismo como um pretexto para restringir liberdades fundamentais, incluindo a liberdade religiosa e de consciência, expressão, associação, reunião e deslocação, e o direito à privacidade e propriedade”. Princípios e Diretrizes sobre Direitos Humanos e dos Povos no Combate ao Terrorismo na África – Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

A luta continua… por um país justo, livre, transparente e onde todos tem os mesmo direitos!

#NadaParaNóSemNós

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A nova diretiva da UE sobre a diligência devida- um passo relevante para acabar com a impunidade corporativa?

Este é um momento crítico para a União Europeia (UE) no que diz respeito ao sofrimento humano e impactos ambientais, causados por corporações transnacionais, com ênfase especial nas corporações de combustíveis fósseis, que continuam a tomar medidas deliberadas para queimar o planeta. Foi apresentada uma nova lei importante, ‘a qual foi dada o nome de Directiva de Diligência Devida da UE para Sustentabilidade Corporativa’, e que ainda está sob discussão.

No entanto, esta lei deixa muito a desejar e, na sua forma atual, pode acabar por fornecer às companhias, estados investidores e instituições financeiras, um mero exercício de assinalar com “certos” nas caixas, e de criar brechas que acabarão por permiti-las que continuem, com impunidade, a devastar a terra, o clima e as pessoas. O caso da indústria de gás em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, é um exemplo concreto de como isto pode e inclusive já está a acontecer.

Muitas organizações na Europa, incluindo os Amigos da Terra Europa (Friends of The Earth Europe) têm lutado contra a aprovação desta lei na sua corrente forma. Inclusive, estabeleceram parceria com os ativistas da JA! na Comissão da UE em Bruxelas, em Maio, para falar com Ministros no Parlamento Europeu (MEP).

Para ver o relatório completo “TRABALHO INTERNO: Como os lobistas empresariais utilizaram os procedimentos de controlo da Comissão para enfraquecer os Direitos Humanos e a legislação ambiental” escrito pelos Amigos da Terra Europa, clique aqui:

A maioria dos protagonistas na indústria de gás de Cabo Delgado, são internacionais e, muitos são de países de dentro da UE, tais como a Total da França, a Eni da Itália e a Galp de Portugal. São também alguns bancos franceses, portugueses, holandeses, suecos, e dinamarqueses.

Muitas destas companhias de petróleo, carvão e gás, registram indústrias subsidiárias no país onde operam, como é o caso de Moçambique. E, pelo facto do atual projeto de lei da UE dizer que só “grandes” companhias podem ser responsabilizadas, isto permitirá a estas subsidiárias que possam escapar impunes com os seus abusos e violações a nível doméstico, especialmente em países com um sistema de justiça fragilizado.

Outra questão importante é que o tema do Consentimento Prévio Livre e Esclarecido (FPIC) tem que ser claro e forte. Isto é apenas mencionado num anexo e utiliza o termo “consulta” ao invés de consentimento, o que significa que as comunidades apenas terão de ser informadas sobre o projeto. Isto não garante o direito claro de dizer “não”, quando as comunidades locais não aceitam um projeto específico nos seus territórios, por medo dos impactos previstos.

Em segundo lugar, a proposta não tem em consideração as dificuldades ligadas a obter este consentimento, isto porque até o consentimento pode ser comprado, coagido ou até conseguido através de ameaças. Isto relacionado ao que significa uma “consulta legitima”. Por exemplo, em Cabo Delgado, o processo de consulta da Total, com as comunidades afetadas, tem sido uma farsa. Quando os representantes da Total visitaram e ainda visitam as comunidades, para as reuniões de consulta, são acompanhados por uma comitiva militar.

Isto, juntamente com a presença de líderes que têm uma relação de benefício com a companhia, significa que os membros da comunidade têm demasiado medo de falar e divergir, mesmo que discordem e, por fim, muitos assinaram acordos de compensação em público e num idioma que não compreendiam. No entanto, a Total foi capaz de assinalar as caixas necessárias para um processo legítimo.

Em geral, não há ênfase suficiente na prevenção de danos, e muito menos na reparação. A proposta não lida com o que deveria ser a base do diálogo, que é o fato de que não deveria haver danos ou violações cometidas em primeiro lugar. E que, sanções punitivas e coercivas apropriadas, devem ser aplicadas quando estes danos e violações são cometidos.

O ónus da prova é demasiado alto.

Em várias leis, incluindo nesta proposta de lei da UE, o ónus de provar o crime cabe ao requerente, o que significa neste caso que as corporações são tidas como inocentes até serem provadas culpadas. E o pressuposto é de que as comunidades não estão a dizer a verdade.

Espera-se que as comunidades mostrem que os seus Direitos Humanos foram violados, no meio de todas as dificuldades ligadas à assimetria de poder e cumplicidade com os governos nacionais. Enquanto isto, as empresas apenas terão de mostrar que seguiram os processos necessários para o desenvolvimento de um projecto nessa área. Para que as denúncias da comunidade sejam consideradas “credíveis”, é esperado que a comunidade providencie informação, que não é fácil de obter, como documentos escritos e emails, provas de vídeos e fotografias, testemunhas e testimonios com nomes, para provar que as companhias não atuaram de acordo com a lei e com as normas e padrões internacionais. 

Em meio a uma crise global de sobreposição, fortemente ligada ao poder e à impunidade destas empresas transnacionais, o ónus da prova deve recair sobre as companhias, para que estas provem que não são responsáveis pelos danos, ou que não conseguem controlar as empresas através das suas cadeias de valores globais.

A legislação não reconhece que as pessoas não conseguem fornecer esta informação – elas muitas vezes não têm acesso à tecnologia, conhecimento da língua utilizada, informação sobre como escrever e, para além disto, em muitos dos casos as suas vidas seriam postas em risco apenas por falar.

No caso de Cabo Delgado, muitos dos artigos lançados pelos principais meios de comunicação social seguem a linha do que o governo diz. Houve casos em que jornalistas que dizem a verdade foram presos e torturados e até desapareceram. Os media, sociedade civil e oficiais do governo, que entram na área do gás, são acompanhados por uma comitiva militar e do governo, o que faz com que seja muito improvável que as comunidades falem sobre as suas experiências, de forma sincera. Nenhum destes obstáculos são tidos em consideração.

E sobre alterações climáticas

O projeto de lei da UE não é claro no que diz respeito à complacência das companhias com o Acordo de Paris e, com o cumprimento de manter o objetivo de emissões, abaixo de 1,5 ºC. Ao invés disso, o projeto fala sobre “compatibilidade”, o que deixa muito espaço para que a indústria alegue que  o acordo é “aberto a interpretação”, tal como já o fizeram várias vezes.

Enquanto as questões essenciais do projecto de lei da UE não forem abordadas, incluindo a lei vinculativa sobre o cumprimento dos acordos climáticos, a inversão do ónus da prova e o estabelecimento de disposições claras para lidar com a dinâmica do poder neocolonial e a natureza sistemicamente exploradora das grandes companhias transnacionais, isto será apenas mais um selo com o qual a indústria mostrará os seus processos enganosos para “cumprir os requisitos”.

Quando os governos são questionados sobre a sua relutância em sancionar companhias e financiadores, muitas vezes alegam que “manter um diálogo” com estas companhias é mais eficaz, a longo prazo. Disseram, em vários casos, que sancionar as companhias deveria ser o último recurso, e que isso os levaria a não conseguir ter qualquer tipo de contributo nas ações das mesmas. Este sistema de diálogo contínuo, claramente não funciona – as companhias continuam a atuar com impunidade – ao invés disso, instituições como a UE, precisam de “assumir a responsabilidade pelos danos das suas companhias, com grandes impactos no Sul global, e dar um passo em frente para de facto, sancioná-las.”

A insuficiência e as limitações de uma legislação regional

A um nível mais amplo, e apesar das leis de regulamentação corporativa da UE serem sem dúvida necessárias, esta diretiva de Devida Diligência, não resolverá o problema global da impunidade corporativa. Uma diretiva regional – especialmente uma ligada a um conceito tão fraco como a ” devida diligência ” – deve complementar o processo com um instrumento juridicamente vinculativo da ONU para regular as empresas transnacionais, no que diz respeito a leis para o cumprimento de Direitos Humanos internacionais (o “tratado vinculante da ONU sobre os TNCs”), em curso desde 2014.

Surpreendentemente, a relutância da UE e da maioria dos seus Estados membros no que toca a se envolverem adequadamente nas negociações do tratado vinculante da ONU, foi reafirmada sessão após sessão e, sem surpresa, foi fortemente criticada pela sociedade civil, por todo o mundo.

Sem condições equitativas a nível global, as companhias continuarão a escolher os melhores locais para violar os Direitos Humanos e causar impactos económicos, sociais, ambientais e climáticos. Ou, continuarão a escolher a melhor jurisdição para registar as suas empresas-mãe. Ambas as leis da UE e da ONU, devem incluir obrigações legais diretas às companhias, afirmar a primazia dos Direitos Humanos sob os acordos de comércio e investimento, e estabelecer mecanismos de execução judicial.As negociações destas ou de quaisquer leis destinadas a regulamentar as atividades corporativas, devem logicamente ser protegidas da captura e influência corporativa. A UE deve incluir alguns elementos chave nas suas diretivas, para que estas sejam significativas – e este esforço deve ser acompanhado pelo assumir da responsabilidade da UE de se começar a envolver ativa e construtivamente nas negociações para um tratado ambicioso e eficaz, de carácter vinculativo da ONU.

O fim da impunidade corporativa deve obrigatoriamente significar que colmatamos as brechas e lacunas jurídicas que permitem às companhias transnacionais escapar à sua responsabilidade – a nível nacional, regional e internacional.

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Dez anos desde o massacre de Marikana e ainda ninguém foi punido

Esta semana marca o 10º aniversário do massacre de Marikana, o dia em que os trabalhadores mineiros sul-africanos foram violentamente atacados pela polícia, que matou 37 pessoas desarmadas. A polícia, o governo, a empresa e mesmo o actual Presidente Cyril Ramaphosa, todos estão directamente envolvidos, e não foram responsabilizados pelos seus crimes.

No dia 16 de Agosto de 2012, os rockdrillers da mina de platina Lonmin estavam em greve, após uma semana de protestos, exigindo um salário básico, decente e habitável de R12 500 (na altura 43 600 MT) por mês, sobre o qual a empresa se recusou a negociar. Os homens estavam reunidos numa colina, quando a polícia abriu fogo, sem terem sido provocados, e muitos homens tiverem mortes horríveis – alguns deles foram alvejados à queima-roupa, e outros foram mesmo esmagados por veículos da polícia.

Hoje, uma década mais tarde, os rockdrillers da empresa ganham apenas R13 000 (MT 49 600). Lonmin nunca emitiu um pedido formal de desculpas por este massacre, nem mesmo às famílias dos mortos ou feridos e não forneceu a maioria das famílias uma compensação . Em 2018, a empresa foi comprada pela Sibanye-Stillwater. Lonmin tem sido uma serpente, que se desloca para fora do país para evitar a sua responsabilidade.

Nenhum membro da força policial. nem o governo foi punido ou mesmo legalmente acusado por estes assassinatos flagrantes. O Presidente Ramphosa era o director não executivo da Lonmin na altura, e pressionou a polícia a tratar a greve como um assunto criminal. No entanto, foi exonerado de qualquer responsabilidade por este massacre.

As famílias dos mineiros assassinados continuam a ir a tribunal para obter justiça para os seus entes queridos, para que os culpados destes crimes enfrentem algum tipo de punição, e continuarão a lutar.

Os sul-africanos continuam a viver num apartheid económico. Os pobres, incluindo os trabalhadores das indústrias extractivas e de combustíveis fósseis – os trabalhadores das empresas que ganham até centenas de biliões todos os anos – ainda são tratados como menos do que seres humanos, como meros instrumentos transaccionais para manter o sistema capitalista a trabalhar para os ricos, para que a elite política e económica local e internacional beneficie da sua mera existência. Isto vai além da África do Sul – estas mesmas palavras podem ser usadas quando se fala das indústrias extractivas em Moçambique, Tanzânia, Namíbia, Lesoto, RDC, Serra Leoa, República Centro Africana, Marrocos, Colômbia, Brasil, Argentina, terras indígenas americanas, para citar muito, muito poucas.

O anarquista russo Pyotr Kropotkin disse uma vez: ‘Em todo o lado se descobrirá que a riqueza dos ricos provém da pobreza dos pobres”.

Nós na JA! somos solidários com as famílias dos mineiros Lonmin assassinados e com os feridos, com os que lutam pela humanidade básica em todo o mundo, com os que lutam pelos seus meios de subsistência e pela terra.

Precisamos urgentemente que as Nações Unidas (ONU) implementem um Tratado Vinculativo sobre Negócios e Direitos Humanos, uma ferramenta de responsabilização que tem dentes e que as comunidades devastadas pelas corporações e pela sociedade civil têm vindo a exigir há anos.

Princípios orientadores não são suficientes – as corporações demonstraram que não têm interesse nos direitos humanos, no clima e no ambiente, excepto quando precisam de “tick a box “ – e os princípios orientadores não vão certamente forçá-las a agir com a humanidade e justiça.

É tempo de as instituições do poder – estados, especialmente os do Norte, a ONU e a União Europeia – criarem, e aplicarem leis que farão as corporações como Lonmin pagar pelos seus crimes, assim como proteger vidas, como as dos mineiros de Marikana, lutando pelo seu direito básico.

Temos de continuar a lutar para assegurar que este sistema capitalista, imperialista e neocolonialista de exploração termine JA! e acabe com a impunidade corporativa.

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Barragem de Mphanda Nkuwa: um grilhão climático à volta do pescoço de Moçambique*

por Rudo A. Sanyanga

Sumário Executivo

O projecto da barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa, proposto há mais de duas décadas, voltou a emergir como uma solução para aumentar a exportação de energia para a África do Sul, de forma a aumentar a capacidade de Moçambique de receber moeda estrangeira. O projecto está, no momento, a ser promovido por um valor de 4,5 bilhões de USD, sendo 2,4 bilhões para a barragem e central elétrica, e 2,1 bilhões para as linhas de transmissão. Este estudo debate os méritos do projecto da barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa e os seus benefícios sócio-económicos e de desenvolvimento, face aos impactos das mudanças climáticas, num momento em que o mundo enfrenta desafios energéticos que requerem que sejam pensadas formas e fontes de energia mais sustentáveis para o futuro.

A barragem de Mphanda Nkuwa seria a terceira maior barragem a ser construída no tronco principal do Rio Zambeze, e uma de muitas outras barragens na bacia, se considerarmos os tributários do Zambeze. A sua localização na parte mais baixa da bacia do Rio Zambeze, em Moçambique, dá-lhe características únicas e torna-a vulnerável. Faz também com que seja determinante para os ecossistemas a jusante. Como actualmente concebida, a central hidroeléctrica tem capacidade de geração de 1.500 MW, com 60% (900 MW) dessa capacidade para exportação para a África do Sul, e um remanescente de 600 MW (40%) reservado para consumo doméstico, em Moçambique. Actualmente, mais de 60% dos Moçambicanos, cuja maioria vive em assentamentos muito dispersos em zonas rurais remotas, não têm acesso à electricidade moderna e encontram-se fora do alcance da rede eléctrica nacional existente. Muito mais que 600 MW seriam necessários para permitir que Moçambique atingisse um acesso à electricidade de 50%, até 2030.

O plano do projecto é que comece a gerar energia 2030, com cerca de 2 anos para planificação e desenho, enquanto espera-se que a construção leve 6 anos. Os benefícios anunciados são duvidosos face às mudanças climáticas e o facto de que a barragem será prejudicial para ecossistemas a jusante, bem como para a saúde e segurança humana, levando à perda de meios de subsistência das comunidades a jusante. Tal como na maioria dos grandes projectos de infraestruturas semelhantes, a barragem e o projecto hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa estão a atrair o apoio de instituições financeiras internacionais, como o Banco Africano de Desenvolvimento, que vêem-no puramente do ponto de vista macroeconómico, como uma forma de estimular o crescimento económico do país através do aumento das receitas em moeda estrangeira. Os proponentes do projecto, no entanto, ignoram os diversos riscos que estão associados ao projecto e, portanto, não discutem como esses riscos serão abordados.

Entre os riscos, a questão das mudanças climáticas é um grande motivo de preocupação. Após pesquisa detalhada, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) concluiu que, de entre as 11 principais bacias hidrográficas em África, a bacia do Zambeze é a mais vulnerável aos impactos das mudanças climáticas. Prevê-se que a bacia do Zambeze enfrente eventos climáticos extremos severos, em forma de longos períodos de seca, cheias severas no futuro, mais fortes que em qualquer das outras bacias hidrográficas do continente. Além disso, o baixo Zambeze é directamente afectado pelos desenvolvimentos a montante, fazendo com que os impactos negativos dos desenvolvimentos a montante sejam agravados em Mphanda Nkuwa e a jusante. Na última década, Moçambique foi considerado o país da SADC mais afectado pelas mudanças climáticas, de entre vários países que também têm experienciado eventos climáticos extremos, como ciclones e cheias. O funcionamento das barragens a montante em Kariba, Kafue e Cahora Bassa, com as suas grandes capacidades de armazenamento, serão a chave para o desempenho de Mphanda Nkuwa.

Por estar localizada a jusante de grandes barragens, o maior risco para Mphanda Nkuwa será durante os períodos de seca, porque as barragens a montante poderão não libertar água suficiente, se os países a montante decidirem dar prioridade às suas necessidades. O alto risco de secas na bacia do Zambeze, exacerbado pelas mudanças climáticas, terá um impacto negativo directo na viabilidade financeira e económica do projecto, uma vez que as projecções de geração de receitas e de ganhos em moeda estrangeira serão severamente reduzidas por secas prolongadas. A retenção de água nas barragens a montante, durante as secas, colocará também em perigo os caudais ecológicos a jusante de Mphanda Nkuwa, com outros efeitos prejudiciais para a pesca do camarão na região do delta.

Da mesma maneira, em caso de grandes inundações, as barragens a montante irão libertar mais água, criando risco de ruptura da barragem de Mphanda Nkuwa bem como o agravamento da segurança humana a jusante, no vale do Zambeze. Os riscos de segurança de barragens devido a cheias e inundações podem exigir especifidades mais dispendiosas, e custos de construção mais elevados. Ao longo das últimas duas décadas, têm ocorrido inúmeras catástrofes de cheias no vale do baixo Zambeze, levando a grandes riscos de perda de vidas humanas e ameaças à subsistência. Por conseguinte, Mphanda Nkuwa é altamente susceptível aos impactos das mudanças climáticas, tanto a respeito de secas como de inundações.

A energia hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa é promovida como energia limpa. No entanto, estudos recentes pelo mundo indicam que as barragens emitem quantidades consideráveis de metano, um gás de efeito de estufa mais potente que o dióxido de carbono. Num momento em que o mundo enfrenta enormes riscos de mudanças climáticas e aquecimento global, a decisão de avançar com Mphanda Nkuwa é lamentável e vai contra a sabedoria convencional.

Mphanda Nkuwa está assente na premissa de venda de energia a países da África Austral, sendo a empresa Sul-africana de energia eléctrica Eskom a principal compradora. É importante notar que, nos últimos 15 anos, a Eskom tem experienciado sérios e persistentes desafios estruturais e de governação, resultando numa divida crónica de 500 mil milhões de Rands, equivalentes a 30 bilhões de USD no momento de elaboração deste artigo. Assim, a companhia Sul-Africana enfrenta sérios problemas de viabilidade financeira, o que a torna um cliente de risco para basear um enorme investimento de 4,5 bilhões de USD. Devido ao deteriorar da sua situação financeira, a Eskom tem aumentado progressivamente as tarifas domésticas de electricidade ao longo da última década, o que faz com que muitos dos seus clientes, principalmente os mais ricos, tenham vindo a sair da rede, comprometendo assim a sua cobrança de receitas e piorando ainda mais a viabilidade financeira da companhia de electricidade. Isto é, claramente, um sinal vermelho a respeito do qual os proponentes do projecto da barragem de Mphanda Nkuwa precisam de se debruçar seriamente, nas suas análises de mercado. A delicadeza da viabilidade de Mphanda Nkuwa torna-se ainda mais acentuada quando vista no contexto do actual acordo de aquisição da energia da Hidroeléctrica de Cahora Bassa pela África do Sul, cujo preço da electricidade é altamente desfavorável para Moçambique.

Outras preocupações a respeito de Mphanda Nkuwa incluem o alegado aumento no acesso à energia para os Moçambicanos. Em teoria, afirma-se que 40% da energia de Mphanda Nkuwa vai beneficiar os Moçambicanos, mas na realidade o acesso à energia, para os Moçambicanos, será insignificante. O padrão de povoamento rural disperso e extensivo da maioria dos Moçambicanos que actualmente não tem acesso à energia limpa, e a ausência de uma extensa rede em grelha, torna numa falácia a alegação de que Mphanda Nkuwa irá aumentar substancialmente o acesso à electricidade. Moçambique carece de uma extensa rede de transmissão e distribuição, e portanto mesmo com a proposta linha de transmissão, a maior parte da população nas áreas rurais permanecerá desconectada da electricidade. A electricidade da rede não será suficiente para aumentar o acesso e estimular o desenvolvimento no país. E, de qualquer forma, o custo da electricidade sem subsídio será muito alto e inacessível para a maioria dos cidadãos.

O desenvolvimento da barragem de Mphanda Nkuwa presta muito pouca atenção à saúde do ecossistema da bacia e ao bem-estar social das comunidades a jusante. O funcionamento da barragem irá alterar significativamente o regime de escoamento da área a jusante, criando flutuações diárias que irão afectar a biota aquática, bem como a subsistência de mais de 200.000 habitantes que vivem no delta e que, em grande medida, dependem dos recursos naturais da bacia. Os meios de subsistência das comunidades que residem na área que será inundada não devem ser postos de lado. Baseado no que já tem acontecido e sido revelado em outros megaprojectos de infraestruturas na província de Tete e pelo país, estas pessoas serão provavelmente sujeitas a deslocações forçadas, meios de subsistência comprometidos, compensações inadequadas, violência e repressão do Estado, e outras violações de Direitos Humanos. As pessoas que vivem na bacia do Zambeze são as que mais têm a perder com este projecto.

Em conclusão, é improvável que este investimento aumente significativamente a industrialização ou promova o crescimento económico de Moçambique. Prevê-se que o número de empregos permanentes directos criados por este projecto hidroeléctrico seja muito reduzido. No que diz respeito às emissões de gases de efeito de estufa, não haverá ganhos, e infelizmente serão geradas mais emissões com a barragem. As receitas provenientes das vendas de electricidade podem não cobrir os custos de produção, com o risco de não cumprir com o serviço da dívida da barragem. Diversos estudos feitos para a África do Sul e Moçambique demonstram que energia limpa pode ser gerada através do vento e do sol, de forma a alcançar a população rural dispersa num ritmo muito mais rápido, criando assim postos de trabalho e muito menos impactos sociais e ambientais negativos, comparativamente a outras formas de produção de energia. Neste contexto, Moçambique tem um enorme potencial por explorar em termos de energias renováveis, de forma a mudar a sua trajectória rumo ao desenvolvimento, distribuição e geração de energia. Se fôr construída, a barragem de Mphanda Nkuwa será um grilhão climático à volta do pescoço de Moçambique, por muitas gerações.

*Estudo lançado em Maputo no dia 21 de Julho de 2022. Para obter a versão completa do estudo dirija-se ao escritório da Justiça Ambiental na Rua Willy Waddington, 102, Bairro da Coop, Maputo, ou pelo link: www.drive.google.com/drive/folders/1FXkv0z4PzdOT6yhueYhPqXVCo_9di4Qz

Para mais informações: 84 3106010 / jamoz2010@gmail.com

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A JA! Amplifica a mensagem sobre a luta de Moçambique, pela justiça climática, no Fórum dos Povos, Estocolmo+50.

Estocolmo +50, Fórum dos Povos

7 de Junho de 2022

No início de Junho, os ativistas da JA! estiveram em Estocolmo para participar no Fórum dos Povos, Estocolmo+50, pela Justiça Ambiental e Climática. Este evento foi um encontro entre ativistas e a sociedade civil e aconteceu em paralelo com a Conferência Estocolmo+50 das Nações Unidas. Este evento é uma comemoração do aniversário de 50 anos da Conferência de 1972 da ONU, sobre Ambiente Humano. A ONU refere-se a isto como a cimeira que “pela primeira vez, fez a ligação entre o ambiente e a pobreza e que colocou este tópico na linha da frente da agenda internacional.”

Marcou também os primeiros encontros e manifestações paralelas, da sociedade civil, que aconteceram durante as cimeiras da ONU. Foi uma das bases para o processo de união de movimentos sociais de toda a parte do mundo, incluindo o Hemisfério Sul, para a discussão e planejamento estratégico conjunto e para fortalecer o trabalho direcionado à justiça social e ambiental. Ao mesmo tempo, foram ampliadas narrativas e apresentadas críticas no evento formal da ONU.

Através disto, foi criado um sistema onde a sociedade civil começou a se engajar em espaços mais formais e reuniões da ONU.

O Fórum dos Povos foi composto por três dias de atividades, desenvolvidas pela Aliança Estocolmo+50, que se define como um “coletivo da sociedade civil e dos movimentos sociais, da luta pela justiça ambiental, social e climática”. E, o propósito do evento foi de ser um espaço onde “os movimentos sociais planejam atividades paralelas, que realcem os princípios, demandas e ações, em resposta à profundidade e seriedade das crises que presenciamos- tendo como bases principais, a justiça global e desafiar das relações de poder.”

Para informação mais detalhada sobre o Fórum dos Povos:

A JA! Falou em quatro painéis, que se focaram em alguns elementos do seu trabalho. Estes painéis foram sobre a necessidade de acabar com os abusos e privilégios corporativistas, dizendo “sim” a um Acordo Vinculante da ONU para negócios e Direitos Humanos e, “não” aos acordos de comércio “livre” que ameaçam a democracia; o perigo das falsas soluções climáticas; a cumplicidade entre os fundos de pensão da Suécia e a destruição causada pelos combustíveis fósseis em Moçambique e outros lugares; ideias sobre que caminho seguir, depois de 50 anos de luta por uma mudança no sistema.

O fórum integrou também uma manifestação ou protesto, no centro de Estocolmo, onde os ativistas de comunidades de todo o mundo, incluindo a JA!, se manifestaram, junto de ativistas vindos do México, Namíbia, Colômbia e Líbano. Falaram para um público de no mínimo 300 pessoas, sobre o que o povo sueco pode fazer para lutar contra a injustiça climática, tal como exigir que os seus fundos de pensão sejam redirecionados para fora dos combustíveis fósseis.

O fórum levantou a grande questão, sobre o que teria mudado em cinco décadas de luta por justiça climática, ambiental e social e, como poderíamos aproveitar os aprendizados disto, para de forma coletiva, fortalecer estas lutas. Mas, para poder responder a estas perguntas, é importante observar o que ainda não mudou.

Por exemplo, apesar de companhias como a Shell estarem bem conscientes sobre as alterações climáticas desde 1981, ainda não temos um Tratado Vinculante a nível das Nações Unidas, um Tratado que obrigaria a que estas companhias agissem com princípios básicos de humanidade. A captura corporativa tem se tornado mais predominante, os acordos bilaterais mantêm-se vantajosos para os estados nórdicos e antigas potências coloniais. E, processos como Relações de Disputa Investidor-Estado, aumentaram o desequilíbrio e desigualdade das relações de poder, direcionando ainda mais estas relações de poder, para as grandes corporações multinacionais.

O legado da colonização, mantém-se devastador para as antigas colónias e Moçambique é um bom exemplo disto. Basta olharmos para a indústria de gás nas províncias de Inhambane e Cabo Delgado, vemos que países como o Reino Unido, Portugal, Itália, Holanda e África do Sul, estão a beneficiar e irão continuar a beneficiar dos projetos de gás fóssil, liderados pela Total, Eni, ExxonMobil, Sasol e muitas outras. Enquanto isto, a economia Moçambicana continua a colapsar e o seu nível de dívida a aumentar. Os governos do Norte têm consciência de que as suas companhias estão a destruir o Hemisfério Sul, mas no entanto, as suas narrativas de “gás para o desenvolvimento” permitem que beneficiem das estruturas coloniais históricas, criadas por eles mesmos, de pobreza, dívida e corrupção.

Persiste uma falta de responsabilização pelos impactos da indústria- as comunidades perdem as suas casas e sustentos de vida e são afastadas para centros de refugiados e destruídas por uma guerra violenta, alimentada pela indústria, que já matou milhares e criou quase um milhão de refugiados.

A necessidade de continuar a realizar eventos como o Estocolmo+50, mostra como muita coisa ainda não mudou.

Como é que é possível que os países mais poderosos do mundo e o mais respeitado organismo internacional, ainda sejam incapazes de controlar as companhias fósseis e bancos? E, que até agora se recusam a cortar o seu financiamento para os combustíveis fósseis? Como é que é possível que existam Tratados, como o de Paris e Glasgow e, que mesmo assim, ainda seja necessário lutar para que os estados nórdicos invistam na diversa gama de recursos renováveis que a Terra oferece? Como é que até agora não temos um Tratado Vinculante contra Corporações Transnacionais, na ONU, quando companhias já mostraram vezes sem conta, que não irão cumprir voluntariamente, com os regulamentos dos Direitos Humanos?

No entanto, também houve algumas mudanças. A introdução de tratados sobre o clima, referidos em cima, mostra que a pressão vinda da sociedade civil e dos povos do Sul, tem resultado. Enquanto prevalece uma dificuldade para conseguir que as companhias atuem de acordo com estes tratados, e embora que os mesmos ainda deixem muito por desejar, o mero facto de que estes existem, significa que as instituições de poder, como a ONU e a União Europeia, estão pelo menos a virar para a direção certa. Os Governos de países onde está a decorrer o extrativismo, têm reprimido jornalistas e ativistas, no entanto, as pessoas continuam a enfrentá-los; enquanto corporações transnacionais continuam a fugir aos impostos nos países onde operam, as pessoas continuam a lutar pelos seus direitos a serviços básicos.

Outro aspeto promissor, manifestado no Fórum dos Povos, foi o enorme número de pessoas jovens, de todo o mundo, a fazer frente ao problema climático e a radicalizar as suas lutas locais. Estes jovens levantaram uma questão crucial: A narrativa que é preciso mudar e que já começou a ser mudada, é a narrativa de que a luta pela justiça climática deve ser inclusiva, deve ser uma luta que vai para além de danos ambientais, mas que também seja uma luta de justiça para os mais pobres e para as pessoas mais afetadas pelas alterações climáticas.

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