Ganância, Arrogância, Poder e Ar Condicionado: Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse Climático

A crise climática despoletou uma corrida por soluções, muitas das quais falsas, que ilustram frequentemente o modo como a ganância corporativa se aproveita do desespero para acumular riqueza e controlo, empurrando cada vez mais a riqueza colectiva da humanidade para os mercados e, consequentemente, para as mãos das elites ricas.

Como sempre, a energia é parte fulcral do problema e as suas soluções são parte fundamental de como lidar com a crise climática. Este artigo explora como o sector energético se pode mobilizar rumo a um mundo de energia sem carbono e socialmente justo. Actualmente, o debate sobre energia tende a focar-se fortemente em soluções e reparações tecnológicas, debruçando-se muito pouco sobre a necessidade de mudar os sistemas que criaram o mundo energético destrutivo, desperdiçador, injusto e intensivo em carbono, que tem sido uma das principais causas da crise climática. Isso levanta uma questão: será que a nossa obstinação em ver mais adiante na mesma estrada nos está a impedir de tentar um novo caminho? Ou até mesmo de olhar para trás e explorar soluções passadas e então abandonadas, mas que podem ser muito relevantes para a nossa realidade actual?

Os nossos caminhos actuais são baseados em relações de poder, resultando em estruturas e dinâmicas lineares e hierárquicas. O avanço da tecnologia, especialmente após a Revolução Industrial, mudou a índole da nossa relação com a natureza – de uma relação de adaptação e equilíbrio para uma relação de dominação. A humanidade começou a achar-se acima da natureza. Mais poderosa e mais inteligente que a natureza. Acreditámos que os nossos avanços tecnológicos nos haviam tornado invencíveis. Entrámos na Era da Arrogância. Agora, vivemos uma crise climática, mas ainda acreditamos que podemos superá-la com a tecnologia. Precisamos de olhar para trás, aprender com os nossos erros e concentrarmo-nos na mudança do sistema. Ou como diz a canção: “Sit down… be humble” (Sente-se… seja humilde).

Esta realidade pode ser vista em todo o lado, mas para ilustrar a questão de maneira mais específica, olhemos para o ar condicionado (A/C). É algo que muitos de nós que vivemos em climas quentes conhecemos bem, mas não percebemos como esta tecnologia moldou o mundo de hoje e muitos de seus problemas.

Antes da era do ar condicionado, as comunidades locais lidavam com climas implacáveis e quentes, adaptando o seu comportamento e estruturas ao meio ambiente. A natureza estabelecia as regras e a realidade e nós adaptamo-nos; nós encontrávamos maneiras de estar em equilíbrio. Mesmo hoje em Moçambique, as comunidades são mais activas durante as primeiras e últimas partes do dia, quando as temperaturas são mais baixas, e descansam durante a parte mais quente do dia em áreas sombreadas, verdes e mais frescas. Muitos países quentes tiveram e ainda têm hábitos semelhantes para se protegerem, como a “siesta” nos países latinos.

Manter frescas as zonas de estar das casas era conseguido usando materiais locais com boas características térmicas para o clima local, mas também através da correcta orientação/posicionamento das construções, de métodos de construção correctos, ou até de simples opções como o uso de cores claras – que conjuntamente ajudavam a lidar com as temperaturas altas.

Por exemplo, em áreas quentes e secas, é comum o uso de materiais pesados com alta massa térmica, como a pedra, o calcário, o adobe, etc, que absorvem o calor durante o dia e o libertam durante as noites frias. A construção tem frequentemente telhados planos, pequenas janelas que permitem a circulação de ar, mas uma radiação térmica e um efeito de estufa mínimos.

Em climas quentes e húmidos, é mais comum construir telhados altos ou “cópulas”, ventilações, biombos nas áreas de dormir, grandes áreas sombreadas, varandas e muito mais. Nos climas quentes empregavam-se muitos métodos e soluções – como pátios, aberturas, espaços de protecção, massas de água, armadilhas de vento, canais de circulação de ar, deflectores, paredes duplas e muitos, muitos mais – para tornar as áreas quentes mais frescas e confortáveis. Numerosos estudos já demonstraram o sucesso da construção tradicional, onde as temperaturas no interior podem ser 6 a 10°C mais baixas do que no exterior.

Até mesmo a disposição dos aldeamentos tradicionais toma em consideração o clima local no que diz respeito a espaçamentos, posicionamentos e alinhamento dos edifícios para maximizar a sombra, minimizar as superfícies expostas ao sol (casas lineares com orientação norte-sul) e maximizar o arrefecimento pelos ventos dominantes. Foi recentemente demonstrado que muitas cidades modernas têm temperaturas mais altas somente por causa da disposição dos seus edifícios altos e sua relação com o clima local, especialmente com os ventos. Por exemplo, Tóquio tem áreas que têm um aumento médio de 2,5°C devido à localização, disposição e distância entre edifícios e à forma como estes interagem com o clima local. Modelagem computacional e experiências em novas mega-cidades emergentes, como na China, mostraram que, não só se podem evitar esses aumentos de temperatura, mas até mesmo diminuir a temperatura local apenas tomando em conta esses factores que muitas culturas antigas vêm usando há milhares de anos. Portanto, se um simples edifício pode ter um decréscimo de temperatura de 6 a 10 ° C, quando se equaciona a disposição do aldeamento, há um enorme potencial, e isso faz com que se entenda como as pessoas conseguiam viver de forma relativamente confortável nesses climas quentes, sem a existência de ar condicionados.

Então, agora estamos em boa posição para começar a história do ar condicionado. Assim que o ar condicionado se tornou prontamente disponível, parámos de tentar construir edifícios eficientes. Pensámos que já não estávamos à mercê da natureza, que podíamos dominá-la. Então, passámos a poder ter qualquer tipo de edifício no deserto mais quente mantido a quase qualquer temperatura, e hoje temos campos de golfe verdejantes e até mesmo pistas de ski cobertas de neve no deserto de Dubai.

A grande mudança começou após a Segunda Guerra Mundial, com numerosas indústrias a promover o ar condicionado, especialmente nos EUA, onde o sector de construção queria aumentar os lucros, diminuir os custos e via o ar condicionado como forma de eliminar os materiais térmicos mais pesados e se distanciar dos métodos de construção adaptados localmente para um modelo de construção padronizado, rápido, leve e barato. Eles tiraram a responsabilidade de manter o interior frio e confortável dos arquitectos e passaram-na para os engenheiros, que ficaram incumbidos das instalações ad hoc de ar condicionados. Ao mesmo tempo, o sector de energia também estava a impulsionar estratégias para aumentar o consumo de energia nos EUA, especialmente em residências. A adopção do ar condicionado foi fundamental para o crescimento e lucro do sector de energia. Residências e edifícios termicamente ineficientes foram perfeitos para criar uma dependência de ar condicionados e garantir um alto consumo de energia e de ar condicionados.

Como sempre, esses interesses andaram de mãos dadas com grupos de lobby, manobras políticas e marketing. Os grupos de lobby impulsionaram regulamentos e políticas que estabeleceram rigorosas temperaturas interiores para espaços públicos e de trabalho, mas que não o fizeram baseando-se em pesquisa ou em ciência. Em vez disso, eles foram influenciados pelos interesses dos grupos de lobby, que pressionavam por temperaturas mais baixas de trabalho em ambientes quentes com a finalidade de aumentar as áreas que exigiam regulação artificial de temperatura. Além disso, eles não especificaram quais espaços interiores deveriam ter quais temperaturas, não determinaram que fossem apenas as áreas onde as pessoas trabalham; então, áreas menos usadas como escadas de emergência, armazéns, etc, ainda são mantidas nessas temperaturas mais baixas, mesmo que ninguém as use. As estratégias de marketing impulsionaram o ar condicionado a tornar-se componente essencial da vida moderna e destacaram os benefícios de saúde dos ar condicionados, por meio de pesquisas enganosas, financiadas pela indústria. Algumas das falsas alegações eram de que o ar era mais saudável, que os interiores eram livres de pólen, poeira e outros poluentes, e até mesmo que melhorava a alimentação.

O boom do ar condicionado também contribuiu para grandes mudanças nos padrões de assentamento na desconfortavelmente quente parte sul dos EUA, muitas vezes denominada “hot belt” (cinturão quente). Esta área sofreu um enorme crescimento de população. Antes da adopção do ar condicionado, apenas 28% da população dos EUA vivia nessas áreas, mas hoje ela alberga quase 50% da população dos EUA, com muitos estudos demonstrando padrões de assentamento e migração ligados à disseminação do ar condicionado. A Flórida cresceu de 1 milhão de habitantes em 1920 para mais de 7 milhões 50 anos depois; Houston duplicou a sua população com o boom do ar condicionado, e várias outras cidades dos EUA duplicaram e algumas até quadruplicaram de tamanho.

Nos EUA, hoje, há enormes casas de 3.000 metros cúbicos em climas de 35°C para cima, que são mantidas a 23°C durante o dia, enquanto todos os seus ocupantes estão no trabalho. O uso de energia do ar condicionado duplicou entre 1993 e 2005. O uso de energia resultante apenas de ar condicionados, é maior do que o uso de energia de todos os sectores em 1955. Isso resulta em emissões de gases de efeito estufa superiores a 500 milhões de toneladas por ano – mais do que o sector de construção, incluindo a produção de materiais como o cimento. Se usarmos África como comparação, torna-se ainda mais chocante. Em 2010, o uso de energia em ar condicionados nos EUA foi maior do que todo o uso de energia de África para todos os propósitos! É por isso que mudar nosso sistema de energia é vital para lidar com a crise climática.

Os dados deste artigo são muito baseados nos EUA, em parte porque existem muitos dados sobre os EUA, o que torna mais fácil destacar os problemas em detalhe, mas a outra razão é o papel dos EUA em exportar e impulsionar o seu modelo pelo mundo, influenciando como os outros países se desenvolvem. Aqui em casa, em Moçambique, isso é óbvio. Não só a nossa classe média emergente e as nossas elites almejam viver a decadente vida dos EUA, como os nossos governos também a vêem como o caminho de desenvolvimento para Moçambique. África, e certamente Moçambique, está a passar por um forte crescimento populacional e de urbanização e, se esse boom seguir o modelo dos EUA, resultará em consequências climáticas assustadoras.

Os edifícios “modernos” de hoje, sem ar condicionado têm temperaturas interiores mais altas do que as temperaturas exteriores, enquanto os nossos edifícios tradicionais mais antigos tinham interiores significativamente mais frescos do que o exterior. Muita da arquitectura de hoje perdeu um senso de lugar, deixando de lado a função para se concentrar em forma e estilo. No entanto, quando olhamos para as nossas soluções anteriores e adicionamos algumas ideias modernas, o potencial é surpreendente. Por exemplo, a Academia de Moda Pearl, nos arredores de Jaipur, na Índia, está localizada num clima muito quente e seco (acima de 40°C de temperatura), mas os arquitetos fizeram um óptimo trabalho olhando para velhos prédios indianos tradicionais e incluindo interpretações modernas de diferentes sistemas de arrefecimento, como pátios abertos, massas de água, baoli (vãos de escadas), jaalis (telas de pedra perfurada) e muito mais. O resultado é um edifício cuja temperatura é 17°C mais baixa do que no exterior e sem necessidade de arrefecimento artificial. Além disso, os custos de construção não foram significativamente maiores do que as alternativas tradicionais, e a poupança a longo prazo em contas de energia, manutenção de equipamentos, etc, é enorme. Além disso, são mais independentes e menos afectados pelo fornecimento instável de energia da região.

O exemplo acima foi baseado principalmente em soluções de arrefecimento tradicionais mais simples, mas muitos edifícios combinaram soluções tradicionais com opções mais modernas e alcançaram resultados surpreendentes. Por exemplo, o Novo Escritório de Munique, na Alemanha, consome 73% menos energia do que um edifício de escritórios convencional equivalente. Até mesmo arranha-céus podem usar menos energia para arrefecimento. Por exemplo, a Torre Pearl River, em Guangzhou, na China, consome 53% menos energia do que os arranha-céus convencionais e usa turbinas e painéis solares embutidos para produzir energia em excesso e pode alimentar a rede. O edifício Pixel, em Melbourne, foi ainda mais longe e produz todas as suas necessidades energéticas e de água com uma mistura de soluções tradicionais como telhado vivo, refrigeração passiva, persianas, cortinas, captação de água da chuva, etc, juntamente com opções modernas como turbinas, energia solar, software e muito mais. Edifícios antigos também podem ser adaptados para melhorar a eficiência energética. O retrofit (reequipamento) do Empire State Building conseguiu reduzir seu consumo de energia em 38%, correspondendo a uma economia de 4 milhões de dólares por ano. Os exemplos são muitos e crescem a cada dia, e algumas das opções tecnicamente mais complexas podem não ser viáveis para a realidade de Moçambique, mas existem muitas opções tradicionais e simples que são muito rentáveis e adequadas à nossa realidade.

No entanto, o foco deste artigo não é discutir quais soluções usar ou não, mas mudar a arrogância de pensar que podemos dominar a natureza através da tecnologia e que essa mesma abordagem pode resolver a crise climática. Quaisquer soluções que consideremos melhores devem vir da harmonia e do equilíbrio com a natureza e estar centradas na justiça social. Nós já usámos muitas dessas soluções no passado, antes da tecnologia fazer a humanidade pensar que somos deuses. Às vezes a solução é apenas parar com o mal. Ao terminar essa era de arrogância e ganância, permitiremos que soluções verdadeiras e justas cresçam. Como numa floresta, quando uma árvore cai, ela não é substituída por outra árvore adulta, é a lacuna criada que dá espaço para que uma nova árvore cresça em seu lugar. Vamos tirar a arrogância, a ganância e o poder do caminho, e permitir que o sol brilhe sobre as verdadeiras soluções livre de suas sombras. Deixemos essas soluções crescer e guiar-nos para longe destas crises.

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