
Nunca foi tão evidente o fechamento da democracia em Moçambique como no último dia 18 de Março, em particular nas cidades de Maputo, Beira, Nampula, e outras. É uma realidade que precisamos urgentemente de resistir e combater. Desde 2008 que a liberdade de expressão, manifestação e do associativismo têm sido reprimidas, mas foi em 2020 que o governo e os seus parceiros internacionais encontraram na Covid19 um pretexto quase plausível para restringir as liberdades dos cidadãos, com o anúncio de um conjunto de medidas que deram origem a restrições na mobilidade das pessoas e bens, restrições nas reuniões públicas, privadas e a limitação do direito à manifestação, direito este, que nos é constitucionalmente conferido através dos artigo 51 da Constituição da República que supostamente rege o Estado Moçambicano.
Sábado, 18 de Março é uma data que ficará na história do nosso país, como um dia em que as nossas forças policiais, munidas de blindados, cães de raça e armas de gás lacrimogénio, impediram uma marcha pacífica com uma brutalidade e agressividade nunca antes vista. O que assistimos nas ruas de Maputo revoltou-nos a todos.
O povo Moçambicano, na sua maioria jovens, com alguma ou nenhuma afiliação partidária ou institucional, pessoas ligadas a organizações da sociedade civil ou não, decidiram marchar para comemorar a vida e obra do nosso rapper e activista social, Edson da Luz, mais conhecido por Azagaia, que perdeu a vida no dia 9 de Março de 2023.
Foram seguidos todos os trâmites legais para garantir que a marcha decorreria sem problemas. De acordo com a lei Moçambicana, as marchas não necessitam de ser autorizadas, mas deve ser submetida uma carta a dar informação às autoridades. Assim foi feito, e a maioria dos municípios deu a luz verde às marchas, com itinerário bem definido. Em Maputo, o ponto de partida seria na estátua do Eduardo Mondlane, e iríamos marchar até à praça da Independência, junto da estátua do Samora Machel, dois símbolos do poder popular e de liberdade do nosso país.
Logo cedo, naquela manhã, começaram a circular relatos de que estavam posicionados carros blindados em vários pontos da cidade, mas isso não nos preocupou, porque já estamos habituados à presença de fortes contingentes policiais quando se trata do exercício da nossa cidadania. Pensámos que talvez fosse para garantir a nossa segurança. Pensamento ingénuo e inocente, típico de quem acredita que ainda se pode viver uma democracia em Moçambique.

Em todos os acessos à estátua de Eduardo Mondlane, o local de início da marcha, havia um forte contingente policial que foi travando os grupos de jovens que pretendiam chegar ao local de concentração. Segundo ‘ordens superiores’, não nos era permitido estar em grupos, mesmo sabendo que tínhamos autorização para nos agruparmos, nos reunirmos e juntos marchar. Sem qualquer aviso prévio, a polícia começou a disparar balas de gás lacrimogénio para todos os lados, e nesse momento começamos todos a correr. No entanto, a vontade de usufruir do nosso direito à manifestação, como tão bem promovido e defendido pelo Azagaia, era grande. Precisávamos desta última homenagem a uma das poucas vozes, senão a única dos últimos tempos, que nos representava, que cantava as nossas dores, angústias e revoltas sem temer as represálias. Era essa vontade que nos fazia escondermos-nos em esquinas próximas à praça, em grupos menores com as nossas camisetas, estampadas com o rosto do nosso jovem herói do povo, que armado de papel e caneta lutou pela nossa liberdade. Os nossos punhos mantinham-se no ar, mas o grito de povo no poder foi rapidamente engolido pela agressividade que se abatia contra todos nós.
Por todo o mundo o gás lacrimogéneo tem sido usado como um mecanismo de controle e para dispersar protestos, mas ainda assim, a sua utilização obedece a normas segundo as quais este não pode ser atirado directamente para as pessoas. Entretanto, no dia 18 de Março, a PRM disparou várias vezes as balas de gás lacrimogéneo directamente para os participantes. Um membro da equipe da JA! foi atingido de raspão nas costas ao desviar-se de uma bala de gás que foi apontada directamente para o seu corpo, uma jovem ao nosso lado foi atingida nos dois tornozelos. Registou-se ainda o caso do jovem Inocêncio que perdeu o olho esquerdo após ser atingido por uma destas balas que supostamente não matam mas podem causar sérios danos nos pulmões, pele e olhos. Uma destas balas incendiou uma viatura. Um dos organizadores da marcha foi torturado durante horas em Nampula. Outra violência gratuita aconteceu no Parque dos Madgermanes, um ponto da cidade que representa um símbolo de protesto e de resistência pela luta dos antigos trabalhadores da extinta RDA que têm vindo a protestar pelos seus direitos há mais de 30 anos. Vários jovens se juntaram lá cantando a música de Azagaia que deu nome à marcha: “Povo no Poder”, ou mesmo “A Marcha”. Os jovens simplesmente aglomeravam-se entoando alguns dos grandes sucessos do seu ídolo Azagaia de forma pacífica, mas mais uma vez os ataques da polícia vieram e desta vez com ainda mais brutalidade. Desceu sobre o parque uma cortina de fumo de gás lacrimogéneo e todos fugiram em direcção à Praça da Independência. Nem mesmo os jovens que se refugiavam dentro da Catedral de Maputo escaparam à fúria dos agentes da PRM.

A rua é o único lugar para onde podemos ir protestar quando nos tiram o poder e nos violam os direitos, e a polícia responde envenenando o ar?

Igualmente repudiáveis são as perseguições e intimidações sofridas por alguns membros de organizações da sociedade civil desde o dia do velório do Azagaia, com policias à paisana que se dirigiam a pessoas pelo nome para intimidar e questionar se eram os mentores daquelas acções. Além da brutalidade e violência da polícia, acções de contra inteligência e vigilância foram levadas a cabo por alguns agentes não uniformizados. Estes tiravam fotos às pessoas que estavam na marcha, registavam matrículas de viaturas e chegaram mesmo a seguir algumas pessoas até suas casas, numa autêntica acção de intimidação que não podemos mais tolerar.
Azagaia já bem dizia na letra da música A Marcha:
“Agora que estamos juntos, vou contar-vos um segredo
Eles não podem connosco
Eles agora é que tem medo
E na nossa causa justa, eles não podem se infiltrar…”
No meio de tudo isto, somos ainda surpreendidos pelo comunicado de imprensa da PRM, onde tentam de forma maquiavélica justificar a sua actuação brutal contra cidadãos indefesos numa manifestação pacífica. A PRM justifica a sua brutalidade contra cidadãos indefesos alegando ter utilizado proporcionalidade de força perante ‘manifestantes que arremessavam objectos contundentes’, numa ‘tentativa de golpe de Estado’. Um completo absurdo, uma mentira grosseira, e um insulto a quem lá esteve no dia. As inúmeras imagens e relatos dos acontecimentos comprovam dezenas de vezes que a PRM agiu fora da lei e com tremenda brutalidade. É uma postura criminosa e condenável a todos os níveis, desde os agentes que levaram a cabo as acções repressivas nas ruas do nosso país, e acima de tudo os superiores que deram as ordens, que devem ser julgados e condenados. Aos agentes da polícia e da UIR que reprimiram e massacraram os cidadãos no dia 18, nenhuma ordem superior justifica os vossos actos, pois a Constituição da República consagra o direito de resistência a ordens ilegais. Façam a vossa parte e marchem também pelo vosso direito de resistência, pela vossa obrigação de proteger o povo.
E a comunidade internacional, os doadores e parceiros do desenvolvimento, as supostas referências de direitos humanos e democracia, não se pronunciam perante estes acontecimentos, ficam apenas a murmurar nos corredores, porque não convém criticar o governo do qual dependem para continuar a explorar o nosso gás, areias pesadas, carvão ou rubis.
É importante que permaneçamos juntos, fortes e firmes na causa do povo. Esta será a real homenagem a Azagaia, o homem que lutou para descolonizar as nossas mentes.
Continuaremos a marchar e a cantar por liberdade e justiça! Abaixo a repressão e os ataques aos Moçambicanos e Moçambicanas que acreditam num país melhor!
Povo no poder!
Justiça Ambiental JA!
Estou muitíssimo triste com essa macabra notícia. Tudo indica que, em Moçambique, a democracia está completamente arruinada. Isso começou a fazer-se sentir mais na Terceira República.
Infelizmente, quase em toda a parte do mundo, as forças policiais comportam-se como CONTRADITÓRIOS, termo utilizado pelo sociólogo Olin Wright, para significar os funcionários que são, ao mesmo tempo, ‘dominados’ pelos detentores do poder político, e ‘dominadores’, pois estes oprimem brutalmente as massas populares que lutam pela sua liberdade.
Os nossos políticos aprenderam uma coisa muito perigosa dos colonos portugueses: DIVIDIR PARA DOMINAR/REINAR. Ora, tendo sido descoberta está táctica, já fica fácil envidar esforços para desmistificar o cenário, através de uma forte educação popular para emancipação da mesma.
É verdade que é arriscado, numa situação em que nos encontramos, mas os políticos só podem ser educados andando CONTRA CORRENTE.
UNIDOS, SOMOS MAIS FORTES.
DEMOCRACIA = PODER DO POVO.
O POVO NO PODER!