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O Reino Imaginário de Techobanine

Techobanine(Este artigo foi publicado pela primeira vez em Março de 2013, quando começaram a transpirar pela primeira vez rumores sobre este atentado ambiental que, ao que tudo indica, parece estar a ser novamente equacionado pelo governo.)

Só pode ser coincidência… Essa Techobanine de que falam os jornais decerto que não é a nossa Techobanine. Não pode ser! Se fosse, a concessão do tal porto de águas profundas teria de ter sido feita de acordo com as nossas leis, mas como tal não é o caso, essa Techobanine só pode ser parte do Reino Imaginário de um Rei demente qualquer.

Apesar das claras semelhanças, uma vez que a nossa Techobanine também é junto à costa, existem claras diferenças.

A primeira, como já expus, é que no Reino Imaginário de Techobanine não há ministérios, nem parlamentos, nem assembleias, nem democracia… O regime é absolutista, quem manda é o Rei, e se o Rei decide que quer fazer um porto para impressionar os outros monarcas da região, não há protocolos a seguir, estudos a elaborar ou consultas a fazer, está decidido! Aqui em Moçambique, felizmente que não é assim, ainda bem que não vivemos nesse imaginário Reino de Techobanine nem somos súbditos desse autocrata.

A segunda diferença, é que pelo que leio sobre essa outra Techobanine, não me parece que haja nada de especial na área onde dizem que vão construir o tal porto. A nossa Techobanine, pelo contrário, encontra-se no coração de duas reservas naturais (a Reserva Natural de Elefantes de Maputo e a Reserva Especial Marinha da Ponta d ́Ouro), o que logicamente impossibilita a construção de uma infraestrutura dessa natureza. E ainda bem…

Imaginem só se para agradar o Botswana, o Zimbabwe e a África do Sul começássemos a construir portos de águas profundas em Reservas Naturais. Seria ridículo não?

Se eu fosse um ilustre membro da corte desse Rei insano, mesmo tendo em conta que nessa Techobanine não há elefantes, nem hipopótamos, nem crocodilos, nem golfinhos, nem tubarões baleia, nem tartarugas, nem um dos dez maiores recifes de coral do mundo, ao contrário do que há na nossa Techobanine, perguntar-lhe-ia se tivesse oportunidade: “Excelência, você pensa?”


Qual a importância da Reserva Especial de Maputo (REM)?

A (REM) protege um dos mais valiosos habitats da África Austral. A zona é extremamente rica em termos de flora, com uma vasta gama de habitats e um extraordinário valor de biodiversidade, sendo considerada uma zona endémica pelo Centro Global de Diversidade de Plantas de Maputaland.

Entre outras razões, segundo o Centro de Diversidade de Plantas de Maputaland, a Reserva Especial de Maputo é de significativo interesse e relevância porque nela se localiza parte considerável deste centro de endemismo de plantas – um de quatro da África Austral, e porque ocupa uma posição estratégica no limite sul dos trópicos e contém espécies das zonas temperadas do sul. A reserva apresenta ainda uma surpreendente variedade e combinação de comunidades de plantas, ecossistemas e Terras húmidas de significado internacional.

Relativamente à fauna, a REM apresenta uma grande população de mamíferos, dos quais se destaca uma população de acima de 300 elefantes – única na Província de Maputo (e que se suspeita fazer parte de um grupo genético muito particular).

No que diz respeito a aves, foram identificadas na reserva cerca de 337 espécies incluindo o Stanley bustard e o Corujão Pesqueiro de Pel.

Quanto à ictiofauna, foram identificadas pelo menos 3 espécies endémicas. A fauna marinha é muito diversa, inclui várias espécies de baleias, golfinhos, tartarugas marinhas e inumeráveis espécies de peixes.

A reserva contém ainda uma considerável população de crocodilos do Nilo, a maior a sul de Gorongosa.

Desenvolvimento ou Neocolonialismo Ambiental? Eis a questão.

Como consequência da implementação de políticas económicas agressivas ao meio ambiente, vemos florestas transformadas em monoculturas, mares que ao invés de peixes têm tubagens e grandes embarcações de prospecção e pesquisa.

Nos últimos anos, temos assistido à invasão do nosso território por um número cada vez maior de corporações multinacionais que cá procuram reproduzir os mecanismos do sistema capitalista do mundo de onde vêm. E, sem grande reflexão, as portas são lhes abertas. Escancaradas para receber os seus projectos de destruição do meio ambiente, cuja geração de renda em nada beneficia o pacato cidadão, que invariavelmente acaba sempre por ser o maior prejudicado. As grandes vítimas desta catástrofe são as ingénuas comunidades rurais, que são recorrentemente ludibriadas com falsas promessas que ficam sempre aquém das expectativas, quando na verdade, os reais beneficiários desse dito desenvolvimento são sempre outros. Cidadãos de um país que não lhes oferece sequer educação e saúde condignas, a maioria dos camponeses moçambicanos segue condenado a viver uma vida de restrições e sacrifícios. É por isso – por essa ingenuidade e miséria – que quando chega um “bom samaritano” e seu respectivo acompanhante do governo e prometem milhares de postos de emprego, a população rejubila. Ninguém duvida. Ninguém hesita. Choram mais tarde, quando descobrem que se esqueceram de lhes dizer que esses empregos são só para aqueles com a educação a que nunca tiveram acesso.

Estes “investidores” chegam impondo modos de vida que não são nossos, deslocam comunidades impingindo-lhes o seu conceito de vida melhor e pagam-lhes em dinheiro (quando pagam) para poderem comprar aquilo que nunca precisaram de pagar para ter. Isto não é investimento, e é rotulado por muitos como uma forma de neocolonialismo. É assim que os países pobres do sul global estão a permitir que o ocidente pilhe os seus recursos naturais. Através de multinacionais que além de pilhar, poluem e destroem o meio ambiente das áreas onde operam.

Os megaprojectos, trazem sempre consigo quadros especializados na actividade que pretendem desenvolver. O camponês fica sem terra, sem emprego, sem meios de subsistência, e “embrulha” na sua capulana uma série de incertezas. O seus modos de vida são menosprezados, as suas tradições são desvalorizadas e os seus meios de subsistência destruídos. Por outras palavras, com a promessa de um futuro risonho e desenvolvimento garantido, recebem uma palmadinha nas costas e um pé na bunda para saírem de suas terras.

De acordo com Assis[1], existe uma relação muito próxima entre as formas modernas de exploração e dominação e o processo histórico de expansão colonial. As acções levadas a cabo hoje por estas multinacionais contam com a permissividade do Estado, enquanto que durante o período colonial a exploração de bens primários foi desencadeada através de uma opressão explícita de domínio político. Actualmente, esta encontra-se camuflada por mecanismos de poder que se escondem atrás da mão invisível de um mercado associado à presença indispensável e necessária do Estado.

O conceito de desenvolvimento trazido por estas multinacionais traduz-se na ocupação de terras das comunidades rurais por longos períodos de tempo. Tudo isto é legalmente consentido através de contratos secretos celebrados entre o governo moçambicano e as empresas. A divulgação dos lucros de venda dos nossos recursos também é proibida, devido ao secretismo que caracteriza o tipo de governação que nos conduz há mais de 40 anos.

Ainda de acordo com Assis, o neocolonialismo ambiental não passa de uma forma de apropriação da natureza e de territórios através de novos mecanismos de poder que se traduzem na existência de formas hegemónicas de se conceber e explorar os recursos naturais, que passam a ser considerados como simples mercadorias, aniquilando desta forma os modos tradicionais de convívio com o meio ambiente.

É necessário que se faça uma reflexão mais profunda sobre o tipo de desenvolvimento que queremos ter, um desenvolvimento que seja mais abrangente, que se faça sentir a todos os níveis e que melhore os sectores chave do nosso país como a educação e a saúde.

Não queremos desenvolvimento à custa de poluição do ar e dos rios, à custa de árvores abatidas e de camponeses sem terra. Não vale a pena.

[1] Assis, W. (2014). Do colonialismo à colonialidade: expropriação territorial na periferia do capitalismo. Caderno CRH, Salvador, V.27, n.72, p. 613 -627, Set/Dez.

Justiça Económica e suas soluções invisibilizadas

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Podemos, subitamente, apercebermo-nos que já chegámos àquele “momento” do futuro sobre o qual se especulava em filmes, livros, premonições. As descobertas da ciência, os avanços da tecnologia, os transportes ultra rápidos, as linhas de produção super automatizadas, os controlos de qualidade mais rigorosos, um universo de informação na ponta dos dedos e em todos os formatos que se possa imaginar. A globalização, que faz com que a metrópole do outro lado do planeta seja mais acessível que aquele pequeno vilarejo no centro do país atingido pelas cheias do ano passado, a 200km da estrada de alcatrão. É a mesma globalização que nos permite ficar a par, quase instantaneamente, do terramoto no Hawai e até acompanhar imagens ao vivo, mas que é capaz de filtrar o tipo de resultados que aparece no nosso browser quando fazemos uma pesquisa na internet, em função do nível de democracia que temos no nosso país.

No entanto, e apesar de toda a informação a que temos acesso – e todas as ferramentas de análise, interacção, cruzamento de dados – continuamos a cair, repetidamente, nos mesmos erros. E digo cair apenas por força de expressão, porque esta insistência em ideias comprovadamente fracassadas não tem nada de acidental. É que embora certas ideias erradas sejam prejudiciais para a maioria das pessoas, podem ser muito lucrativas para algumas outras.

A destruição da natureza e do meio ambiente está relacionada com muitas destas ideias erradas – ideias que insistem num modelo extractivista de criar desenvolvimento, numa produção intensiva de larga-escala cujo maior objectivo é matemático: reduzir custos e aumentar receitas para maximizar lucros. É o lucro que justifica que – apesar de todos os estudos e especialistas que comprovam que o maior catalisador das mudanças climáticas é a queima de combustíveis fósseis – novas licenças e concessões mineiras continuem a ser emitidas por todo o mundo. Apesar dos incontáveis estudos e exemplos que comprovam que alternativas como a agroecologia e os sistemas agroflorestais de gestão comunitária são capazes de restaurar a soberania alimentar das populações rurais, o agronegócio das monoculturas está aí, a conquistar cada vez mais espaço e a usurpar terras, direitos e futuros.

Como nos parece óbvio constatar, é a corrida em busca deste lucro que motiva decisões políticas e económicas em prol de ideias que, se não fosse por enriquecerem alguns bolsos influentes, não se aguentariam por muito tempo. Ideias cujo prazo de validade já venceu há muito tempo, mas nós continuamos a engoli-las podres.

Podemos resumir o neoliberalismo como uma doutrina económica capitalista que defende a intervenção mínima do estado na economia, apregoando que a total liberdade de mercado (portanto não regulado pelo estado) permite alcançar o maior crescimento económico. Este modelo domina a maioria das sociedades contemporâneas, e apesar de não ter criado a desigualdade social, conseguiu levá-la a patamares inéditos.

Um sistema económico deve funcionar de forma a fomentar actividades e práticas que sirvam para melhorar a vida das pessoas, no presente, salvaguardando o futuro. Quando um sistema económico serve, na verdade, os interesses de uma elite enquanto espezinha os direitos mais fundamentais da grande maioria das pessoas, algo está fundamentalmente errado.

Não é por falta de alternativas que uma transformação no sistema económico não acontece. Com nome ou sem nome, mais ou menos sistematizadas, soluções reais, pautadas por princípios diferentes dos do capitalismo neoliberal brotam um pouco por todo o lado. E, de forma orgânica, propõem-se a reinventar as formas actuais de organização da produção e do consumo.

Talvez as três questões mais fundamentalmente distintas que muitas destas propostas económicas alternativas têm em comum estejam relacionadas com a propriedade dos meios de produção, a forma de gestão, e a distribuição de rendimentos.

A economia solidária, por exemplo, organiza-se na forma de empreendimentos auto-geridos, nos quais os trabalhadores são também proprietários dos meios de produção, que tomam as decisões de forma democrática e participativa. Isto significa que não existe aquela empresa padrão onde os patrões tomam as decisões e os subordinados acatam (ou procuram emprego melhor). Isto significa que os tomadores de decisões são também os operários, que irão, em conjunto, debruçar-se sobre qualquer problema ou oportunidade que virem pela frente e solucioná-la juntos – sem que o ganho de uns implique no prejuízo de outros.

A economia solidária problematiza ainda o papel da iniciativa produtiva no seio da comunidade em que se insere, buscando dar resposta a necessidades já existentes e trazer soluções que melhorem a qualidade de vida dos membros da comunidade. O capitalismo, contrariamente, produz bens supérfluos para os quais, em seguida, faz surgir a necessidade de consumo por meio da publicidade e propaganda. Por essa razão, o consumismo é um dos pilares do capitalismo – e uma das principais razões por detrás dos problemas de excesso de lixo e sobre-exploração dos recursos naturais.

Semelhante à economia solidária temos também o movimento cooperativista ou cooperativismo, a economia colaborativa, a economia social, as redes de comércio justo, os financiamentos colectivos – todos estes sistemas propõem uma reinvenção das formas actuais de produção, distribuição e consumo, em diferentes escalas e formatos, que possibilitam a criação de cadeias produtivas e até sistemas económicos assentes na solidariedade e na satisfação de necessidades do colectivo, não do indivíduo. Estas alternativas, pelo seu potencial transformador, deixam de ser apenas uma proposta de emancipação económica – muitas vezes encontrada por grupos desfavorecidos ou oprimidos pelo sistema dominante – para incluírem, também, uma componente sólida de afirmação cultural e política. Elas trazem um novo modo de produzir e consumir, mas também de estar na sociedade e de se afirmar, e a sua proposta económica está intrinsecamente ligada a uma transformação social por uma forma diferente de desenvolvimento.

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Não é de admirar, portanto, que iniciativas deste género existam um pouco por todo o lado. É o caso da cooperativa Cargonomia, na Hungria, que distribui alimentos orgânicos produzidos localmente de bicicleta, fomentando a produção local, a redução das emissões de carbono, a solidariedade entre os membros da comunidade e servindo como um ponto de convergência para discussão de assuntos de interesse colectivo. A Justa Trama, por outro lado, é uma cadeia produtiva de peças de vestuário que garante renda a cerca de 600 trabalhadores no sul do Brasil. Toda a cadeia pauta-se pelos princípios da economia solidária e do comércio justo, num processo produtivo sem exploração.

Outras iniciativas surgem para solucionar problemas específicos, como no caso em que o poder popular organizado pôs fim à especulação imobiliária e conseguiu financiamento para a construção de infraestruturas básicas numa comunidade de Cochabamba, na Bolívia. Na Índia, uma cooperativa de mulheres forçou o governo a alocar fundos para a construção de habitações, por meio de mobilização popular e protestos.

Desafiando a ideia de que a privatização é o caminho mais curto para a eficiência, um pensamento predominante no modelo capitalista neoliberal, temos casos como o do Bangladesh, onde a associação de trabalhadores dos serviços de abastecimento de água e saneamento demonstrou que um sistema de gestão pública conseguia ser mais eficiente que a gestão privada.

Exemplos inspiradores como estes não faltam. Soluções reais, assentes no poder popular e no bem comum vão ganhando força, número e adeptos. É necessário amplificá-las e replicá-las para que possam atingir todo o seu potencial de transformação social e cultural – por meio de um sistema económico mais justo, democrático e inclusivo. Contra elas, toda uma arquitectura de hegemonia do capital que se alia e corrompe o poder político para salvaguarda dos seus interesses. Até quando?

Ponto de Situação do Programa Prosavana

O polémico programa Prosavana parece estar uma vez mais em processo de reanimação, após algumas especulações de que não iria avançar devido ao imenso “barulho” à sua volta. Infelizmente, o nosso governo e os seus comparsas da JICA são bastante persistentes e, apesar dos inúmeros protestos, cartas abertas, declarações conjuntas e processos de queixa e reclamação, pretendem uma vez mais avançar com o programa sem salvaguardar as demandas e preocupações daqueles que são os supostos beneficiários deste programa: os camponeses e o povo moçambicano.

Ponto de partida para esta nova investida do governo, recebemos em finais de Março um convite do Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar para um encontro a ter lugar dia 4 de Abril sob o tema: “Ponto de Situação do Prosavana”. O texto do convite fora formulado com algum cuidado, tentando incluir os mais críticos ao programa, listando alguns dos inúmeros documentos por si produzidos como se estes fossem de alguma forma alimentar a discussão, e procurando levar-nos a acreditar que, de facto, se pretendia um encontro honesto e aberto onde pudéssemos discutir as enormes e inúmeras falhas deste programa, da sua concepção até aos seus objectivos. Por um muito breve momento tivemos fé na iniciativa, mas ao virarmos a página e olharmos para a agenda do encontro, verificámos que era apenas mais uma reunião para legitimar e avançar com o programa. Senão vejamos, que discussão transparente e produtiva poderíamos ter sobre este programa em apenas 30 minutos, tendo em conta que até ao momento não houve diálogo algum, apenas encontros onde a coordenação do Prosavana se limitou a apresentar e promover o programa como “o que Moçambique precisa” e “o que os camponeses e camponesas querem, pese embora, talvez por falhas na comunicação, não se tenham apercebido ainda…”?

A Campanha Não ao Prosavana agradeceu o convite e o esforço em tentar fazer parecer que de facto se pretendia discutir seriamente o programa, mas não participou do encontro. Não podemos continuar a permitir que, pelo simples facto de sentarmos à mesa e assinarmos a lista de presenças, digam que houve participação. Não podemos continuar a dar assim o nosso aval ao avanço deste programa.

De um lado, temos o governo a insistir que o Prosavana é a solução para a agricultura familiar no Corredor de Nacala; e do outro, alguns de nós a insistir que qualquer programa de “desenvolvimento” agrícola deve ser construído da base para o topo – ou seja, dos camponeses para os gabinetes e não ao contrário – e que este programa representa um modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio e na produção intensiva em larga escala, e está longe de responder às nossas demandas e necessidades.

A III Conferência Triangular dos Povos, que decorreu em Maputo a 24 e 25 de Outubro, reiterou o “Não ao Prosavana” e produziu inclusive uma declaração sobre a matéria que foi partilhada com as instituições relevantes e que insistem neste programa. A coordenação do Programa Prosavana esteve presente neste encontro. Viu e ouviu as inúmeras intervenções críticas ao programa e aos métodos utilizados para persuadir a sociedade civil; e ouviu, mais uma vez, os camponeses afirmarem que não querem este programa e explicarem porquê. Talvez não tenham percebido bem quando vários camponeses se levantaram e disseram “Não Não Não ao Prosavana”. Talvez não tenham percebido o conteúdo da declaração que resultou deste encontro. Talvez não tenham percebido a dimensão deste NÃO!

Como é possível que, perante tantas e tão explícitas contestações ao programa, ainda pretendam avançar com o mesmo? Há, de facto, graves falhas na comunicação. Será que passados 5 anos ainda não conseguiram perceber que o que nos propõem não é diálogo mas imposição? Será que acham que não sabemos que o seu objectivo é demonstrar à JICA que há um mecanismo de diálogo, que de tão exemplar que é até já conseguiu incluir a Campanha? Temos pleno conhecimento que a sociedade civil japonesa, articulada na Campanha Não ao Prosavana, tem estado em diálogo com o seu governo através do seu Ministério dos Negócios Estrangeiros e da JICA para parar este programa, e que a condição para este avançar é assegurar o diálogo.

Acreditamos que continuar a insistir neste programa, que já foi analisado, dissecado e altamente criticado, não será de todo produtivo e não levará a consenso algum. Estamos em polos opostos neste debate, pois acreditamos que o agronegócio e a produção intensiva não são a solução para a agricultura em Moçambique ou em lado algum. E felizmente não estamos sozinhos, cada vez mais estudos demonstram que a agricultura diversificada, em pequena escala com recurso a fertilizantes e herbicidas orgânicos é a solução mais viável para alcançar a soberania alimentar assegurando a sustentabilidade ambiental, e não o agronegócio em larga escala. É urgente que o governo tome medidas concretas para apoiar seriamente o sector agrícola e a classe camponesa, mas que estas medidas sejam definidas em conjunto e não impostas.

Quanto ao Prosavana, gostaríamos de saber quanto dinheiro foi gasto até ao momento na insistência cega e surda neste programa? Quantos milhões já foram esbanjados em consultorias sem fim para mapear a sociedade civil? Para desenhar estratégias de como criar mecanismos de diálogo fantoches para a JICA poder justificar aos nossos companheiros da sociedade civil japonesa que só está a ajudar o desgraçado do povo moçambicano? Para custear viagens e reuniões improdutivas de 1 hora que servem somente para se convencerem a si mesmos que o Prosavana é o programa de que necessitamos? Quanto dinheiro já foi gasto neste programa? E quanto dinheiro é gasto actualmente para apoiar a classe camponesa?

Não basta afirmar que a agricultura camponesa não produz o suficiente! Não basta afirmar que a agricultura camponesa é a principal responsável pela desflorestação no país, não basta culpabilizar! É preciso entender porque não produz mais, e é fundamental questionar “produzir mais para quê?” Para ficar a apodrecer por falta de vias de escoamento ou porque é mais caro que o produto importado? A agricultura camponesa precisa de apoio sério, não de discursos vazios e programas importados que irão beneficiar meia dúzia de moçambicanos apenas!

Temos consciência que, visto ter sido recentemente empossado e considerando a dimensão do desafio que aceitou ao assumir o cargo, o Sr. Ministro poderá não saber ainda o historial deste processo, e como tal, lamentamos que possa ter apenas a versão mais conveniente desta resistência ao Prosavana. Manifestamos desde já a nossa abertura para expôr os nossos argumentos para que possa melhor perceber a decisão da Campanha Não ao Prosavana de não participar do encontro e os fundamentos que nos levam a contestar o Prosavana.

Não ao Prosavana.

 

 

 

Quando a estratégia pisoteia a ideologia

Quem paga o preço?
Todas as lutas que buscam combater as pragas imorais das nossas sociedades e colocar a humanidade num patamar moral mais elevado, têm por base uma ideologia, muitas vezes estruturada em torno de justiça, equidade, solidariedade, amor e outros belos valores. Todos nós, no fundo, sabemos que esses valores são centrais para a existência da humanidade. Para estarmos juntos, vivermos lado a lado e desenvolvermos qualquer noção de comunidade, esses valores têm que estar presentes de uma forma ou de outra, e quanto mais centrais e prevalentes esses valores forem para a sociedade, mais pacífica, feliz e sustentável essa sociedade se poderá tornar.

Muitos movimentos de justiça incríveis estão constantemente a lutar por isso, mas há uma tendência crescente de profissionalizar movimentos e organizações sem fins lucrativos, que os tem vindo a empurrar para um modelo mais corporativo que melhor se adapta à crença “zombie” no mercado livre. A pressão para demonstrar anualmente bons resultados obtidos com os fundos dos doadores está a modificar a forma como combatemos essas questões sociais e a colocar o foco em ganhos a curto prazo, em detrimento de mudanças reais a longo prazo. Uma grande parte daquela que consideramos ser a sociedade civil, está a combater essas batalhas principalmente de maneira estratégica e não a enquadrá-las numa ideologia moral que vise colocar a sociedade como um todo num lugar melhor.

Isso fica claro ao analisarmos como estamos a lidar com a crise climática. As principais soluções impulsionadas pelos nossos governos estão estrategicamente orientadas para a ganância por dinheiro, ou seja, para os mercados. Em todo o lado ouvimos dizer que as sociedades nada farão a menos que haja um benefício económico, que “para salvá-lo é preciso ser capaz de vendê-lo…”, etc, etc, etc. Parecemos ter aceite essa narrativa, e aceitando essa narrativa estamos basicamente a aceitar que as sociedades atuais não são movidas por valores morais mas por incentivos económicos. Pare para pensar nessa ideia por um momento e perceberá o quão assustadora ela é. E não nos esqueçamos que as vitórias alcançadas sob um paradigma reforçam os valores que o guiam e movem ainda mais a sociedade nessa direção.

É por isso que nossas vitórias contra a escravidão, o colonialismo, o racismo, a desigualdade de género e muitas mais, foram realmente importantes. Elas não só mostraram que esses sistemas estavam errados, mas reforçaram os valores de igualdade, equidade, solidariedade, etc. que guiaram esses movimentos e moveram as nossas sociedades ainda mais nessa direção.

Há sempre um complexo jogo de equilíbrio entre ideologia e estratégia. Mesmo nas maiores vitórias da sociedade civil, conseguimos ver o custo da estratégia na ideologia, bem como as pessoas que acabam por pagar esse custo, até mesmo em movimentos com os mais altos valores ideológicos. Um bom exemplo de um movimento fantástico com fortes ideologias orientadoras e estratégias cuidadosamente ponderadas, mas no qual, ainda assim, se pode encontrar o custo da estratégia e suas consequências sobre a ideologia, foi o civil rights movement (o movimento de direitos civis) que nos EUA lutou pela igualdade e contra a segregação racial. Podemos aprender muito com ele…

 

Brown vs. Conselho de Educação
O caso Brown vs. Conselho de Educação, nos anos 50, é um bom exemplo para ilustrar a complexidade do assunto. Embora a igualdade de direitos para todas as raças tivesse sido recentemente alcançada “no papel”, na maioria dos estados do sul dos anos 1950 havia escolas públicas segregadas. Os estudantes brancos frequentavam escolas próximas, localizadas nos seus bairros, enquanto os estudantes não-brancos frequentavam um sistema diferente de escolas, escassas, espalhadas pela cidade. Essas escolas tinham os seus próprios professores, directores, reitores e gestores, que também eram pessoas de cor.

A família Brown – que deu o nome ao caso – tinha uma filha de 7 anos chamada Linda que, para poder ir até à sua escola para não-brancos, tinha que andar 7 quarteirões, muitas vezes com mau tempo, e depois atravessar uma rua movimentada para apanhar um ónibus que a levava até ao outro lado da cidade… embora houvesse uma escola somente para brancos a apenas 4 quarteirões de sua casa. À luz dessa injusta segregação, um dos principais grupos de direitos civis, a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), instruiu a família Brown e outras 12 famílias negras a tentarem matricular os seus filhos nas escolas brancas da sua vizinhança. Como devem imaginar, foi-lhes negada a admissão devido à sua raça, e isso deu início a um caso que eventualmente chegou ao Tribunal Supremo dos EUA e se tornou na famosa e emblemática vitória Brown vs. Conselho de Educação, em 1954.

No entanto, se olharmos cuidadosamente para a informação do caso, notamos um esforço concertado em estabelecer uma noção de inferioridade das escolas para não-brancos, que é até realçado na sentença:
“A segregação de crianças brancas e de cor nas escolas públicas tem um efeito negativo sobre as crianças de cor”;
“A política de separar as raças é normalmente interpretada como denotando a inferioridade do grupo negro”;
“A segregação com a sanção da lei, portanto, tende a retardar o desenvolvimento educacional e mental das crianças negras”.

Todos estes excertos da decisão judicial reforçam a noção de que as escolas para brancos eram superiores e de que a segregação das escolas estava a ter graves efeitos negativos, estando mesmo a retardar as crianças de cor. Mas não era isso que os movimentos de direitos civis diziam. Diziam que a segregação e a discriminação racial eram injustas e inconstitucionais e que todos deveriam ter o mesmo direito de escolher qual a melhor escola para si. Em resumo, era fundamentalmente uma questão de princípios legais e morais, mesmo que a qualidade das escolas para brancos e não-brancos fosse a mesma.

E caso você se esteja a perguntar, a resposta é não. As escolas para não-brancos não eram inferiores. Aliás, eram frequentemente melhores. Uma das razões para isso é que mesmo as mais altamente educadas e capazes pessoas de cor eram proibidas de trabalhar em certos sectores e, em geral, discriminadas em todos os outros. Dar aulas no sistema escolar para não-brancos era uma das poucas opções ​​de emprego respeitáveis para estes indivíduos. Assim, havia um número muito alto de professores de cor altamente talentosos, inteligentes e sobrequalificados. Além disso, o movimento pelos direitos civis valorizava a importância da educação e muitos desses talentosos indivíduos tornaram-se professores para contribuir para a educação e esclarecimento político das pessoas de cor.

Porquê que tudo isto é importante?
Embora a luta para alcançar direitos iguais para todas as raças e acabar com a segregação do sistema educacional fosse o passo mais importante neste processo, o preconceito racial do sistema (inclusive do Tribunal) instintivamente assumiu que as pessoas de cor e os sistemas de educação que eles estavam a orientar eram inferiores aos orientados pelos brancos. Isso ficou claramente refletido na decisão centrada em torno dessa noção e consequentemente o processo reforçou essas visões raciais, imorais e incorretas. Ainda assim, o caso é visto como um marco, como uma grande vitória para todos, e é usado como exemplo para outras lutas. Sem dúvida, mas não nos podemos esquecer do custo desta estratégia. Não nos podemos esquecer do enquadramento permitido e das premissas consentidas para aumentar a probabilidade de vitória. A noção de que o sistema escolar para não-brancos era detrimental para os estudantes de cor era uma noção estrategicamente útil para fazer com que os brancos aceitassem que a segregação era injusta, além de inconstitucional.

Mas alimentar, usar ou somente permitir que essas visões sociais incorretas e imorais prevaleçam, tem sérias consequências a longo prazo. No caso da sentença de Brown vs. Conselho de Educação, as consequências chegaram com o processo de integração. À medida que se começaram a integrar as escolas para brancos e não-brancos, foram sendo tomadas decisões sobre quais escolas deveriam ser fechadas, sobre quais os melhores professores para trabalhar nessas novas escolas integradas e, claro, os pais podiam agora escolher a melhor e mais próxima escola da vizinhança para os seus filhos. Logicamente, escolher o melhor dos dois sistemas teria produzido um óptimo sistema de ensino, mas a sentença já definira incorrectamente quais eram as melhores escolas e os melhores professores. Assim, quase todas as escolas originalmente para não-brancos foram fechadas e quase todos os professores despedidos no processo eram negros. Muitos deles com níveis mais altos de educação, com claramente mais experiência, ou mesmo com melhores resultados do que os seus colegas brancos.

Basicamente, num processo nada lógico, justo ou mensurável, os professores negros mais qualificados foram dispensados em favor de professores brancos menos qualificados. O que também é triste, é que os professores negros melhor qualificados foram propositadamente dispensados ​​porque desafiaram a noção que era a base do processo de integração e foram vistos como uma ameaça. Nos estados do sul havia mais de 82.000 professores na época do caso Brown. Durante o processo de integração quase metade (40.000 professores) foram demitidos, e se houvesse professores brancos suficientes para lidar com esse sistema escolar unificado e mais amplo, teriam sido demitidos mais.

Como você deve imaginar, o movimento pelos direitos civis não permitiu que essa injustiça em relação aos professores de cor acontecesse sem dar luta e, em 1959, o Caso Naomi Brooks et al., Apelantes, vs. Distrito Escolar da Cidade de Moberly, Missouri, Etc., et al. chegou ao rol de processos do Tribunal Supremo, mas foi recusado e a razão por trás dessa decisão está imbuída em racismo e preconceito. O caso tinha evidências tão claras, que o juiz teve que encontrar maneiras estranhas de contornar os factos, chegando a afirmar sobre uma professora que “ela dava a impressão de que se considerava superior às outras professoras”. Ela era muito superior em todos os termos mensuráveis ​​à professora que foi selecionada em seu lugar e nenhuma evidência foi dada para refutar essa afirmação. Outra declaração tenta explicar os padrões de contratação dizendo que as habilidades humanas não podem ser “reduzidas a uma fórmula matemática”, estabelecendo assim as bases para ignorar todos os factos, dados e evidências provando que os professores em questão eram mais qualificados do que os seus colegas brancos que haviam sido selecionados. Sem querer entrar muito em detalhes, acho que todos entendemos os padrões.

Esses dois casos estão fortemente ligados e destacam o difícil equilíbrio entre ideologia e estratégia. Terá o caso Brown sido estratégico demais ao permitir que os preconceitos raciais do tempo o ajudassem a vencer? O custo foi pago pelos professores de cor, que arcaram com as consequências da cedência ideológica de então. Terá o caso Moberly sido ingenuamente ideológico e não suficientemente estratégico, tendo por isso resultado em derrota? Na verdade não sei, nem tenho o direito de criticar o incrível trabalho realizado pelo movimento dos direitos civis. No entanto, acredito que devemos saber e reconhecer quem pagou o custo dessas batalhas. Quem, por exemplo, pagou o preço da integração. Neste caso, um dos mais afectados e subestimados grupos de indivíduos, os incríveis professores de cor que foram tão importantes para o esclarecimento da juventude de cor. E não nos esqueçamos que mesmo os professores que conseguiram manter os seus empregos, ainda tiveram de enfrentar a realidade de todas as pessoas de cor da época. No seu caso específico, ser constantemente atormentados, ser proibidos de usar a sala de professores só para brancos ou até mesmo a casa de banho, entre outros…

Para ser claro, o caso Brown vs. Conselho de Educação foi realmente importante e os EUA seriam um país muito mais injusto hoje sem ela. Mas isso lembra-nos que devemos sempre considerar e saber quem paga o preço de algumas das nossas estratégias. Acho que alguns de vocês devem estar a pensar “interessante, mas o que tem isto a ver connosco em Moçambique?”

 

Contexto de Moçambique
Bem, a sociedade civil de Moçambique é muito “prestadora de serviços” com uma forte tendência para a profissionalização e com agendas orientadas para os doadores. Mesmo os poucos movimentos que temos parecem estar a caminhar nessa mesma direção, com as equipas técnicas a exercer cada vez mais influência sobre a liderança política dos movimentos. A maioria das estratégias e trabalhos dos grupos, muda de acordo com as tendências de financiamento, montando os seus objetivos e actividades de modo a satisfazer os sistemas e interesses dos doadores, não o bem-estar a longo prazo das pessoas que eles afirmam representar.

As poucas organizações de base ideológica em Moçambique são muitas vezes rotuladas de “radicais”, “irrealistas”, “extremistas”, etc. Em alguns casos, são até acusadas de serem “contra o desenvolvimento”, “antipatriotas”, ou de servirem interesses estrangeiros. O problema é que, subconscientemente, a nossa sociedade civil acredita que não tem e jamais terá poder algum e, como tal, concentra-se em tentar tirar o melhor proveito possível de uma situação manifestamente má. Por outras palavras, contentam-se em lutar pelas migalhas que caem da mesa dos mestres.

Um bom exemplo disso tem sido testemunhado na campanha contra o Prosavana. No início, havia mais de 20 grupos envolvidos. Os factos do projeto deixavam claro que este seria devastador para os agricultores de subsistência da região. Posto isto, desenvolveu-se a campanha “NÃO ao Prosavana”, mas ao fim de pouco tempo alguns grupos começaram a sair da campanha. Uns, porque grandes fundos foram tornados disponíveis para quem estivesse disposto a trabalhar no processo por dentro – numa tentativa clara de mostrar aos investidores que os componentes sociais e ambientais são levados em consideração (green wash) pelo projecto; outros, começaram a sentir a pressão política e o poder das elites. Por fim, alguns grupos perceberam a magnitude do projeto e os poderes envolvidos, levando-os a acreditar que o projeto era uma realidade incontornável e que a única coisa a fazer era tirar o melhor proveito possível desta má situação e lutar pelas migalhas.

De todos os grupos que começaram a Campanha, nenhum acreditava que o projecto pudesse ser de algum modo benéfico para o povo. Todos concordavam que, num mundo ideal, a única resposta para esse projecto seria “NÃO!” No entanto, com o passar do tempo e o endurecer da campanha, a mensagem de muitos deles passou a ser “precisamos sentar-nos à mesma mesa, devemos negociar, podemos humanizar o Prosavana”. Nenhuma dessas ONGs tem algo a perder com essa chamada “abordagem estratégica”. Elas são pagas pelos financiadores para se sentarem à mesa e serem estratégicas. Elas, não só não estão a defender os interesses das pessoas afectadas que correm o risco de perder as suas terras e meios de subsistência, como estão a criar uma falsa noção de que o Prosavana poderá ser benéfico, com apenas alguns ajustes.

Nós recusamo-nos a ser estratégicos neste caso porque sabemos que sentar nessa mesa é ser cúmplice da perda de sustento de milhares de agricultores de subsistência. Só se pode ser estratégico dentro de um enquadramento ideológico. Ser estratégico sem uma base ideológica torna-nos susceptíveis a ficar à deriva e a perder a visão a longo prazo que é necessária para realizar qualquer mudança significativa. O foco em actividades pequenas e tangíveis cria espaço para o descontentamento em relação a objetivos, como bolhas independentes que estoiram e não causam qualquer impacto duradouro. São bonitas e divertidas, mas não têm qualquer substância.

Mesmo na fase inicial da campanha “Não ao Prosavana”, puderam ver-se os benefícios de uma abordagem ideológica. Originalmente, Moçambique era visto como um país favorável ao investimento em terra em larga escala, graças à postura pro-corporativa dos seus governos e à sua fraca sociedade civil, sempre disposta a sentar e a fazer a green wash dos seus investimentos. A “Não ao Prosavana” (administrada por apenas 8 grupos) conseguiu mudar essa percepção dos investidores em usurpação de terra. Moçambique é agora visto como um país com riscos para os investidores, onde a sociedade civil e as comunidades afectadas podem causar grandes dores de cabeça, atrasos e problemas para os investidores. Onde a situação da usurpação de terra está a começar a causar ampla preocupação pública e é até mesmo mencionada como um possível futuro motivo de tumulto público se não for gerenciado. Um académico chegou mesmo a especular que numerosos investidores se afastaram de investir em grandes projectos de usurpação de terra em Moçambique devido ao “Não Prosavana” e à sua capacidade de expor os impactos, desenvolver percepções do público, etc… Assim, mesmo que o projecto prossiga, a campanha contribuiu para uma visão crescente dos direitos à terra e fortaleceu a confiança da sociedades civil e o seu direito de dizer que NÃO!

De momento, a campanha de mudanças climáticas conta uma história similar em Moçambique. A sociedade civil está muito feliz por apanhar a boleia do Acordo de Paris, celebrando-o, mesmo que este não chegue nem perto de atender ao que a ciência diz ser necessário, mesmo que não promova as soluções que as pessoas já demonstraram ser as melhores, mesmo não sendo juridicamente vinculativo e ainda que poucas ou nenhumas consequências graves haja para os países que não cumpram com os objectivos que eles próprios traçaram com muito pouca consideração pela ciência e pelos factos. O Acordo de Paris vai queimar o planeta e Moçambique será um dos países mais severamente afectados logo de início. Defender o Acordo de Paris é, na melhor das hipóteses, uma abordagem estratégica completamente delirante. Depois de terem estabilizado nos últimos anos, as emissões estão agora a voltar a subir (pesquisa do final de 2017). Os líderes não estão a cumprir nem as extremamente brandas metas do acordo que eles próprios definiram. No entanto, a sociedade civil moçambicana contenta-se em alimentar-se de restos e em trabalhar em sincronia com as prioridades dos doadores, porque existem quantias significativas de fundos; porque há metas que podem ser vencidas; e porque é isso que eles acreditam ser possível e realista. Em suma, é a opção estratégica a tomar…

É simples, a nossa sociedade civil já não trava as suas lutas por uma ideologia, pois está excessivamente focada em estratégias e ganhos a curto prazo que depois tentam fazer passar por vitórias. O caso Brown, mostra como até mesmo pequenas acções estratégicas têm consequências a longo prazo, mas pelo menos eles venceram a batalha. Imagine então os impactos a longo prazo da actual abordagem de Moçambique. Abordagem essa que, duvido que alcance qualquer mudança. Nós, a sociedade civil, parecemos ter aceite a derrota e estamos a concentrar-nos nas migalhas. E nem parecemos estar preocupados em entender quem pagará o custo de tudo isso… Todas as lutas precisam de ser edificadas em torno de uma ideologia, e é nessa base que depois podemos ser estratégicos. Não podemos deixar a estratégia se sobrepor aos valores da nossa ideologia, nem que isso implique que tenhamos que percorrer um caminho mais longo para atingirmos os nossos objetivos. Assim, quando ganharmos a nossa luta também traremos essa base de valores para a nossa sociedade e não apenas a questão específica que desencadeou a nossa luta. A vida é uma luta e a verdadeira mudança exige tempo e coragem.

Os monstros das injustiças de hoje não estão a caminhar silenciosamente para a noite. Eles não têm moral, coração ou consciência, por isso não podem ser guiados ou convencidos com base na lógica, ciência ou humanidade básica. Eles têm uma fome infinita por capital e morrerão de fome se pararem de fazer o que melhor fazem. Eles continuarão a fazê-lo até se consumirem a si mesmos ou até causarem um colapso planetário. A culpa não é dos monstros, é da natureza da besta. Quanto tempo podemos viver de suas migalhas antes de tudo que conhecemos desmoronar? É hora de acabar com o capitalismo… vamos matar esse monstro!

Iniciativas de conservação comunitária, ainda constituem um desafio para Moçambique

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A Justiça Ambiental participou, nos dias 26 e 27 de Fevereiro, num encontro de troca de experiência regional africana sobre Iniciativas de Resiliência Baseada na Conservação Comunitária. A iniciativa foi organizada pela Global Forest Coalition (GFC), uma aliança internacional de organizações não governamentais e organizações de povos indígenas defensoras de justiça social e das comunidades dependentes de florestas. O evento, que decorreu em Nairobi, Quénia, consistiu na partilha de experiências sobre promoção e fortalecimento de práticas resilientes sobre conservação comunitária a nível de países africanos e contou com participação de cerca de 20 países do continente, incluindo Moçambique, África do Sul, Nigéria, República Democrática do Congo, Marrocos, Egipto e Camarões.

No decurso do encontro foram feitas apresentações de várias experiências de maneio comunitário de recursos naturais, sobretudo para fins de conservação, e constatou-se que vários países de África já possuem cultura de conservação comunitária bem consolidada como uma ferramenta importante para adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Moçambique ainda constitui uma excepção pelos vários desafios que enfrenta na componente de conservação comunitária. As comunidades rurais destes países africanos apresentam várias semelhanças no que respeita ao maneio e utilização dos recursos naturais para subsistência, onde a agricultura, a caça, o aproveitamento de frutos silvestres e das águas das nascentes caracterizam o modo de vida das comunidades. Adicionalmente, os desafios para sustentabilidade ambiental seguem tendências semelhantes, com destaque para o desmatamento e degradação florestal, corte ilegal de madeira, poluição, pressão sobre recursos hídricos para agricultura de grande escala, plano de uso de terra pobre e perda de biodiversidade entre outros.

Ainda durante o encontro foram discutidas estratégias para melhorar a colaboração entre as comunidades rurais e as organizações da sociedade civil, especialmente a nível local, nacional e internacional; as principais necessidades de capacitação às comunidades e outras lições aprendidas que deveriam ser levadas em conta no futuro. Assim sendo, vários intervenientes foram unânimes em referirem que, para a sua efectividade, os projectos e iniciativas de conservação comunitária não devem ser feitos PARA as comunidades locais, mas sim COM as comunidades locais, de forma a que elas se identifiquem e se apropriem da iniciativa para que após o término de financiamento do projecto garantam a continuidade das acções a serem desenvolvidas para beneficio local e não só.

Associado a isto, concluiu-se que iniciativas deste género devem estar aliadas a um modelo integrado de esforços, nas quais vários actores externos – incluindo Organizações Não Governamentais, o Governo, doadores e media – devem apoiar a resiliência comunitária e a capacidade de conservar os seus recursos naturais e o ambiente, sobretudo no aumento da consciência comunitária acerca da conservação ambiental e efeitos das mudanças climáticas, fornecimento de apoio financeiro para esforços de conservação, bem como o esforço de advocacia para inclusão de género em todas acções relacionadas com gestão da terra e de recursos naturais.

Este encontro acontece igualmente numa altura em que se aproxima a celebração do Dia Internacional das Florestas (21 de Março), uma data que vem realçar a necessidade de se preservar as florestas pela sua vital importância para a natureza e para o homem, bem como pelo fornecimento de bens e serviços do ecossistema para as comunidades que destas dependem directa ou indirectamente.

Nesta mesma abordagem, enquadra-se a recente aprovação da Lei de Conservação da Biodiversidade de Moçambique que num dos seus artigos prevê a categoria de Áreas de Conservação Comunitária – áreas de conservação de uso sustentável, do domínio público comunitário, delimitadas, sob gestão de uma ou mais comunidades locais e onde estas possuem o direito de uso e aproveitamento de terra, destinada a conservação da fauna e flora e uso sustentável dos recursos naturais. Por si só, a promulgação desta Lei já constitui um avanço para a conservação da biodiversidade. O desafio é a implementação efectiva da mesma, e é precisamente neste contexto que se espera do Governo de Moçambique um apoio mais activo em iniciativas como estas, para que áreas como Floresta do Monte Mabu – um hotspot de biodiversidade localizada no distrito de Lugela, província da Zambézia – por exemplo, sejam legalmente consideradas áreas de conservação comunitária antes que ocorram perdas significativas de biodiversidade que exponham ainda mais as suas comunidades vulneráveis às mudanças climáticas e reduzam ainda mais as suas alternativas de sobrevivência.

Impunidade Corporativa: Estratégias de Luta (Parte III)

jpg_montajeO padrão repete-se. O dono da bola é quem dita as regras do jogo. E quando os outros não querem aceitar as suas regras, ameaça ir-se embora com a bola.

Bem, a história já se cansou de nos provar que, enquanto as decisões forem tomadas por algumas (curiosamente as mesmas) minorias, as “maiorias” vão continuar a arcar com as despesas e consequências dessas decisões. Por outras palavras, enquanto a irresponsabilidade for um privilégio de alguns, a impunidade será o karma de muitos.

Parece-nos mais do que óbvio que não podem ser as empresas Vale e BHP Billiton a propor e administrar os programas de reparação dos danos causados pelo enorme crime ambiental cometido pela sua “filha” inconsequente, a Samarco. Parece-nos igualmente óbvio que não pode ser a Monsanto a influenciar as decisões em relação à protecção das sementes nativas; nem uma empresa de agronegócio a desenhar um projecto de agroecologia numa qualquer comunidade rural. Parece tudo tão óbvio, que nem deveria ser preciso lembrar. Mas é.

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Se não fosse preciso lembrar, não teríamos ministros do meio ambiente a validar licenças de impacto ambiental das suas próprias empresas. Se não fosse preciso lembrar, não teríamos tribunais internacionais ou mecanismos de resolução de lítigios investidor vs. Estado onde a deliberação cabe a juristas conhecidamente do seio desses investidores. Se não fosse preciso lembrar que não cabe ao réu definir a sua própria sentença, também não teríamos organizações que representam o interesse privado a apresentar as suas demandas ao Grupo de Trabalho Intergovernamental (GTI) da ONU cujo mandato é elaborar um tratado para regular as empresas Transnacionais.

Mas não só é preciso lembrar, como é urgente tomar medidas para impedir a captura corporativa de espaços e entidades que se propõem a responsabilizar agressores e impedir que os crimes aconteçam na impunidade. A postura e o discurso da União Europeia durante a terceira sessão deste GTI, no fim do mês passado, serviu também para nos mostrar quão atentos devemos estar a hipocrisias ideológicas. Quando falamos de Direitos Humanos, todos os Estados parecem estar mais do que empenhados para os proteger. Os discursos assemelham-se e as promessas amontoam-se, mas quando chega a hora de fazer avançar um instrumento que realmente poderá oferecer um contrapeso ao excessivo poder e liberdade das grandes corporações, algumas máscaras começam a cair. Afinal, responsabilizar criminosos que sempre contaram com um tal de “ambiente favorável a negócios” não parece ser algo que a União Europeia esteja assim tão disposta a fazer.

Um processo de tomada de decisões, para ser democrático, tem de ser participativo e inclusivo. A mudança social no sentido de colocar os Direitos Humanos acima dos interesses privados do lucro não só partiu como está a ser impulsionada pelas vítimas das violações corporativas. São os testemunhos e as lutas destas pessoas, organizadas e mobilizadas para exigir o fim da impunidade, que têm sido o coração e a alma da proposta de Tratado elaborada pela Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo. Este documento, cuidadosamente preparado por activistas, académicos, advogados e vítimas de violações de Direitos Humanos e submetido ao GTI, é resultado de um processo de consultas amplo e colaborativo e portanto traz as soluções consideradas mais eficientes por aqueles que mais anseiam pela justiça, como a criação de um Tribunal Internacional para julgar os crimes das corporações transnacionais.

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Felizmente, a verdade é que mesmo com os atrasos e tentativas de sabotagem da União Europeia e de alguns Estados, a sessão deste ano levou-nos um passo adiante em direcção ao Tratado. As mais de 200 organizações da sociedade civil presentes, de mais de 80 países, não teriam aceitado outro desfecho. No fim da semana, o Presidente do GTI Guillaume Long, do Equador, aprovou consensualmente o avanço do processo rumo à quarta sessão, que deverá acontecer em Outubro de 2018 e contará já com um draft do Tratado.

Mas o Tratado da ONU não é o único caminho que temos para combater a supremacia do lucro sobre todas as outras esferas da vida. A JA, bem como grande parte das OSCs que fazem parte da Campanha Global, tem em curso, a nível nacional, processos legais contra empresas transnacionais que actuam inconsequentemente; processos de formação e capacitação de comunidades afectadas e de OSCs – que desempenham um papel crucial na consciencialização e mobilização dos povos para a exigência dos seus direitos; bem como a criação de alianças entre organizações e comunidades, local e internacionalmente. Além disso, estamos também empenhados na construção de alternativas práticas, colectivas e de pequena escala ao modelo global de desenvolvimento que está na base desta lógica da impunidade. De projectos de gestão comunitária de recursos naturais a escolas de activismo, as oportunidades são infindáveis.

A nível do que tem sido feito numa escala mais regional, a Campanha da África Austral para Desmantelar o Poder Corporativo tem se focado no Direito a dizer que NÃO, uma campanha lançada após a segunda sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) da África Austral, em Agosto deste ano, para ressaltar o papel das comunidades locais na aprovação (ou não) de projectos de investimento nas suas terras. Este trabalho enquadra-se na problemática da pilhagem desenfreada dos recursos naturais de África por parte de corporações estrangeiras e nacionais mascarada pelos chamados projectos de “desenvolvimento” e do fenómeno de usurpação de terras que tem afectado o continente de forma particularmente preocupante.

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O Direito a dizer que NÃO parte do direito substantivo dos povos ao consentimento livre, prévio e informado (CLPI), um princípio protegido pelas leis internacionais de Direitos Humanos em que as comunidades têm o direito de dar o seu consentimento a projectos que afectem as suas terras, recursos ou meios de vida. Para que este direito se materialize, a decisão da comunidade deve ser tomada sem qualquer tipo de obrigação ou coerção e toda a informação sobre o projecto deve ser apresentada de forma clara e compreensível para que a comunidade compreenda a natureza e o escopo do projecto, bem como os seus possíveis impactos ambientais, sociais, económicos e culturais. Este direito ao CLPI põe a decisão do desenvolvimento nas mãos da comunidade local, e não deve ser visto como uma mera consulta pública. Significa, na verdade, que a comunidade tem o Direito a dizer que NÃO a qualquer projecto no seu território, e também o direito de propor e sugerir projectos alternativos de desenvolvimento.

O Direito a dizer que NÃO é fundamental para o momento que vivemos globalmente, mas principalmente a nível do continente Africano. Ameaçado por sérias crises ambientais, climáticas e sociais, colocar a negociação do futuro de África nas mãos das comunidades é, não só, garantir que as opções escolhidas representam as suas prioridades e necessidades mais urgentes, como é também mais um passo dado na direcção da soberania dos povos Africanos. Conforme deliberação do painel de jurados da sessão de Agosto do TPP da África Austral, “a reafirmação constante ‘NÃO sem o nosso consentimento’ demonstra um desenvolvimento que parte do povo, que não acontece contra ou em prejuízo da natureza mas sim por meio de uma rede holística, conectada e inter-relacionada entre o planeta e todos os seus habitantes, onde todos os povos se podem mover livremente, sem qualquer perseguição ou preconceito.”

O Direito a dizer que NÃO representa, portanto, a luta contra um capitalismo neoliberal imposto pelos países do Norte Global, a luta contra a hegemonia do lucro e do interesse privado sobre a vida, a luta das mulheres pelo controlo das suas vidas e dos seus corpos, a luta dos povos rurais pela defesa dos seus meios de vida, a luta contra o extractivismo e as energias sujas que são um retrocesso nos nossos esforços globais para alcançar a justiça climática, a luta contra o neocolonialismo e o imperialismo. É uma luta por soberania e pelo protagonismo na tomada de decisões, que devem ser tomadas, acima de tudo, por aqueles que vão ser mais afectados por elas. Para nós, Africanos, representa ainda uma reapropriação do direito de decidir o nosso futuro, direito que, há séculos, nos tem vindo a ser negado.

Conflitos de terra entre a Green Resources Moçambique e as comunidades locais levados a discussão na Noruega e na Suécia

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A Justiça Ambiental, a Livaningo e a União Nacional de Camponeses, com o apoio da Afrikagrupperna, lançaram em Setembro do ano passado o estudo “O Avanço das Plantações Florestais sobre os Territórios dos Camponeses no Corredor de Nacala: o caso da Green Resources Moçambique”. No âmbito desta iniciativa as três organizações acima citadas produziram também um breve documentário que ilustra a situação das comunidades afectadas pelos conflitos de terra com a Green Resources Moçambique. Adicionalmente, em parceria com o World Rainforest Movement, foi elaborada uma petição, que obteve 12.332 assinaturas de singulares e de organizações nacionais e estrangeiras e que foi submetida às empresas Green Resources na Noruega, Portucel/The Navigator Company em Portugal, bem como às devidas instituições governamentais moçambicanas, nomeadamente o Ministério da Terra Ambiente e Desenvolvimento Rural e o Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar. A petição tem como principal demanda que as empresas Green Resources e Portucel – bem como todas as demais empresas que detém grandes extensões de terra fértil para monoculturas de árvores no leste e no sul de África – devolvam a terra às comunidades locais, de modo a resolver os actuais conflitos de terra e impedir novos conflitos. Na petição exigimos que o Governo de Moçambique assegure que a Lei de Terras é de facto cumprida e garanta que os direitos das comunidades à terra, água e alimentos sejam devidamente respeitados.

Até ao momento não recebemos qualquer resposta formal à nossa petição, no entanto, tivemos recentemente conhecimento que a Green Resources respondeu ao documento através da sua página na internet. A sua resposta pouco ou nada traz de novo, mas apresenta um dado bastante curioso. Um dos argumentos mais falaciosos para o estabelecimento de plantações de monoculturas tem sido o seu alegado uso de terras degradadas e marginais, mas na sua resposta, a Green Resources afirma precisamente o contrário, que precisam de terras férteis para as suas plantações. Mas nós precisamos de produzir comida meus senhores!!!

Desde o lançamento público do estudo, a JA, a Livaningo e a UNAC tiveram dois encontros com a Green Resources Moçambique mediados pela Embaixada da Noruega. Infelizmente, ambos foram pouco produtivos ou esclarecedores. Nestes encontros, a empresa mostrou-se profundamente indignada pelo estudo, no entanto, não soube justificar as razões de tanta indignação. Entre outras críticas, os representantes da Green Resources disseram lamentar que as três organizações responsáveis pelo estudo não lhes tenham enviado o estudo para comentários antes da sua publicação. Importa reconhecer que a empresa referiu nos dois encontros estar aberta a discutir as questões apresentadas no estudo.

É igualmente importante notar que a empresa foi sim consultada durante a elaboração do estudo. O seu parecer sobre os conflitos e problemas identificados foi considerado e consta do relatório. No entanto, obviamente, as suas justificações ou a sua negação da existência de conflitos e situações que foram identificadas durante o trabalho de campo não podiam ser eliminadas do relatório final pura e simplesmente porque a empresa se recusa a aceitá-las ou não tem interesse em divulgá-las. Durante a elaboração do estudo diversos documentos foram solicitados, actas de consultas comunitárias, processos de aquisição de DUAT, etc, e apesar da empresa referir inúmeras vezes que tem registo de tudo e tudo foi feito de acordo com a Lei nacional, não tivemos acesso aos documentos solicitados e fomos aconselhados a solicitar os mesmos ao governo. Este jogo já conhecemos, e como era de prever, nenhum destes documentos nos foi facultado até hoje.

As situações de conflitos de terra, queixas referentes ao processo de compensações e a insatisfação das comunidades afectadas, na sua maioria, permanecem por resolver; e dada a difícil comunicação e acesso à informação, as organizações decidiram levar a questão para apresentação e discussão na Noruega (país de origem da Green Resources) e na Suécia (pela relação desta com a Chikweti adquirida pela Green Resources). Foi neste âmbito que uma delegação composta por representantes da JA, Livaningo, UNAC, União Provincial de Camponeses de Niassa e representantes das Comunidades de Meparara, Namacuco e Lanxeque, distrito de Ribaué, província de Nampula, esteve na Noruega de 26 a 29 de Setembro, onde se reuniu com a Norfund, com a Norad, com membros do parlamento Norueguês e com diversas organizações da sociedade civil. Nestes encontros a delegação apresentou as principais constatações do estudo e foram discutidos os conflitos com as comunidades locais e o modo como estes actores poderão intervir na resolução dos mesmos. Contrariamente ao que acontece em Moçambique, onde se perde imenso tempo a negar a existência dos problemas sem os discutir, a dificultar o acesso à informação e simplesmente a fazer de conta que não existem, na nossa visita, em quase todos os encontros que tivemos sentimos que havia vontade genuína de perceber a situação em muitos casos desconhecida e tivemos acesso a informação que aqui nunca nos foi facultada embora fosse um dos temas tratados. Por exemplo, no encontro com a Norfund – um dos financiadores da Green Resources Moçambique – tomámos conhecimento de que a certificação FSC para as plantações na Província de Nampula (Lurio Green Resources FSC- C110223) está suspensa. Ou seja, a certificação FSC de que a Green Resources Moçambique se gaba sempre que é confrontada com os inúmeros problemas nas comunidades, está suspensa desde Maio de 2016 devido aos inúmeros problemas detectados.

É lamentável a falta de transparência da Green Resources Moçambique, que tem mencionado a certificação FSC em todos os momentos em que é confrontada mas em nenhum momento referiu que esta foi suspensa no ano passado.

A certificação FSC é utilizada pelas empresas como selo de qualidade, pretendendo assegurar ao consumidor que a madeira que adquire é proveniente de florestas exploradas de forma socialmente justa, economicamente viável e ambientalmente adequada, no entanto, a credibilidade deste processo tem sido largamente questionada devido a vários casos em que são reportados conflitos graves com comunidades locais e questões ambientais sérias enquanto as empresas mantêm a certificação. Outro aspecto que contribuiu bastante para a perda de credibilidade da certificação FSC foi a inclusão de plantações de monoculturas e não apenas floresta nativa.

Na Noruega, tivemos ainda um encontro com um representante da Green Resources, mas infelizmente fomos prontamente avisados que a pessoa com quem nos reunimos não era a pessoa responsável por essas questões e, como tal, não estaria apta a responder pelas mesmas. No entanto, iria transmitir as discussões aos colegas de modo a dar seguimento ao processo. Apresentámos as questões mais urgentes e ficou claro que não partilhamos da mesma opinião sobre a forma como têm sido conduzidos os processos ao nível das comunidades locais, pois segundo o mesmo tudo foi feito de acordo com a Lei e todas as compensações foram devidamente calculadas, negociadas e pagas. Claramente não dispomos da mesma informação. Entregamos cópias das fichas de pagamento de compensações para que visse os valores pagos, e cópias das fichas de recolha de informação sobre as áreas de machamba e o número de árvores e estes documentos não deixam dúvida de que há matéria para discussão e há várias situações que requerem solução urgente.

Uma outra questão que tem sido motivo de inúmeras discussões entre as comunidades locais e a empresa são as promessas que foram feitas durante as consultas comunitárias e que foram de facto a razão principal de muitos membros das comunidades terem aceite ceder as suas terras. A Green Resources tem se esquivado dessas promessas alegando ter sido mal compreendida pelas comunidades. O objecto dessas promessas são infra-estruturas sociais que, a bem da verdade, deveriam ser responsabilidade do governo e não de empresa alguma. Mas curiosamente, no Relatório Público de Certificação Florestal Woodmark, esta é uma das questões problemáticas identificadas e à qual se chama a atenção da empresa: “Aquando das consultas das comunidades, comités e líderes foi repetidamente mencionado que a LGR prometeu construções de infra-estruturas sociais, incluindo escolas, furos de água e postos de saúde. Estas promessas ainda não foram cumpridas. Os gestores da empresa dizem que vão honrar os compromissos por fases e de acordo com as prioridades. Como evidência a empresa mostrou um contrato com a BJ Drilling, Lda, para abertura de 7 furos de água nos 3 distritos onde operam. LGR deverá assegurar que as expectativas da comunidade são geridas e que comunicam regularmente sobre o progresso e planos para cumprir os compromissos sociais.”

Um outro dado novo para nós é a actual situação financeira da empresa. Segundo informação confirmada na reunião com o representante da Green Resources na Noruega, a empresa está a atravessar sérias dificuldades financeiras e esta é a razão principal para não ter ainda levado a cabo os projectos sociais, que incluem as inúmeras promessas que tem sido constantemente citadas e, de certa forma, recusadas pela Green Resources Moçambique.

Qual é a dimensão desta crise financeira da Green Resources em Moçambique? Qual é a estratégia da empresa para resolver a sua situação financeira sem prejudicar ainda mais as comunidades locais e como poderá ainda cumprir as suas obrigações com as comunidades afectadas neste cenário? Questionamos se existe uma estratégia de saída em caso de falência, e percebemos que em caso de falência tudo ficará nas mãos dos bancos… não há qualquer estratégia!

Após os encontros na Noruega a delegação partiu para a Suécia onde esteve de 29 de Setembro a 4 de Outubro numa série de encontros incluindo um seminário aberto na feira do Livro de Gotemburgo, encontros com pesquisadores, com organizações da sociedade civil, com representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e parlamentares.

Em todos os encontros tidos tanto na Noruega como na Suécia, ficou claro que embora possamos não concordar em tudo, há espaço para discutir os conflitos entre a empresa e as comunidades afectadas. Estes conflitos são inegáveis e resultam de processos mal conduzidos, de uma aplicação selectiva da lei e são agravados ao longo dos anos pela falta de sensibilidade e arrogância na abordagem dos mesmos, pela gritante desigualdade de poder entre os investidores e as comunidades locais nos processos de negociação e pela ganância por acumular mais e mais terra, competindo directamente com a produção de alimentos. Isto num país em que se diz que a agricultura é a base do desenvolvimento, mas que no entanto promove cada vez mais investimentos que requerem largas extensões de terra e que afastam mais e mais camponeses das suas terras.

A luta continua.

Camponês VS Ganância

“Os ensaios em campos confinados do projecto WEMA anunciam o início de uma era de organismos geneticamente modificados em Moçambique, fenómeno que alterará por completo os seus sistemas de alimentação e agrícola, a sua biodiversidade e a sua cadeia de valor alimentar. (…) Culturas geneticamente modificadas resultarão no declínio da diversidade de sementes e, o mais certo, os camponeses não poderão semear sementes conservadas por eles. Isto terá implicações nefastas e consequências profundas no sistemas de sementes geridos por camponeses em Moçambique.”

Em O Ataque do Milho Geneticamente Modificado em Moçambique: Minando a Biossegurança e os Camponeses, por African Centre for Biodiversity e Acção Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais

 

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Fotografia do Facebook do IIAM

 

No início de Setembro, colheu-se num campo experimental do Instituto de Investigação Agrícola de Moçambique (IIAM) no Chókwè, aquela que foi, alegadamente, a primeira safra de milho geneticamente modificado plantada no país. A safra, diz a imprensa, é composta por 14 variedades experimentais do famigerado milho WEMA, – sigla em Inglês para “Milho com Eficiência Hídrica para África”.

Nós achamos lamentável. Mais um passo dado na direcção errada, mas já estávamos à espera. Era previsível. No entanto, garantimo-vos: o pior ainda está por vir. Os organismos geneticamente modificados não são compatíveis com a nossa agricultura e vão exterminá-la (a ela e aos nossos camponeses). Aqueles que são inocentes o suficiente para acreditar que são só “sementes melhoradas” para ajudar as populações, não estão a perceber que estão a ser burlados. Não estão a perceber que as “sementes melhoradas” são o fim da troca de sementes, dos bancos de sementes… Não estão a entender que as “sementes melhoradas” jamais serão suas e que ao aceitá-las estão a colocar-se nas mãos de quem realmente as detém. Não sabem do que estão a abdicar. Mas não é disso que queremos falar hoje. Hoje queremos dizer-vos porquê que os nossos governantes estão a permitir que isto aconteça.

É verdade que a produtividade agrícola do nosso país é muito baixa. Moçambique é um país de pequenos agricultores, onde predomina a agricultura familiar, grande parte da qual, de subsistência. A agricultura comercial é escassa por vários motivos: desde a falta de opções financiamento, a dificuldades de escoamento e transporte, à carência de infra estruturas como mercados, falta de meios para lidar com adversidades climatéricas, entre outros. Todos sabemos disso. É igualmente verdade que algo precisa de ser feito urgentemente para que esse cenário se reverta o quanto antes. Também sabemos disso. Entendemos também que, por vezes, “o óptimo é inimigo do bom” e para andarmos para a frente precisamos de fazer alguns sacrifícios e algumas cedências, mas sacrificar desnecessariamente o amanhã para garantir o hoje é uma burrice que só a ganância ou a preguiça e incompetência podem justificar.

Nós gostaríamos muito de acreditar na tese da preguiça e incompetência. Muito mesmo. Muito nos agradaria poder dizer com convicção que, “havendo vontade política, bem feitas as coisas, estamos certos que poderíamos muito bem desenhar soluções inclusivas que nos permitissem produzir substancialmente, em quantidade e qualidade, sem exterminar o campesinato e sem promover a usurpação das suas terras ou deitar no lixo a riqueza e diversidade genética das nossas culturas.” Gostaríamos mesmo muito de poder crer nisso. Mas só quem não conhece a classe política do nosso país julga essa tese plausível…

A verdade, infelizmente, é que estabelecer largas plantações de monoculturas expropriando centenas de milhares de camponeses e escancarar as portas do país a biotecnologia agrícola que está a ser banida mundo a fora, em Moçambique, não é incompetência. A verdade é que colocar 10 ou 20 mega projectos agrícolas ao encargo de quem pagar mais para os ter, em Moçambique não é preguiça, não é lavar as mãos da responsabilidade de governar esse território ao invés de trabalhar para reunir condições para que os 2 milhões de camponeses que o ocupam produzam o suficiente para comer e ajudar o país. Não é verdade. Pode parecer plausível para alguns, mas o problema do nosso sector agrícola não é a preguiça nem a incompetência de quem o rege.

A verdade nua e crua é que o problema é mesmo ganância. O problema são os conflitos de interesse, são as “luvas” milionárias que os nossos governantes cobram a esses lesivos agronegócios que, como uma praga, vão despoletando pelo país, para que sejam devidamente acomodados. A verdade, é que é muito mais fácil e rentável cobrar “para facilitar” a meia dúzia de corporações do que ter de inventar maneiras de complicar ainda mais a vida a milhões de pequenos machambeiros. E pese embora haja por aí muito governante mascarado de preguiçoso e incompetente, não se deixem iludir, é apenas um disfarce, debaixo da sua máscara de inábil servidor público está certamente um mui hábil corrupto. Essa, meus amigos, é a triste verdade.

Impunidade Corporativa: Estratégias de Luta (Parte II)

01

Conforme inicialmente abordada no artigo do mês passado, esta questão da impunidade corporativa – o tal do crime que compensa – tem muito que se lhe diga. Neste momento, temos os pulmões cheios com a lufada de ar fresco que foi a segunda sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) no fim do mês passado, onde um painel de 8 jurados e quase 200 participantes ouviram atentamente as denúncias das comunidades e activistas que sofrem na pele as consequências de um sistema que favorece e protege as corporações transnacionais. Os peritos constataram e reiteraram o que há muito deixou de ser novidade: o comportamento criminoso destas corporações reflecte o antro de impunidade onde elas actuam. Além de nos deixarem munidos com um relatório de deliberações (por publicar) que ajudará a expor o comportamento destas empresas, este júri deixou também bem claro que a mobilização dos povos e a abertura de espaços como este tribunal são parte fundamental da luta por justiça.

Sobre o TPP, pouco mais nos resta dizer neste momento. Podem encontrar aqui mais informação sobre os casos apresentados ou ler aqui o comunicado de imprensa da Campanha da África Austral para Desmantelar o Poder Corporativo, da qual fazemos parte. A visibilidade dada aos diferentes casos deste ano foi notória (como este artigo sobre o ProSavana na imprensa Sul-africana), e houve também espaço para uma actualização em relação aos casos levados ao TPP no ano passado na Suazilândia. Mas não é momento de abrandar o passo – após o TPP, mais momentos importantes sobre esta questão estão por vir.

02

Existe actualmente uma grande assimetria legal entre, por um lado, as infinitas regulações que protegem e salvaguardam os investimentos privados (protegendo-os até de decisões políticas que possam vir de encontro às expectativas financeiras das empresas), e por outro, a inexistente legislação coercitiva que defenda os direitos humanos. As corporações contam com um vasto leque de normas internacionais que actuam em sua defesa – desde os acordos de livre comércio aos mecanismos de resolução de litígios investidor-estado – e nenhuma que regule as suas acções tendo em conta os seus impactos. Aparentemente, há anos que se espera que os princípios orientadores ou a responsabilidade social corporativa (voluntária, unilateral e sem exigibilidade jurídica), por si só, se tornem suficientes para evitar o atropelo de direitos humanos por parte das corporações, mas, como é óbvio, isto não aconteceu nem vai acontecer.

As legislações nacionais de países como o nosso são muito débeis, para não falar da pouquíssima capacidade de aplicação e fiscalização das mesmas. É uma das razões que faz com que a Shell permaneça impune apesar dos derramamentos criminosos dos quais é responsável na Nigéria, ou que centenas de pessoas sejam retiradas de suas terras para dar lugar a plantações de palma na Indonésia. Por isso, lutar pela aplicação da legislação nacional existente é um passo importante, mas não pode ser o único se realmente queremos travar a impunidade destas poderosas corporações. É necessário pensar além. No mundo globalizado de hoje, as corporações operam em diferentes jurisdições nacionais, e aproveitam-se disso para fugir à prestação de contas. Ampliar os limites da legislação internacional e exigir instrumentos legais que ofereçam um caminho por onde as vítimas destas violações possam exigir justiça parece-nos tanto ou mais urgente.

04

O Grupo de Trabalho Intergovernamental com o mandato de elaborar um Tratado vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos, criado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2014, reunir-se-á pela terceira vez em Outubro deste ano, momento em que se discutirá concretamente o texto que deverá compor o Tratado. Esta iniciativa, que partiu dos governos do Equador e África do Sul, tem vindo a ganhar força e apoiantes. Inúmeros países, na sua maioria do Sul Global, já se manifestaram a favor do Tratado, como é o caso do Uruguai que vê neste instrumento uma oportunidade para proteger as suas políticas públicas que vêm sendo ameaçadas pelos interesses das empresas transnacionais. Moçambique, lamentavelmente, permanece completamente fora desta discussão e nem se fez representar nas duas sessões do Grupo de Trabalho dos últimos anos.

Uma aliança foi formada por organizações da sociedade civil de todo o mundo para apoiar a elaboração desta lei, e tem participado activamente nas sessões do Grupo de Trabalho de forma a garantir que esta representará verdadeiramente as necessidades das pessoas afectadas. Uma das exigências desta aliança é que este Tratado contenha provisões sólidas que proíbam a interferência das corporações nos processos de formulação e implementação de leis e políticas. De acordo com a rede Amigos da Terra Internacional (ATI), também parte da Aliança pelo Tratado, este deve estabelecer a responsabilidade penal e civil das corporações transnacionais de forma a colmatar as actuais lacunas legais do direito internacional, e deverá ser aplicável também a todas as empresas subsidiárias e que fazem parte da sua cadeia de fornecimento. Saiba mais sobre as contribuições da ATI para o Tratado aqui.

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Quando a legislação vigente não contempla a totalidade dos problemas e necessidades da sociedade, há que criar nova legislação. Foi assim com a implementação do sufrágio universal, com a abolição da escravatura, e em tantos outros momentos históricos. Acreditamos estar prestes a alcançar um marco importante na luta pela soberania dos povos e contra a impunidade corporativa, e como já dizia o poeta, não existe nada mais poderoso que uma ideia cujo tempo chegou.