“Só quando a última árvore for derrubada, o último peixe for morto e o último rio for poluído é que o homem perceberá que não pode comer dinheiro.” Provérbio Indiano
O ambiente é de medo e indignação, nas comunidades que terão que ser reassentadas se o projecto hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa for implementado. Após a grave situação em Dezembro do ano passado, em que foram feitas ameaças e acusações infundadas aos membros das comunidades de Chirodzi-Nsanangue e Chococoma por terem participado num Workshop da Justiça Ambiental (JA!) em Maputo, desta vez são os líderes locais que estão a ser intimidados para que não autorizem quaisquer reuniões desta organização Moçambicana nas suas comunidades.
Em Janeiro deste ano, uma equipa da JA! esteve a trabalhar no distrito de Marara, como parte do seu trabalho contínuo de monitoria dos impactos dos megaprojectos e capacitação das comunidades locais sobre diversos temas. No entanto, em alguns dos locais onde esteve a trabalhar, deparou-se com várias tentativas de sabotar e impedir o trabalho que tem vindo a fazer há mais de 22 anos. Os líderes das comunidades de Chirodzi-Nsanangue e Chococoma informaram à JA! que receberam orientações da Chefe da Localidade de Chococoma para não deixar a comunidade reunir-se com esta organização, deixando claro que temiam as consequências que poderiam sofrer caso não cumprissem estas ordens. A comunidade, por outro lado, manifestou-se indignada com estes acontecimentos, e pediu que a JA! desse continuidade aos trabalhos, especificando os assuntos a respeito dos quais gostariam de ser capacitados.
A equipa da JA! decidiu então questionar a Chefe da Localidade a respeito das alegações dos líderes, que se recusou a prestar quaiquer informações, e afirmou apenas que cumpre orientações que lhe chegam do Chefe do Posto Administrativo de Chococoma, seu superior hierárquico. O Chefe do Posto, por sua vez, também chutou a bola para a frente, afirmando que este assunto ‘‘está lá em cima’’ e que não poderia carimbar qualquer papel ou credencial da Justiça Ambiental, pois tinha recebido ordens superiores para não o fazer. Tudo indica que esta instância superior é o Administrador do Distrito de Marara, que se manifestou indisponível para receber a JA, e que por sua vez também estará, muito provavelmente, a receber ‘‘ordens superiores’’.
É sempre bom relembrar que nenhuma organização ou associação legalmente registada precisa de autorização do governo para trabalhar em qualquer ponto do país. No entanto, por uma questão de protocolo e respeito, as equipas da Justiça Ambiental a trabalhar nas zonas rurais costumam apresentar-se às autoridades locais, sempre que possível.
Até 2022, estas visitas à Administração do Distrito de Marara não criavam qualquer turbulência. Desde que os ventos da barragem de Mphanda Nkuwa chegaram ao local, em meados de 2022 (entre 2019 e 2022, o assunto era debatido apenas em Maputo e a nível internacional), tudo mudou. Ameaças e intimidações às comunidades que terão que concordar em sair das suas terras para dar lugar ao megaprojecto, além da disseminação de informações falsas sobre a JA! começaram a acontecer recorrentemente, tanto em público, como dirigidas especificamente a membros da comunidade que sejam mais vocais ou críticos ao projecto.
Está bastante claro o que incomoda tanto às autoridades locais: é que o trabalho da JA! tem-se focado em capacitações em torno dos direitos sobre a terra, direitos humanos, liberdade de expressão e opinião, legislação sobre reassentamento, acesso à justiça, e estudos sobre os impactos climáticos, ambientais, sociais e económicos das mega-barragens. Naturalmente que, para convencer centenas de famílias a deixarem as suas terras à beira do rio, abandonarem as suas machambas férteis, e abdicarem dos seus vastos terrenos para pastagem do gado, é conveniente que estas famílias pensem que não têm poder de decisão e muito menos direitos por reivindicar. É conveniente que aceitem casas de reassentamento mal construídas, e que não exijam muito dinheiro de compensação, afinal o governo tem se gabado perante investidores internacionais que é muito fácil e lucrativo fazer negócios no nosso país. Neste sentido, o trabalho da JA é uma pedra no sapato do governo e dos investidores internacionais. O Administrador do Distrito de Marara chegou a dizer, num encontro com a JA, que não podemos ir lá falar sobre direitos, sobre leis, ou mencionar os impactos de outros megaprojectos. ‘‘Não devemos nos focar no passado e sim no presente. O projecto da barragem não deve ser crucificado pelos pecados dos anteriores projectos de carvão da Jindal, não podemos ser pessimistas e pensar que vão acontecer aqui em Marara’’, acrescentou na altura.
Infelizmente, todas as pistas indicam que a barragem de Mphanda Nkuwa está a seguir pelo mesmo caminho sinuoso que levou tantos outros megaprojectos a falhar no nosso país. O Gabinete de Implementação (GMNK) continua a ignorar as cartas da Justiça Ambiental a pedir os termos de referência dos estudos necessários e demais informações relevantes, fugindo desavergonhadamente do escrutínio público. A justificativa para uma barragem desta envergadura, com esta magnitude de impactos, sem que se tenha equacionado outras opções, continua fraquíssima. A crescente repressão e as tentativas de silenciar vozes críticas indicam que não há interesse em ouvir e lidar com as legítimas preocupações das comunidades locais, e que o projecto está disposto a atropelar a lei e os direitos humanos. A barragem de Mphanda Nkuwa reúne todos os ingredientes para um megaprojecto igual aos outros que temos visto em Moçambique: altamente lucrativo para as nossas elites nacionais e para as grandes empresas transnacionais, e uma desgraça para milhares de pessoas, justamente aquelas que mais precisam desse desenvolvimento que nunca chega. E nunca chegará, se continuarmos a fazer o bolo com os mesmos ingredientes.
É por estes e tantos outros motivos que a JA submeteu, em Dezembro último, uma petição com mais de 2.600 assinaturas à Assembleia da República para travar o controverso projecto de Mphanda Nkuwa, a respeito da qual ainda não temos resposta. É por estes motivos também que a JA seguirá firme e comprometida a trabalhar como sempre trabalhou, a denunciar e expôr os impactos de um modelo de desenvolvimento que não nos serve, e a trabalhar em conjunto com todos aqueles que têm o compromisso de construir um país democrático e para todos, no qual todos tenhamos voz, direitos e dignidade.
Para mais informações sobre a petição ou sobre os estudos realizados sobre os impactos do projecto de Mphanda Nkuwa, visite www.justica-ambiental.org ou entre em contacto pelo jamoz2010@gmail.com / +258 84 3106010.
A organização Moçambicana Justiça Ambiental (JA!) entregou na última quarta-feira (21 de Dezembro) uma petição com mais de duas mil e seiscentas assinaturas de cidadãs e cidadãos Moçambicanos para exigir que se trave imediatamente o avanço do controverso projecto da barragem de Mphanda Nkuwa, proposta para o Rio Zambeze.
Os termos em que foi concebido, e nos quais tem avançado, o projecto hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa não vai de acordo com os objectivos fundamentais do Estado Moçambicano consagrados no artigo 11o da Constituição da República, sobretudo no que respeita os direitos humanos e o desenvolvimento equilibrado. Além do mais, este projecto acarreta elevadíssimos riscos ambientais, ecossistémicos, climáticos, sísmicos, sociais e económicos, que ainda não foram devidamente avaliados e estudados pelo governo de Moçambique. Não obstante estes riscos, e os inúmeros pedidos de esclarecimento e de informação enviados pela Justiça Ambiental ao governo e ao Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa (GMNK), o projecto tem estado a avançar, nesta sua nova fase, desde 2018, de forma acelerada e sem o devido escrutínio público.
Além do mais, o projecto está ainda em violação dos artigos 21º, 22º e 24º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, que estabelecem o direito dos povos à livre disposição, proibição de privação do uso de recursos naturais; direito à escolha do modelo de desenvolvimento económico, social e cultural no respeito estrito de suas liberdades e identidade; e direito a um ambinte equilibrado e propício ao seu desenvolvimento.
Importa referir que, embora o projecto esteja a avançar nesta nova etapa há 4 (quatro) anos, ainda não foi realizada nenhuma consulta pública deste projecto, nem nenhuma consulta com as comunidades locais que serão directa e indirectamente afectadas pelo mesmo. Isto está em clara violação de várias directrizes e princípios assumidos pelo país a respeito da protecção e promoção do direito ao consentimento livre, prévio e informado (CLPI).
Os mais de 2.600 Moçambicanos e Moçambicanas exigem, com esta petição, que se promova um diálogo aberto, inclusivo e profundo e que o governo de Moçambique esclareça cabalmente os contornos, objectivos e racional por detrás deste projecto “prioritário”, incluindo:
• De onde vem o investimento e qual a contrapartida?
• Por que é que este projecto é uma prioridade para o País, tendo em conta os nossos níveis
de pobreza e desigualdade; que milhares de crianças não têm lugar na escola, e que ainda
não há serviços de saúde adequados para todos?
• A que se deve a insistência neste projecto, que já foi abandonado tantas vezes? Que outros
interesses existem por detrás de um projecto desta envergadura?
• Foram equacionadas outras alternativas energéticas? Se sim, quais?
• Quem será responsável por indemnizar as comunidades que vivem há 20 anos com o seu
futuro hipotecado, sem poder investir na sua comunidade e em infra-estruturas
necessárias, por medo de perderem os seus investimentos, uma vez que em 2000 foram
aconselhadas pelo governo a não construir nenhuma nova infraestrutura?
• Qual o real propósito da barragem e que hipotéticas mais-valias julgam que traria para o
País a curto e longo prazo, incluindo como planeiam rentabilizá-la?
Exigimos também a elaboração de estudos cientificamente válidos e imparciais que respondam a todas estas questões levantadas desde a aprovacao do estudo de impacto ambiental em 2011 como:
• A indefinição sobre o regime de fluxo em que a barragem irá operar (base-load ou mid-
merit);
• A indefinição sobre a área escolhida para reassentamento das comunidades directamente
afectadas;
• A pobre análise de sedimentos elaborada com dados insuficientes, que não permite uma
análise científica válida;
• A fraca análise sismológica, sem dados concretos e com resultados e conclusões que
contrariam outros estudos de especialistas de renome;
• A fraca análise aos potenciais impactos das mudanças climáticas e mudanças na demanda
de água a montante da barragem, que irá afectar a viabilidade económica do projecto;
• O facto de não terem sido consideradas e tampouco seguidas as directrizes da Comissão
Mundial de Barragens, particularmente no que se refere aos direitos e justiça sociais e
ambientais, entre outras;
• As alternativas energéticas viáveis para o país, comparando e analisando os benefícios e
impactos de cada uma;
• A forma como o projecto irá garantir que os benefícios gerados não serão apropriados por uma pequena elite política e económica nacional, e pelas grandes companhias ransnacionais.
Exigimos ainda que se promova um diálogo aberto, inclusivo e profundo em torno de soluções energéticas limpas, justas e acessíveis a todos os Moçambicanos e Moçambicanas, de forma a enveredarmos por um desenvolvimento sustentável que garanta a protecção dos importantes ecossistemas que garantem a vida no planeta.
A Justiça Ambiental apela ainda que este assunto seja tratado em carácter de urgência, tendo em conta o crescente e preocupante cenário de intimidação e ameaças que temos observado no contexto do nosso trabalho no Distrito de Marara, incluindo acusações de terrorismo, exigência de “autorização para trabalhar no local”, e indicação de que as comunidades locais não devem receber capacitações legais sobre os seus direitos ou informações sobre os impactos das barragens. Vários membros das comunidades que terão de ser reassentadas para dar lugar a este megaprojecto também têm reportado ameaças, intimidações e ‘avisos’ para que não se pronunciem contra o projecto.
Além das assinaturas recolhidas no Distrito de Marara, na Cidade de Maputo e um pouco por todo o país, mais de 70 organizações não-governamentais nacionais, regionais e internacionais assinaram também a petição em formato online, em solidariedade.
É hora de dizermos BASTA a um modelo de desenvolvimento que enriquece as nossas elites e as grandes empresas transnacionais, às custas da maioria da população e da natureza. Vamos juntos exigir projectos de energia limpa, descentralizada e que beneficie o povo Moçambicano!
O projecto da barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa, proposto há mais de duas décadas, voltou a emergir como uma solução para aumentar a exportação de energia para a África do Sul, de forma a aumentar a capacidade de Moçambique de receber moeda estrangeira. O projecto está, no momento, a ser promovido por um valor de 4,5 bilhões de USD, sendo 2,4 bilhões para a barragem e central elétrica, e 2,1 bilhões para as linhas de transmissão. Este estudo debate os méritos do projecto da barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa e os seus benefícios sócio-económicos e de desenvolvimento, face aos impactos das mudanças climáticas, num momento em que o mundo enfrenta desafios energéticos que requerem que sejam pensadas formas e fontes de energia mais sustentáveis para o futuro.
A barragem de Mphanda Nkuwa seria a terceira maior barragem a ser construída no tronco principal do Rio Zambeze, e uma de muitas outras barragens na bacia, se considerarmos os tributários do Zambeze. A sua localização na parte mais baixa da bacia do Rio Zambeze, em Moçambique, dá-lhe características únicas e torna-a vulnerável. Faz também com que seja determinante para os ecossistemas a jusante. Como actualmente concebida, a central hidroeléctrica tem capacidade de geração de 1.500 MW, com 60% (900 MW) dessa capacidade para exportação para a África do Sul, e um remanescente de 600 MW (40%) reservado para consumo doméstico, em Moçambique. Actualmente, mais de 60% dos Moçambicanos, cuja maioria vive em assentamentos muito dispersos em zonas rurais remotas, não têm acesso à electricidade moderna e encontram-se fora do alcance da rede eléctrica nacional existente. Muito mais que 600 MW seriam necessários para permitir que Moçambique atingisse um acesso à electricidade de 50%, até 2030.
O plano do projecto é que comece a gerar energia 2030, com cerca de 2 anos para planificação e desenho, enquanto espera-se que a construção leve 6 anos. Os benefícios anunciados são duvidosos face às mudanças climáticas e o facto de que a barragem será prejudicial para ecossistemas a jusante, bem como para a saúde e segurança humana, levando à perda de meios de subsistência das comunidades a jusante. Tal como na maioria dos grandes projectos de infraestruturas semelhantes, a barragem e o projecto hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa estão a atrair o apoio de instituições financeiras internacionais, como o Banco Africano de Desenvolvimento, que vêem-no puramente do ponto de vista macroeconómico, como uma forma de estimular o crescimento económico do país através do aumento das receitas em moeda estrangeira. Os proponentes do projecto, no entanto, ignoram os diversos riscos que estão associados ao projecto e, portanto, não discutem como esses riscos serão abordados.
Entre os riscos, a questão das mudanças climáticas é um grande motivo de preocupação. Após pesquisa detalhada, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) concluiu que, de entre as 11 principais bacias hidrográficas em África, a bacia do Zambeze é a mais vulnerável aos impactos das mudanças climáticas. Prevê-se que a bacia do Zambeze enfrente eventos climáticos extremos severos, em forma de longos períodos de seca, cheias severas no futuro, mais fortes que em qualquer das outras bacias hidrográficas do continente. Além disso, o baixo Zambeze é directamente afectado pelos desenvolvimentos a montante, fazendo com que os impactos negativos dos desenvolvimentos a montante sejam agravados em Mphanda Nkuwa e a jusante. Na última década, Moçambique foi considerado o país da SADC mais afectado pelas mudanças climáticas, de entre vários países que também têm experienciado eventos climáticos extremos, como ciclones e cheias. O funcionamento das barragens a montante em Kariba, Kafue e Cahora Bassa, com as suas grandes capacidades de armazenamento, serão a chave para o desempenho de Mphanda Nkuwa.
Por estar localizada a jusante de grandes barragens, o maior risco para Mphanda Nkuwa será durante os períodos de seca, porque as barragens a montante poderão não libertar água suficiente, se os países a montante decidirem dar prioridade às suas necessidades. O alto risco de secas na bacia do Zambeze, exacerbado pelas mudanças climáticas, terá um impacto negativo directo na viabilidade financeira e económica do projecto, uma vez que as projecções de geração de receitas e de ganhos em moeda estrangeira serão severamente reduzidas por secas prolongadas. A retenção de água nas barragens a montante, durante as secas, colocará também em perigo os caudais ecológicos a jusante de Mphanda Nkuwa, com outros efeitos prejudiciais para a pesca do camarão na região do delta.
Da mesma maneira, em caso de grandes inundações, as barragens a montante irão libertar mais água, criando risco de ruptura da barragem de Mphanda Nkuwa bem como o agravamento da segurança humana a jusante, no vale do Zambeze. Os riscos de segurança de barragens devido a cheias e inundações podem exigir especifidades mais dispendiosas, e custos de construção mais elevados. Ao longo das últimas duas décadas, têm ocorrido inúmeras catástrofes de cheias no vale do baixo Zambeze, levando a grandes riscos de perda de vidas humanas e ameaças à subsistência. Por conseguinte, Mphanda Nkuwa é altamente susceptível aos impactos das mudanças climáticas, tanto a respeito de secas como de inundações.
A energia hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa é promovida como energia limpa. No entanto, estudos recentes pelo mundo indicam que as barragens emitem quantidades consideráveis de metano, um gás de efeito de estufa mais potente que o dióxido de carbono. Num momento em que o mundo enfrenta enormes riscos de mudanças climáticas e aquecimento global, a decisão de avançar com Mphanda Nkuwa é lamentável e vai contra a sabedoria convencional.
Mphanda Nkuwa está assente na premissa de venda de energia a países da África Austral, sendo a empresa Sul-africana de energia eléctrica Eskom a principal compradora. É importante notar que, nos últimos 15 anos, a Eskom tem experienciado sérios e persistentes desafios estruturais e de governação, resultando numa divida crónica de 500 mil milhões de Rands, equivalentes a 30 bilhões de USD no momento de elaboração deste artigo. Assim, a companhia Sul-Africana enfrenta sérios problemas de viabilidade financeira, o que a torna um cliente de risco para basear um enorme investimento de 4,5 bilhões de USD. Devido ao deteriorar da sua situação financeira, a Eskom tem aumentado progressivamente as tarifas domésticas de electricidade ao longo da última década, o que faz com que muitos dos seus clientes, principalmente os mais ricos, tenham vindo a sair da rede, comprometendo assim a sua cobrança de receitas e piorando ainda mais a viabilidade financeira da companhia de electricidade. Isto é, claramente, um sinal vermelho a respeito do qual os proponentes do projecto da barragem de Mphanda Nkuwa precisam de se debruçar seriamente, nas suas análises de mercado. A delicadeza da viabilidade de Mphanda Nkuwa torna-se ainda mais acentuada quando vista no contexto do actual acordo de aquisição da energia da Hidroeléctrica de Cahora Bassa pela África do Sul, cujo preço da electricidade é altamente desfavorável para Moçambique.
Outras preocupações a respeito de Mphanda Nkuwa incluem o alegado aumento no acesso à energia para os Moçambicanos. Em teoria, afirma-se que 40% da energia de Mphanda Nkuwa vai beneficiar os Moçambicanos, mas na realidade o acesso à energia, para os Moçambicanos, será insignificante. O padrão de povoamento rural disperso e extensivo da maioria dos Moçambicanos que actualmente não tem acesso à energia limpa, e a ausência de uma extensa rede em grelha, torna numa falácia a alegação de que Mphanda Nkuwa irá aumentar substancialmente o acesso à electricidade. Moçambique carece de uma extensa rede de transmissão e distribuição, e portanto mesmo com a proposta linha de transmissão, a maior parte da população nas áreas rurais permanecerá desconectada da electricidade. A electricidade da rede não será suficiente para aumentar o acesso e estimular o desenvolvimento no país. E, de qualquer forma, o custo da electricidade sem subsídio será muito alto e inacessível para a maioria dos cidadãos.
O desenvolvimento da barragem de Mphanda Nkuwa presta muito pouca atenção à saúde do ecossistema da bacia e ao bem-estar social das comunidades a jusante. O funcionamento da barragem irá alterar significativamente o regime de escoamento da área a jusante, criando flutuações diárias que irão afectar a biota aquática, bem como a subsistência de mais de 200.000 habitantes que vivem no delta e que, em grande medida, dependem dos recursos naturais da bacia. Os meios de subsistência das comunidades que residem na área que será inundada não devem ser postos de lado. Baseado no que já tem acontecido e sido revelado em outros megaprojectos de infraestruturas na província de Tete e pelo país, estas pessoas serão provavelmente sujeitas a deslocações forçadas, meios de subsistência comprometidos, compensações inadequadas, violência e repressão do Estado, e outras violações de Direitos Humanos. As pessoas que vivem na bacia do Zambeze são as que mais têm a perder com este projecto.
Em conclusão, é improvável que este investimento aumente significativamente a industrialização ou promova o crescimento económico de Moçambique. Prevê-se que o número de empregos permanentes directos criados por este projecto hidroeléctrico seja muito reduzido. No que diz respeito às emissões de gases de efeito de estufa, não haverá ganhos, e infelizmente serão geradas mais emissões com a barragem. As receitas provenientes das vendas de electricidade podem não cobrir os custos de produção, com o risco de não cumprir com o serviço da dívida da barragem. Diversos estudos feitos para a África do Sul e Moçambique demonstram que energia limpa pode ser gerada através do vento e do sol, de forma a alcançar a população rural dispersa num ritmo muito mais rápido, criando assim postos de trabalho e muito menos impactos sociais e ambientais negativos, comparativamente a outras formas de produção de energia. Neste contexto, Moçambique tem um enorme potencial por explorar em termos de energias renováveis, de forma a mudar a sua trajectória rumo ao desenvolvimento, distribuição e geração de energia. Se fôr construída, a barragem de Mphanda Nkuwa será um grilhão climático à volta do pescoço de Moçambique, por muitas gerações.
*Estudo lançado em Maputo no dia 21 de Julho de 2022. Para obter a versão completa do estudo dirija-se ao escritório da Justiça Ambiental na Rua Willy Waddington, 102, Bairro da Coop, Maputo, ou pelo link: www.drive.google.com/drive/folders/1FXkv0z4PzdOT6yhueYhPqXVCo_9di4Qz
Para mais informações: 84 3106010 / jamoz2010@gmail.com
Agradecemos o seu email/carta, pois dá-nos uma oportunidade para dialogar sobre as questões que denunciamos no comunicado e vários outros assuntos levantados por si. Agradecemos também que o tenha tornado público, porque permite que o debate se estenda a mais interessados.
Antes de mais importa salientar que o plantio de monoculturas em larga escala tem inúmeros e graves impactos negativos no ambiente, incluindo o consumo de elevadas quantidades de água, portanto se o Governo continuar a promover o estabelecimento de plantações de monocultura em larga escala sob o falso pretexto de reflorestamento, com certeza acesso a água para “lavar o rabo” será a menor das nossas preocupações pois não teremos água para produzir alimentos, nem tão pouco para beber. Os impactos negativos das plantações de monocultura são sobejamente conhecidos, esta alteração agressiva da vegetação nativa no actual contexto de mudanças climáticas vem exacerbar os já previstos impactos das mesmas. Aliás, podemos ver inúmeros exemplos a nível global desta transformação da paisagem natural, incluindo em Portugal com as plantações da própria Navigator company da qual a Portucel faz parte, basta lembrar os tristes episódios anuais de queimadas descontroladas e o facto de não serem lá permitidos alargar as suas áreas, razão pela qual se estabeleceram aqui.
Acreditamos que estamos a viver tempos de múltiplas crises, e muitos dos recursos que hoje temos, talvez amanhã não existam mais ou estejam completamente mercantilizados e inacessíveis para a maioria. Infelizmente, muitas das chamadas soluções para a crise climática, ou da biodiversidade, ou da alimentação, entre outras, são soluções falsas que além de não contribuírem para resolver o problema, muitas vezes contribuem para agravá-los ainda mais ou para distrair a opinião pública de forma a parecer que se está “a fazer algo a respeito” – como por exemplo o plantio de monoculturas de árvores para mitigar a crise climática, também promovido pelo nosso governo na sua estratégia de reflorestamento, apesar da contestação de organizações da sociedade civil. Afinal, o que pode haver de errado com plantar árvores?
Quanto ao assunto específico da avaliacao do impacto ambiental (AIA), concordamos plenamente consigo. Aliás, se acompanhasse minimamente o trabalho da JA, saberia que sempre criticamos a leviandade com que são levados a cabo os processo de AIA e todos os processos corrompidos relacionados com os mega-projectos que abundam no nosso país. Desde 2011 que nos recusamos a tomar parte nestes processos de AIA, e sempre que convidados, respondemos a informar que não aceitamos fazer parte de processos de “faz de conta” que apenas procuram a nossa presença para validar as suas conclusões já previamente definidas. Já escrevemos muito sobre este assunto, e produzimos um estudo intitulado “Só para inglês ver” que foi apresentado ao público em 2018, e brevemente será lançada uma actualização do mesmo. Apesar das inúmeras denúncias sobre a forma como estes processos estavam e continuam a ser levados a cabo, nada mudou, o que culminou com a nossa decisão de afastamento dos mesmos, particularmente após dois processos bastante problemáticos. O primeiro foi a AIA para o projecto de exploração do gás na bacia do Rovuma. Desde o início apercebemo-nos do potencial elevado nível de impactos, ambientais e sociais e interferência que esse projecto poderia provocar, e todas as nossas preocupações foram completamente ignoradas. Na altura fizemos vários comentários, inclusive uma breve análise das falhas do processo enquanto a AIA decorria, na esperança que este fosse melhor conduzido. Quem sabe, se se tivesse feito um trabalho honesto e íntegro, e cientificamente válido, com exaustivas análises sociais e ambientais, teriam sido identificados os mesmos riscos e ameaças que nós identificámos. Quem sabe, se isto tivesse acontecido, não estaríamos hoje a viver mais uma maldição dos recursos e a passar por toda a destruição e desgraça que hoje se vive em Cabo Delgado. O último processo de AIA em que participámos foi o de Mphanda Nkuwa, aprovado em 2011 sem que tivessem sido elaborados estudos ambientais cientificamente válidos e imparciais. Após 2 anos de estudos, as nossas questões e preocupações permaneceram sem resposta, e a Impacto decidiu ignorar as recomendações da JA e de muitos outros académicos e representantes da sociedade civil, apresentando um EIA com a conclusão ridícula de que “… o projecto da HMK éambientalmente viável, sendo os benefícios que lhe estão associados, maiores que os prejuízos causados, se devidamente minimizados.” Apesar dos nossos inúmeros apelos, comentários e análises submetidas a vários níveis, incluindo o Ministério da Terra e Ambiente na altura MICOA, nada mudou o rumo do projecto.
Independentemente das inúmeras e graves irregularidades nos processos de AIA e de atribuição de terra para grandes projectos de investimento, incluindo as que se referiu no seu texto, a Portucel Moçambique não é de forma alguma isenta de responsabilidade, pelo contrário fez uso destas para assegurar a aprovação do seu projecto, mesmo perante grande contestação e resistência de várias organizações da sociedade civil. Pois foi exactamente a Impacto que a empresa decidiu contratar para assegurar que o seu projecto fosse aprovado. No entanto, o processo de AIA é apenas um dos aspectos a referir, pois o próprio processo de atribuição de terra à Portucel Moçambique é bastante problemático, razão pela qual persistem até hoje conflitos com as comunidades locais afectadas pelas suas plantações, e bastante resistência com outras tantas em zonas onde a Portucel não conseguiu entrar até hoje. Não temos qualquer elemento que fundamente a sua alegação de que a Portucel decidiu parar com o plantio, pelo contrário, temos vários elementos que nos sugerem que o plantio abrandou devido à resistência encontrada nas comunidades, pois já tiveram oportunidade de avaliar os impactos da Portucel em comunidades vizinhas e já verificaram que pouco ou nada do que foi prometido durante as consultas comunitárias foi cumprido. A JA! acompanha este processo desde o início e tem denunciado publicamente a actuação da Portucel Moçambique a vários níveis. O seu texto reflecte desconhecimento sobre o nosso trabalho, portanto convidamo-lo a analisar com atenção os inúmeros artigos, comunicados de imprensa e estudo sobre a questão. As terras atribuídas à Portucel estavam já em larga medida ocupadas por comunidades locais, utilizadas essencialmente para a produção de alimentos, e a autorização de DUATs provisórios foi concedida à Portucel antes mesmo de concluído o processo de AIA. As consultas comunitárias serviram para apresentar o novo dono e publicitar as “inúmeras promessas” de vida melhor permitindo assim uma entrada pacífica. No entanto, e estranhamente, a Portucel Moçambique ainda assim “inventou” e fez uso de um outro mecanismo de controle de terra, elaborou acordos de cedência de terra com os membros destas comunidades, alheios à Lei de Terra, em que os membros das comunidades concordavam em ceder parte das suas terras férteis onde produziam comida em troca de prioridade de emprego, prioridade nas acções de responsabilidade social da empresa e melhoria de condições de vida. Estes actos também já foram sobejamente denunciados.
Para além do acima referido, a Portucel Moçambique recusou-se sistematicamente a fornecer informação de carácter e interesse público, tal como o processo de aquisição dos títulos de DUAT. A JA viu- se obrigada a intentar um processo no Tribunal Administrativo contra o Ministério da Terra e Ambiente, o qual julgou a favor da JA, obrigando o MTA a disponibilizar todos os processos de DUAT a favor da Portucel Mocambique à JA. Apesar dos pedidos, continuamos sem acesso aos relatórios anuais de desempenho ambiental e social, informação sobre herbicidas e agrotóxicos utilizados nas suas plantações.
O posicionamento da WWF sobre esta matéria nao é de forma alguma representativo da opinião pública, nem das organizações da sociedade civil Moçambicana, muito menos da JA!. Estamos cientes da enorme influência da mesma em inúmeros processos, tendo inclusive inviabilizado reivindicações de organizações da sociedade civil nacional junto ao governo, tanto no caso particular da Portucel como em outros. A JA também já se pronunciou publicamente sobre este assunto, e se pesquisar na internet, verá que muitas organizações sociais e ambientais de todo o mundo denunciam activamente a forma de actuação da WWF.
Estes e muitos outros mega-projectos aprovados “legalmente” no nosso país comprovam claramente a captura do nosso Estado por uma elite política e económica nacional, sim, mas principalmente pela elite do capital global, que necessita da primeira para se instalar. Quando falamos de neocolonialismo, não falamos apenas ou nem sequer maioritariamente do Estado português, mas principalmente das companhias portuguesas, e também francesas, chinesas, brasileiras, e tantas outras, muito bem apadrinhadas pelos respectivos Estados. Os nossos recursos – naturais, humanos – estão a ser explorados inescrupulosamente e nem sequer é para o bem do país,é um saque total. Usurpação de terra de camponeses e pescadores, perda de acesso ao mar e rio, poluição, repressão, violência, e um constante desprezo em relação às necessidades da maioria da população moçambicana, não nos vão levar a lugar nenhum. Não nos estão a levar a lugar nenhum.
Agradecemos e louvamos a sua frontalidade ao abordar-nos sobre estes assuntos. Precisamos de fortalecer este debate e trabalhar colectivamente para exigir que este tipo de projectos avance somente quando e se inequivocamente cumprirem com as mais estritas normas ambientais e de direitos humanos.
J unte-se a nós , a exigir que o projecto de Mphanda Nkuwa seja travado até que se avance com um debate público sobre o mesmo, e várias outras questões. Junte-se a nós a exigir que a Total desembolse todos os pagamentos, indemnizações e compensações às empresas nacionais contratadas e às comunidades afectadas pelo projecto de gás, e que em seguida cancele o projecto e se retire de Cabo Delgado. Acreditamos que quantas mais vozes se levantarem perante as injustiças, mais perto estaremos de encontrar um caminho em frente pautado pelo respeito à dignidade humana e ao meio ambiente, e mais chances teremos de chegar a soluções reais para as nossas crises.
Petição para travar o projecto da mega-barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa
Junte-se a JA e às mais de 1300 pessoas que já assinaram esta petição, e assine aqui (https://bit.ly/2KaA5XB)
E leia as nossas preocupações e demandas:
Contexto
O Rio Zambeze é o 4o maior rio de África, e estima-se que vivam nas suas margens cerca de 32 milhões de pessoas, das quais 80% dependem directamente do rio para a sua subsistência, através da agricultura e pesca e outras actividades relacionadas1,2.
O Rio Zambeze tem já duas mega-barragens, Cahora Bassa em Moçambique e Kariba no Zimbabwé, que vêm causando danos significativos aos ecossistemas e à vida das comunidades locais que vivem a jusante. Para piorar este cenário, o governo de Moçambique recentemente voltou a anunciar como prioridade a construção de mais uma mega-barragem hidroeléctrica no Rio Zambeze, a barragem de Mphanda Nkuwa.
O local escolhido para a proposta barragem de Mphanda Nkuwa está apenas a 70km a jusante (portanto, rio abaixo) da barragem de Cahora Bassa. Se for construída, Mphanda Nkuwa será provavelmente o último “prego no caixão” do Rio Zambeze, e resultará na destruição do ecossistema do rio e respectivo delta, afectando negativamente a vida de milhares de famílias que vivem no local e a jusante da barragem. Para além dos elevados impactos sociais e ambientais, estima-se que a construção da barragem custe cerca de 4 mil milhões3 de dólares norte-americanos. Prevê-se também que a barragem terá uma capacidade instalada de cerca de 1300MW, no entanto, a Eskom, que será o principal comprador desta energia, é uma das companhias que compra energia da barragem de Cahora Bassa a um dos preços mais baixos do mundo. Por outro lado, em Moçambique pagamos uma das taxas mais altas de energia de África, mesmo produzindo mais energia do que aquilo que é o nosso consumo interno, e mesmo sendo a barragem de Cahora Bassa “nossa”.
Os termos em que foi concebido o projecto hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa não vai de acordo com os objectivos fundamentais do Estado Moçambicano consagrados no artigo 11o da Constituição da República, sobretudo no que respeita os direitos humanos e o desenvolvimento equilibrado.
As matérias relativas ao acesso à informação e efectiva participação pública no processo de tomada de decisão sobre o projecto de Mphanda Nkuwa não têm sido respeitadas, de tal forma que informação relevante e detalhada para compreensão e participação no projecto não estão no domínio público.
O artigo 22º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos consagra o direito ao desenvolvimento das comunidades locais e uso dos recursos naturais em benefício do povo, o que pode estar comprometido com a materialização do projecto de Mphanda Nkuwa.
Por sua vez, a Convenção Africana para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais defende a obrigatoriedade de programas e/ou projectos de desenvolvimento ecologicamente racionais, economicamente capazes e socialmente aceitáveis, para além da questão da utilização sustentável de recursos naturais. Isto não se vislumbra no caso do projecto de Mphanda Nkuwa, conforme abaixo explicado.
Como chegámos até aqui?
Na década dos 90 foi criada a UTIP (Unidade de Implementação de Projectos Hidroeléctricos) com o mandato de implementar a proposta de projecto de Mphanda Nkuwa. Foram gastos milhares de dólares em estudos de viabilidade (quantos, ao certo, nunca foram dados a conhecer ao público), avaliação de impacto ambiental, e outros, na sua maioria de fraca qualidade científica.
Na década de 2000 foi estabelecido o consórcio de Mphanda Nkwua, em que a EDM detinha 20%, o Grupo Insitec detinha 40% e a Camargo Corrêa os restantes 40%. Mais estudos foram elaborados nesta altura, mais milhares de doláres foram gastos. O Estudo de Impacto Ambiental foi aprovado em 2011, com enormes e graves lacunas e sem resposta a inúmeras questões e preocupações da sociedade civil. Este consórcio também foi dissolvido.
Em fins de 2018, foi novamente retirado da gaveta empoeirada o projecto de Mphanda Nkwua, e relançado como prioridade do governo. Em Fevereiro de 2019 foi criado o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mpanda Nkuwa (GMNK), e em Setembro foi seleccionado o consórcio que irá assessorar o governo nesta nova fase do projecto. Uma vez mais, serão gastos milhares de dólares de verba pública em consultorias e estudos que, se seguirem os exemplos anteriores, permanecerão no segredo dos deuses.
Desenvolvimento para quem?
Não há dúvida que a energia é um bem fundamental e indispensável para o desenvolvimento de uma nação. No entanto, para garantir um desenvolvimento sustentável, o governo deve estudar e analisar as diferentes fontes de energias disponíveis e optar pelas limpas e renováveis, garantindo os menores impactos sociais, ambientais e económicos.
Por inúmeras razões, algumas das quais listadas abaixo, torna-se difícil perceber que tipo de desenvolvimento e benefícios se podem esperar de um projecto como o da barragem de Mphanda Nkuwa. Segundo projecções do EIA aprovado em 2011, cerca de 80% da energia produzida será para exportação, e os restantes 20% serão alegadamente para uso interno, para alimentar as indústrias de energia intensiva que se irão instalar naquela região. Apesar dos elevados custos financeiros, e dos nefastos impactos sociais e ambientais que resultarão da construção desta barragem, a grande maioria dos moçambicanos irá permanecer sem acesso à energia elétrica.
Moçambique precisa de investir em sistemas descentralizados de energias limpas – solar, eólica, entre outras. A descentralização e a diversidade das fontes de energia são essenciais para garantir uma revolução energética justa, inclusiva, e acessível, que garanta o acesso à energia para todos os cidadãos do país.
Os graves problemas dos últimos EIAs
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para a barragem de Mphanda Nkuwa foi aprovado em 2011, mas as questões e preocupações levantadas por diversas organizações e indivíduos continuam sem resposta4. Apresentamos abaixo algumas destas preocupações, também apresentadas em inúmeras ocasiões nos últimos anos, inclusive durante o Estudo de Pré-Viabilidade Ambiental e Definição de Âmbito (EPDA) e no processo de elaboração dos Termos de Referência do EIA anterior.
1. Impactos cumulativos.
Verificou-se um fraco enquadramento deste projecto em termos dos seus impactos cumulativos, não só tendo em conta os projectos já existentes na bacia do Zambeze, mas também os projectados e previstos, que de algum modo competem pelos mesmos recursos ou interferem uns com os outros na sua utilização. Para um projecto desta envergadura, o mais apropriado seria enquadrar os estudos na dinâmica da bacia hidrográfica, considerando aspectos sociais, ambientais e económicos, contrariamente ao que tem sido a norma, ou seja, a análise separada e individual de projectos sem qualquer consideração aos impactos cumulativos na bacia. É necessário ter em conta que os efeitos e impactos sócio-ambientais são sinérgicos, não se limitando ao local onde é construída a barragem. Neste caso, os impactos das várias barragens já existentes neste Rio, como a de Kariba, Kafue, Itezhi-Tezhi, Cahora Bassa e outras, devem ser contabilizados.
2. Análise de sismicidade.
Mphanda Nkwua está localizado na zona sísmica de Chitima-Tchareca. O EIA determina que o sismo de maior magnitude na zona da proposta barragem é de apenas 6,4 na escala de Richter, apoiando-se excessivamente em um dos estudos que analisa as falhas da zona. No entanto, há vários outros estudos que identificam falhas maiores que não foram devidamente considerados e que indicam a ocorrência de sismos de magnitude mais de 10 vezes superior ao que é mencionado no EIA. Há vários casos, como no Japão e até em Moçambique em 2006, em que a magnitude dos sismos que ocorreram foram muito superiores ao que havia sido previsto usando métodos semelhantes ao que foi utilizado no presente EIA.
A equipe de trabalho não consultou devidamente os especialistas de sismologia que se têm dedicado ao estudo da área em análise. Alguns destes especialistas levantaram preocupações relativamente às conclusões do EIA, e um especialista de renome e comprovada experiência na área (Chris J. H. Hartnady) chegou até a enviar uma análise dos riscos sísmicos do projecto, onde apresenta preocupações, recomendações e conclusões, que não foram consideradas pela equipe de trabalho5.
3. Mudanças climáticas.
O EIA considera que não haverá impactos significativos das mudanças climática sobre o rio Zambeze. Esta observação vai contra o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças climáticas (IPCC), que afirma que “a bacia do Zambeze, irá potencialmente enfrentar os piores efeitos das mudanças climáticas. Esta sofrerá, provavelmente, uma redução substancial na pluviosidade de cerca de 10-15%”.
Suportando tais resultados, o artigo cientítico de 2010 por Beck e Bernauer (usando os dados SRES), sobre os cenários da água para a bacia do rio Zambeze de 2000 – 2050, prevê a redução de fluxo no Delta do Zambeze (sem a construção de Mphanda Nkuwa) entre 5% e 43%, dependendo do cenário utilizado.
Em 2012, o cientista Richard Beilfuss, no seu estudo sobre mudanças climáticas e as barragens na Africa Austral, adverte que “As barragens que estão actualmente a ser propostas e construídas podem resultar em barragens economicamente não viáveis, com um desempenho abaixo do esperado face às secas mais extremas, e que podem também constituir um perigo, pois não foram projectadas para lidar com cheias cada vez mais destrutivas”.
Não podemos ignorar as advertências de cientistas reconhecidos a nível internacional e decidir, de forma leviana, construir mais uma barragem neste tão importante ecossistema.
4. Sedimentos.
Com uma área total de bacia de 1,570,000 km2, o Zambeze junta água, nutrientes e sedimentos de 7 países. Actualmente, quase 90% do rio Zambeze é regulado por grandes barragens. Isto tem impactos devastadores ao longo do baixo Zambeze. A quantidade de sedimentos determina a forma e o padrão do leito do rio, e os nutrientes dos sedimentos influenciam a produtividade das planícies inundáveis e do solo e a saúde da vegetação.
Acredita-se que os poucos afluentes não-regulados que restam são vitais para a manutenção ecológica do sistema. A proposta barragem de Mphanda Nkuwa irá bloquear o Rio Luia, que acredita-se ser uma grande fonte de sedimentos para o Zambeze, em particular durante a época de cheias.
Isto tem sido uma preocupação da sociedade civil e de vários peritos, que vêm solicitando que a contribuição do Luia em termos de sedimento e nutrientes seja devidamente analisada, que iria permitir um melhor entendimento dos impactos da barragem de Mphanda Nkuwa no sistema como um todo.
Infelizmente, o EIA não analisou a importância da captação do Luia na dinâmica dos sedimentos do baixo Zambeze de maneira cientificamente válida. O tamanho da amostra foi o mínimo permitido para análise estatística (apenas 3 amostras), e a própria equipa do EIA admitiu que esta análise era estatisticamente fraca. Os tipos de métodos utilizados para a amostragem não cobriam a abrangência necessária para permitir resultados confiáveis e as amostras não abrangeram a variedade de fluxos ao longo do sistema fluvial. Em sistemas fluviais altamente variáveis como o Zambeze, até 80% dos sedimentos podem ser transportados durante a época de cheias, portanto é crucial recolher amostras neste período, o que não foi feito no referido EIA.
5. Comunidades locais.
Não houve ainda uma decisão a respeito do regime de fluxo em que a barragem irá operar (base-load ou mid-merit), e o estudo não apresenta um plano de reassentamento das comunidades locais, tornando-se impossível avaliar ou prever quais os reais riscos e impactos para os que serão mais directamente afectados.
Quanto a possíveis locais para reassentamento das comunidades locais, são mencionadas tanto em áreas inexploradas quanto nas áreas do distrito de Marara (na época do EIA, distrito de Changara). Não obstante ser inaceitável planear um grande projecto de construção como este sem os devidos planos de reassentamento, muitas das áreas propostas para reassentamento já têm outras comunidades lá a viver.
O estudo dá ainda pouquíssima atenção aos impactos para as comunidades que vivem a jusante. Não há explicação de como poderão ser afectadas, excepto algumas declarações vagas. Outrossim, não há menção de compensações para essas pessoas, pelas perdas que poderão vir a sofrer. Isto está em contradição com as recomendações da Comissão Mundial de Barragens (CMB). Outros problemas referentes a este assunto dizem respeito ao instrumento retórico utilizado no estudo, que considera as comunidades a jusante apenas como densidade populacional. Não há menção do número absoluto de pessoas que vivem nesta bacia hidrográfica, e portanto o leitor fica sem uma noção real do nível de interferência que a construção da barragem poderá ter nos meios de subsistência rurais.
Está previsto ainda que o projecto crie alguns postos de trabalho permanentes, mas irá desalojar centenas de pessoas, e afectar a jusante outros milhares de pessoas. Contudo, o EIA apenas mencionou os empregos gerados durante o período de pico da construção, criando uma falsa noção de que geraria uma grande quantidade de empregos – no entanto, a maioria destes empregos são temporários. Os residentes na bacia do rio Zambeze irão arcar com os graves impactos do projecto, mas os benefícios serão para as grandes companhias transnacionais e para as elites políticas e económicas nacionais.
6. Conclusões do EIA.
As conclusões são apresentadas no EIA como sendo válidas e de elevada confiança científica, o relatório não apresenta as suas limitações, não menciona a fraqueza dos dados que permitiram a análise e nível de confiança dos resultados obtidos. Apenas quando confrontados com inúmeras das questões apresentadas acima é que os especialistas admitiram a limitação dos seus dados, com justificações de limitação de tempo e fundos disponibilizados à amostragem (como no caso das secções dos sedimentos e sismicidade). Contudo, estes assuntos têm-se tornado centrais em relação às preocupações da sociedade civil e peritos há muitos anos, tempo mais que suficiente para recolher a informação necessária.
As preocupações apresentadas e não respondidas até hoje levam-nos a questionar a viabilidade e confiança dos estudos conduzidos até agora, e as reais motivações por detrás deste projecto. Reiteramos que os riscos sociais, ambientais, económicos e climáticos de Mphanda Nkuwa ainda não foram completamente estudados e a construção desta barragem poderá ter consequências devastadoras para o rio Zambeze, para as pessoas que mais dependem deste ecossistema, e para todos os moçambicanos e moçambicanas.
Por que dizemos que NÃO à proposta barragem de Mphanda Nkuwa?
As preocupações apresentadas ao longo dos últimos anos e não respondidas até agora, bem como a falta de transparência e abertura que têm caracterizado os diferentes momentos deste projecto até hoje, levam inevitavelmente a questionamentos a respeito da confiança dos estudos conduzidos até agora; das reais motivações por detrás deste projecto; e da própria viabilidade do mesmo.
Os riscos sociais, ambientais, económicos e climáticos de Mphanda Nkuwa ainda não foram profundamente analisados, e os estudos feitos até agora indicam que a construção desta barragem poderá ter consequências devastadoras para o rio Zambeze; para as pessoas que mais dependem deste ecossistema; e para o país como um todo.
Além das questões apresentadas até aqui, uma mega-barragem como esta representa um enorme risco financeiro no contexto actual – tendo em conta a volatilidade dos mercados globais de energia e commodities; a crise climática que demandará dos Estados uma transição energética; e os desafios de governação, corrupção e transparência que o país tem vindo a enfrentar.
Assim, os indivíduos e organizações abaixo assinados, exigem que o governo de Moçambique esclareça cabalmente os contornos, objectivos e racional por detrás deste projecto “prioritário”, incluindo:
De onde vem o investimento e qual a contrapartida?
Por que é que este projecto é uma prioridade para o País, tendo em conta os nossos níveis de pobreza e desigualdade; que milhares de crianças não têm lugar na escola, e que ainda não há serviços de saúde adequados para todos?
A que se deve a insistência neste projecto, que já foi abandonado tantas vezes? Que outros interesses existem por detrás de um projecto desta envergadura?
Foram equacionadas outras alternativas energéticas? Se sim, quais?
Quem será responsável por indemnizar as comunidades que vivem há 20 anos com o seu futuro hipotecado, sem poder investir na sua comunidade e em infra-estruturas necessárias, por medo de perderem os seus investimentos, uma vez que em 2000 foram aconselhadas pelo governo a não construir nenhuma nova infraestrutura?
Qual o real propósito da barragem e que hipotéticas mais-valias julgam que traria para o País a curto e longo prazo, incluindo como planeiam rentabilizá-la?
Exigimos ainda que haja um diálogo aberto e inclusivo entre o governo, a sociedade civil e especialistas de diferentes áreas relacionadas com este projecto, onde se possam tomar decisões a respeito dos estudos necessários para responder às várias questões preocupantes, que incluem:
A indefinição sobre o regime de fluxo em que a barragem irá operar (base-load ou mid-merit);
A indefinição sobre a área escolhida para reassentamento das comunidades directamente afectadas;
A pobre análise de sedimentos elaborada com dados insuficientes, que não permite uma análise científica válida;
A fraca análise sismológica, sem dados concretos e com resultados e conclusões que contrariam outros estudos de especialistas de renome;
A fraca análise aos potenciais impactos das mudanças climáticas e mudanças na demanda de água a montante da barragem, que irá afectar a viabilidade económica do projecto;
O facto de não terem sido consideradas e tampouco seguidas as directrizes da Comissão Mundial de Barragens, particularmente no que se refere aos direitos e justiça sociais e ambientais, entre outras;
As alternativas energéticas viáveis para o país, comparando e analisando os benefícios e impactos de cada uma;
A forma como o projecto irá garantir que os benefícios gerados não serão apropriados por uma pequena elite política e económica nacional, e pelas grandes companhias transnacionais.
Sem a elaboração de estudos cientificamente válidos e imparciais que respondam a todas estas questões e outras que possam surgir, nós abaixo-assinados exigimos que o projecto seja travado. Exigimos ainda que se promova um diálogo aberto, inclusivo e profundo em torno de soluções energéticas limpas, justas e acessíveis a todos os Moçambicanos e Moçambicanas, de forma a enveredarmos por um desenvolvimento sustentável que garanta a protecção dos importantes ecossistemas que garantem a vida no planeta.