Mphanda Nkuwa, a caça às bruxas e um governo sem ouvidos

Após a sua fase ‘fantasma’ entre 2018 e 2021, período em que o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa (GMNK) já havia sido criado mas ninguém o encontrava (nem o próprio MIREME), ao longo do último ano, o GMNK tem feito questão de comunicar efusivamente vários avanços do projecto. A maioria destas notícias dizem respeito a novos parceiros, potenciais financiadores, e concursos para estudos necessários às diferentes etapas do projecto. O Jornal Notícias de 14 de Setembro de 2022 trouxe, no entanto, uma reportagem inédita sobre um tema que até então tinha sido tratado como tabu pelo nosso governo: a opinião das comunidades locais a respeito do projecto.

Intitulado ‘Comunidades dizem sim a Mphanda Nkuwa’, o artigo do Notícias relata que a população de Chirodzi-Nsanangue, uma das localidades que será reassentada para dar lugar ao projecto, vê com bons olhos a construção desta barragem. Várias informações contidas nesta notícia, e numa reportagem semelhante feita pela TVM no dia 07 do mesmo mês, levantam algumas questões que merecem ser debatidas e problematizadas.

Uma visita de médico

O artigo e a reportagem acima referidos foram produzidos no âmbito da primeira reunião do GMNK (acompanhados pelos seus consultores) com a comunidade de Chirodzi desde a revitalização do projecto em 2018.

Coincidência ou não, esta visita do GMNK a Chirodzi surge poucas semanas depois do evento de lançamento do estudo ‘Barragem de Mphanda Nkuwa: um grilhão climático à volta do pescoço de Moçambique’, que teve lugar no dia 21 de Julho, evento durante o qual o Director do GMNK foi questionado por alguns membros da comunidade que procuraram saber por que razão ainda não tinha sido realizada nenhuma reunião com as comunidades locais desde a revitalização do projecto. O Director Carlos Yum foi igualmente questionado, nesta mesma ocasião, por membros das comunidades locais a respeito dos benefícios do projecto para as comunidades locais, a respeito da manutenção das suas actividades de subsistência (pesca, pecuária e agricultura) e a respeito da terra que seria disponibilizada para o seu reassentamento. Algumas das respostas dadas pelo Director do GMNK foram consideradas ‘desrespeitosas’ pelas pessoas que assistiam ao evento, por ter afirmado que as populações locais não se devem focar apenas nos benefícios individuais, e sim acreditar nos benefícios ‘macroeconómicos’ que o projecto irá trazer para o país. A maioria das questões colocadas pelas comunidades locais foi respondida de forma evasiva, ambígua ou pouco clara pelo Director, desperdiçando uma oportunidade de finalmente esclarecer algumas das questões que têm afligido estas pessoas.

Esta menção aos benefícios macroeconómicos do projecto e a desconsideração pelas inquietudes das populações locais alinha-se com um conceito que tem sido apresentado por vários estudiosos e especialistas, em que chamam de ‘zonas de sacrifício’ àquelas regiões que são fustigadas por elevados impactos ambientais e sociais devido à existência de indústrias poluidoras ou outros megaprojectos, projectos estes que costumam ser justificados por um alegado ‘bem maior’ que supostamente beneficiará o país como um todo. Alguns sociólogos têm observado que a existência de zonas de sacrifício é tornada possível por uma cultura de vulnerabilização dos direitos humanos e ambientais de populações marginalizadas ou desfavorecidas, através da qual fica evidente que algumas pessoas têm direitos e privilégios, e outras sofrem os impactos.

Voltando à reunião do dia 07, importa referir que esta realizou-se em pleno feriado do dia da Vitória, num dia de festa na comunidade, o que por si só já é bastante inusitado. A JA! esteve presente na reunião que não durou mais que 15 minutos, e consistiu na fala de apenas uma pessoa, o representante do GMNK. Das várias comunidades que serão afectadas pelo projecto, apenas a comunidade de Chirodzi-Nsanangue (sede) estava presente, e não foram convidadas outras comunidades (tampouco os seus líderes), como os Bairros 1 a 6 de Chirodzi, Chococoma, Luzinga, entre outras. Não foi dado espaço para perguntas, comentários ou questões que a comunidade pudesse ter, nem tampouco foram recolhidas as suas preocupações: ninguém teve direito a falar além do GMNK. Conforme observámos no terreno, e segundo relatos que recebemos de vários membros da comunidade, esta primeira visita do GMNK a Chirodzi parecia ter apenas dois objectivos: informar a comunidade que o projecto está a avançar a todo o vapor; e produzir reportagens para dizer ao resto do país que as comunidades apoiam o projecto.

O cerco à sociedade civil

Tanto o artigo do Notícias como a reportagem da TVM, meios de comunicação conhecidos por estarem alinhados aos interesses e agenda do nosso governo, afirmaram ainda haver algumas ONGs que têm estado a instrumentalizar as comunidades para que não aceitem o projecto de Mphanda Nkuwa.

Ora, a Justiça Ambiental está a trabalhar há 22 anos com comunidades na região, com visitas e actividades regulares mesmo em fases ‘adormecidas’ do projecto, e nunca tivemos conhecimento ou nos cruzámos com tais organizações. É realmente deplorável que algumas organizações da sociedade civil tenham tendência a lidar com as comunidades locais como se fossem sua propriedade, falando em seu nome e controlando as suas opiniões, mas não tinhamos conhecimento de que isto pudesse estar a acontecer em Chirodzi.

No entanto, esta perseguição a organizações que criticam projectos ditos de desenvolvimento já é bem conhecida. São referidas como organizações anti-patrióticas, anti-desenvolvimento, ou mesmo terroristas. Agora, o governo prepara-se para fechar ainda mais o cerco à sociedade civil, tentando aprovar uma lei altamente controversa que atribui ao governo excessivos poderes, incluindo o de extinguir organizações sem fins lucrativos por não apresentarem relatórios das suas actividades. É fácil de imaginar que tipo de organizações seriam as primeiras a sofrer tais represálias.

É que certas verdades a respeito destes megaprojectos – os seus impactos no meio ambiente, as péssimas condições em que costumam ser reassentadas as comunidades locais, ou como as promessas de emprego acabam por nunca se concretizarem – não convém (ao governo) que sejam ditas em voz alta. E se as pessoas descobrem que as palavras ditas nas consultas comunitárias só servem para as convencer a aceitar o projecto? Pior, e se decidem se organizar para que o projecto avance apenas mediante as suas exigências, respeitando as suas vontades, e garantindo que estas se beneficiam verdadeiramente dele?

Comunidades acusam de manipulação de informação

Estando presente na região desde 2000, e tendo cultivado uma relação de amizade e solidariedade com estas comunidades que se manteve mesmo quando o projecto parecia ter sido engavetado, a JA! tem recebido inúmeros pedidos de apoio, capacitação legal e aconselhamento por parte das pessoas que temem pela perda das suas terras com a chegada da barragem. A actuação da JA! nesta e em outras comunidades ameaçadas ou afectadas por megaprojectos tem-se baseado na partilha de informações e intercâmbio de experiências sobre os impactos ambientais e sociais deste tipo de projectos, em acções de empoderamento e capacitação legal para que as comunidades sejam capazes de defender os seus direitos e negociar os termos em que concordam (ou não) em ceder as suas terras, e em actividades que buscam elevar a voz e dar a conhecer as inquietudes das comunidades locais através de entrevistas, vídeos e artigos.

Quando o Jornal Notícias de 14 de Setembro chegou a Chirodzi e arredores, causou muita indignação no seio da comunidade. A equipa da JA começou a receber telefonemas, SMS e vídeos de vários membros das comunidades a expressar o seu descontentamento pela informação ali retratada, e a acusar o Notícias de manipular a informação, de espalhar mentiras e de não ter perguntado à comunidade o que realmente pensa do projecto. Várias famílias de dois dos bairros ameaçados pela barragem juntaram-se num abaixo assinado onde pedem para que algum meio de comunicação que seja íntegro, imparcial e independente do governo se dirija a Chirodzi e demais comunidades com o objectivo de colher as opiniões reais das comunidades. Esta avalanche de indignação parece confirmar o que a JA! observou no terreno: que não houve interesse por parte do GMNK em ouvir e dar a conhecer a opinião real das comunidades locais a respeito deste projecto.

Direitos, justiça e caminhos para a paz

Não nos importa trazer para aqui os inúmeros riscos e potenciais impactos que temos vindo a apontar ao longo dos últimos 22 anos, e que têm sido negligenciados em todas as etapas do projecto. Nem tampouco cabe à JA! esclarecer se a comunidade está a favor ou contra o projecto. Cabe-nos, sim, como organização da sociedade civil, apresentar a nossa posição, fundamentá-la e trazê-la para debate no espaço público, com o governo, com os actores envolvidos, com as comunidades locais, pressionando por respostas e políticas que respondam aos problemas que enfrentamos como sociedade.

A pergunta que se coloca neste momento é outra: por que razão o governo insiste em não ouvir as comunidades locais, que serão afectadas pelo projecto de Mphanda Nkuwa? Por que insiste em menosprezar as suas preocupações, e mascará-las com um grande aparato mediático, para dar a entender que o projecto está a avançar com o apoio local? Se as comunidades locais colocarem as suas exigências e demandas que devem ser atendidas para o avanço do projecto, estas serão respeitadas e cumpridas? E se as comunidades disserem que se opõem ao projecto nos seus moldes actuais, e reivindicarem o seu direito a dizer que não, o governo estará disposto a ouvi-las?

Acreditamos que o exercício do diálogo, e uma ampla participação da sociedade civil neste tipo de questões, podem contribuir para começarmos a enveredar por um modelo de desenvolvimento que atenda às necessidades e vontades da maioria da população, e consequentemente reduza as tensões sociais e as guerras que temos no nosso país, provocadas também pela exclusão da maioria da população dos processos de tomada de decisão.

O caminho que temos vindo a percorrer, como país, não serve nem beneficia o povo. O ataque às organizações da sociedade civil e a qualquer voz crítica reflecte a falta de compromisso que o nosso governo tem com a democracia e com a ampla participação pública. É urgente traçarmos novos caminhos, que nos conduzam à paz e a um projecto de país do qual tenhamos orgulho – algo radicalmente diferente do que vivemos hoje.

*Este artigo foi originalmente publicado no Jornal Savana de 30 de Setembro de 2022

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