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A JA! encontra na sua visita confusão e desconfiança na região do gás de Cabo Delgado

DSCF2153Quando a equipa da JA! visitou Pemba no final de Fevereiro, 2019, à maior cidade da província de Cabo Delgado, para saber mais sobre a actual situação da “corrida do gás” no norte de Moçambique, ficou claro para nós que há muito pouca clareza e transparência sobre o que está realmente a acontecer na indústria do gás. Os ataques às comunidades, a usurpação de terras, o estágio das operações das empresas e até mesmo que empresas estão envolvidas, deixando as pessoas confusas e na incerteza.

A indústria está em constante mudança, sendo um exemplo em Fevereiro, a aquisição pendente da empresa Norte-americana Anadarko, que é líder de um dos dois maiores projectos desde que “descobriu” o gás na Bacia do Rovuma em 2010. Há apenas duas semanas, a Chevron fez uma oferta para comprar a Anadarko por $ 33 mil milhões e, poucos dias depois, a Occidental Petroleum tentou comprá-la por $ 38 mil milhões.

Isto tem enormes implicações – as comunidades que estiveram em comunicação com a Anadarko sobre o reassentamento e a compensação, ou que já assinaram acordos com eles, os acordos financeiros do governo com a Anadarko e os investimentos no projecto – todos precisarão de mudar e, de um modo mais assustador, ninguém sabe como eles vão mudar.

Além disso, as etapas dos projectos de gás estão em constante mudança, novos contratantes chegam e novos acordos são assinados num piscar de olhos. A informação oficial é que em 2006, foram descobertos 10 trilhões de pés cúbicos de gás natural na Bacia do Rovuma, na costa norte de Moçambique. Existem duas áreas de concessão que o governo de Moçambique já deu os direitos a:

Área 1, a localização do Projecto de GNL de Moçambique, que foi liderado pela Anadarko, mas que agora é liderado pela Chevron e pela Occidental Petroleum, e a Área 4, a localização do Projecto de GNL de Coral que é liderado pela Eni e pela Exxon. * E em ambos os projectos foram garantidos compradores que, no final das contas, lhes deram luz verde financeira para operarem.

No último ano, houve muitos ataques violentos contra aldeias na região do gás, e existem diferentes teorias sobre quem é responsável e quem se beneficia deles. Devido a esses ataques, nesta visita a equipa da JA! não pôde viajar para as comunidades com as quais trabalhamos perto de Palma. Em vez disso, o nosso ponto focal com o qual trabalhamos de perto, trouxe dois membros das comunidades ao nosso encontro a Pemba.

Apesar de não termos conseguido viajar para Palma durante esta visita, encontrámo-nos com pessoas em Pemba – ONGs, activistas e jornalistas – que nos apontaram para um número crescente de problemas. Basicamente, com quanto mais pessoas falávamos, com mais pessoas percebíamos que precisávamos de falar.

IMG_20190225_150151_9.jpgDuas pessoas das comunidades afectadas pela indústria, Crisando Silva de Senga e Burahani Adinane de Milamba, viajaram seis horas para nos contar sobre a situação que estão a enfrentar agora. O Burahani contou-nos como a sua comunidade deixou Milamba em Fevereiro e que estão a ficar com a família em Palma porque se sentem muito inseguros, com um medo constante de serem atacados. Ele disse-nos que no final do ano passado, a Anadarko fez um acordo com a comunidade a dizer-lhes o que receberiam como compensação. Eles ainda não assinaram o acordo com o governo, e a Anadarko não lhes devolveu esse documento de acordo como lhes disse que faria, então eles estão num constante estado de incerteza e limbo.

Ele disse-nos que o processo de avaliação de compensações tem sido ridículo – uma maneira pela qual a empresa avalia as terras de alguém é a contar os seus pertences e a compensá-la financeiramente por esses bens.

Pessoas com 5 hectares (ha) de terra vão receber apenas 1,5 ha em compensação”, disse ele. “Eu tenho 64 hectares, mas só vou receber 1,5 ha! A empresa fez a medição a contar o número de árvores na parcela. Eu tinha 583 árvores, mas como cabem num hectare?”

A comunidade pesqueira está a ser deslocada 10 km para o interior, longe do mar, onde será muito difícil chegar às áreas de pesca, que também serão o local de um novo projecto de construção portuária. E, na verdade, as pessoas perderam o acesso ao mar mesmo antes do processo ter sido concluído. “Agora vamos ser reassentados do mar”, diz o Burahani, “e pessoalmente, não sei fazer nada para além de pescar”.

O Crisando Silva, de Senga, que é a aldeia onde as comunidades removidas serão reassentadas, contou-nos sobre o problema dos militares na área. Após os violentos ataques às aldeias, principalmente as que estão à volta ou na região do gás, que estão a ocorrer desde Outubro de 2017, o governo trouxe os militares, supostamente para protegerem as comunidades dos agressores. Ninguém tem a certeza sobre quem é o responsável pelos ataques, mas existem muitas teorias por aí. A linha oficial do governo é que eles são executados por extremistas Muçulmanos, mas muitos outros acreditam que as empresas de gás, ou pessoas poderosas no governo, são os responsáveis. No entanto, o Crisando disse-nos que os militares que os deviam proteger, instigam em vez disso o medo na comunidade. Ficam na área a beber cerveja, disse-nos o Crisando, e depois dão às pessoas de Senga um toque de recolher às 8 horas da noite, espancando as pessoas que estão fora depois disso. “Mas o exército está apenas na aldeia até à meia-noite”, disse-nos o Crisando, “o que eu não entendo… Estamos com muito medo de ir aos campos, mas o exército recusa-se a escoltar-nos, então ficamos sem comida.”

O Crisando também nos disse que ele sabe que o ecossistema será completamente destruído, e que as fábricas da Anadarko e da Exxon estão bem ao lado do porto que será construído. O porto irá 2 km para o mar, e a escavação está a perturbar o fundo do mar. Isto está realmente a afectar os padrões de pesca e a quantidade de peixes na área.

Depois de falarmos com os membros da comunidade, realizámos vários outros encontros que nos forneceram informações importantes. Uma das outras questões urgentes é a da opressão dos media – dois jornalistas comunitários de Cabo Delgado ficaram presos por um longo período, com um deles, o Amade Abubacar, detido de 5 de Janeiro a 23 de Abril de 2019. Embora a razão oficial para a sua prisão não seja clara, a Amnistia Internacional diz que ele foi preso por documentar ataques mortais de grupos armados contra civis.

Isso deixou os poucos jornalistas que não estão a seguir a retórica convencional do governo em constante medo pelas suas vidas ou de perderem a sua credibilidade, se eles escrevem ou dizem qualquer coisa que não se alinha com a mesma. Os jornalistas com quem falámos insistiram em falar connosco no nosso quarto de hotel porque, mesmo sendo vistos connosco, poderiam ficar em perigo.

Conversámos com algumas ONGs, algumas das quais nos forneceram informações muito interessantes. Aprendemos sobre os vastos problemas actuais com o processo de reassentamento. Por exemplo, as áreas onde a Anadarko planeia dar às pessoas machambas (terras agrícolas) estão sob alto risco de ataques, e é muito difícil para a sociedade civil fisicamente ir lá para proteger as pessoas contra esses ataques. As comunidades sentem que a compensação monetária não é suficiente, pois é a terra ancestral que está a ser retirada delas. Quando elas têm reuniões com as empresas sobre o processo, não têm espaço para fazer perguntas e, quando realizam reuniões com a sociedade civil, os militares aparecem para interromper a reunião. A Anadarko também é conhecida por realizar reuniões de reassentamento com famílias individuais, o que é divisivo, e há crescente hostilidade sobre quem recebe quais machambas.

Também aprendemos que muitas áreas em Cabo Delgado, incluindo áreas onde as pessoas recebem machambas não são aráveis, porque os colonizadores Portugueses as usavam para cultivarem plantações de algodão que utilizavam muitos produtos químicos e que degradaram os solos.

Outra informação bastante preocupante é que, embora tenhamos conhecido várias ONGs que estão a fazer um trabalho interessante, há muito poucas em Cabo Delgado a trabalhar na questão do gás que não recebem financiamento para alguns ou outros serviços da Anadarko. Isso levanta questões de independência e transparência para nós quando as ONGs recebem dinheiro das próprias empresas das quais estão a lutar contra.

Depois daqueles poucos dias que passámos em Pemba, ficou claro que as coisas estão a mudar muito rapidamente – a presença das empresas e da segurança privada está a crescer, o medo de ataques e militares está a aumentar e as pessoas já estão a perder as suas casas e os meios de subsistência. Há uma sensação de desconforto no ar – muitas pessoas não querem falar ou, se o fazem, têm medo de dizer qualquer coisa abertamente contra o governo ou a indústria.

Não há dúvida de que a necessidade de parar a indústria é urgente, pois a devastação que já estamos a ver pode ser irreversível. Continuaremos a trabalhar em estreita colaboração com as comunidades afectadas, como parte de uma campanha que usa diferentes abordagens – locais e internacionais para parar o gás em Moçambique!

* Da Plataforma Flutuante de GNL de Coral, a ExxonMobil detém uma participação de 35,7 por cento na Eni East Africa S.p.A. (a renomear Moçambique Rovuma Venture S.p.A.), que detém 70 por cento de participação na Área 4, e é co-propriedade da Eni (35,7 por cento) e da CNPC (28,6 por cento). As restantes participações na Área 4 são detidas pela Empresa Nacional de Hidrocarbonetos E.P. (10 por cento), Kogas (10 por cento) e Galp Energia (10 por cento).

No GNL de Moçambique, a Anadarko (que em breve será assumida pela Chevron ou pela Occidental Petroleum ou outra?) lidera o projecto de GNL com uma participação de 26,5 por cento. Outros proprietários incluem a empresa estatal de energia de Moçambique, 15 por cento; o Mitsui Group do Japão, 20 por cento; a ONGC Videsh da Índia, 16 por cento; a Bharat da Índia, 10 por cento; a PTT Exploration and Production da Tailândia, 8,5 por cento; e a Oil India Ltd., 4 por cento.

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7 Perguntas a Anabela Lemos, Directora da Justiça Ambiental

Ticha

Antes de mais, como foi 2018 para a Justiça Ambiental? Fale-nos do que marcou o vosso ano, pela positiva e pela negativa. 

Pela negativa, destaco as frustrantes decisões de desenvolvimento do nosso governo; o apertar do cerco ao espaço da sociedade civil; as constantes ameaças de que somos alvo fruto das nossas posições; o antagonismo entre algumas organizações da sociedade civil; a postura do governo – que prefere tratar como inimigos todos que questionam ou discordam das suas decisões, em vez de nos tratar como parceiros com ideias diferentes; o regresso do projecto da barragem de Mphanda Nkuwa; e a captura das nossas florestas pelo Banco Mundial; entre outros.

Pela positiva, destaco em primeiro plano a nossa escola de Justiça Ambiental em Nampula e a escola agroflorestal no monte Mabu, na Zambézia, que valeram, acima de tudo, pela satisfação de ver o interesse e o envolvimento dos participantes. Destaco também que os nossos Tribunais tenham finalmente ordenado a Jindal a realocar as comunidades que ainda vivem dentro da mina e deliberado que a Mozal passe a divulgar os seus planos ambientais e as suas emissões – mesmo que até à data não tenhamos recebido qualquer informação e apesar da Mozal ter recorrido da decisão. Destaco ainda o lançamento do nosso pequeno documentário sobre o gás e os avanços alcançados pela campanha internacional de que fazemos parte, cujo fim é a elaboração de um tratado para acabar com a impunidade corporativa.

Resumidamente, acho que este ano conseguimos fincar as nossas posições, consolidar as nossas campanhas e manter-nos firmes nesta luta para garantir o futuro deste planeta e por um Moçambique justo e soberano, para os nossos filhos, netos, bisnetos e todas as gerações vindouras – o que, tomando em conta as adversidades que enfrentamos e o contexto em que trabalhamos, é sem dúvida uma victória.

 

E como acha que foi 2018 para o país? O que teve de melhor e de pior?

De melhor: a ordem dos advogados estar a defender os direitos das comunidades; o caso do DUAT da anadarko ser considerado ilegal; a continuação da proibição de exploração das madeiras Pau-ferro, Mondzo, Nkula, Inhamarre e Mbuti.

De pior: os aumentos na energia, combustíveis… no custo de vida em geral; a impunidade concedida aos responsáveis pelas “dívidas ocultas”, a impunidade concedida aos autores de recorrentes violações dos direitos básicos das comunidades rurais; a impunidade concedida a empresas internacionais em prol de interesses económicos; o aumento da pobreza; os conflitos em Cabo Delgado; as isenções fiscais e outras regalias concedidas às companhias que vão investir no gás; as inconsequentes “mexidas” na legislação para melhor acomodar investimentos estrangeiros; as eleições autárquicas.

 

O que pensa a Justiça Ambiental da intenção do governo de alavancar a economia nacional com os projectos de gás da bacia do Rovuma (inclusive da sua intenção de usar eventuais dividendos para amortizar as dívidas do país)?

Uma decisão errada – como o carvão, as plantações de monoculturas exóticas em lugar das nossas florestas, as dívidas ilegais – entre muitas outras. Os contractos feitos com as companhias, não vão resultar em dividendos alguns nos primeiros 30 anos, e depois disso sabe-se lá o que acontecerá… É uma ilusão acreditar que os dividendos vão pagar a dívida. Os impactos ambientais e sociais da exploração do gás serão irreversíveis, e o que perdermos, será para sempre: falo de ecossistemas únicos e que mantêm o equilíbrio ambiental. Não há negócio ou dinheiro algum que pague essa perda.

Em termos sociais, a perda ou roubo de terras às comunidades pesqueiras e camponesas, equivale à perda de meios de subsistência, de vida e de direitos dessas comunidades, aumentará a sua pobreza, resultará no diminuir do seu nível de escolaridade, piorará o seu acesso à saúde e atentará aos seus direitos básicos.

Por outro lado, continuamos a focar-nos quase que exclusivamente na indústria extrativa como via de desenvolvimento, em vez de diversificarmos a nossa economia. Como muitos outros países africanos e do chamado Sul Global, continuamos a seguir o caminho da maldição dos recursos. Será que não deveríamos aprender com os outros e ser mais sábios? Se fizéssemos as escolhas certas – como investir na educação, na saúde, nas energias renováveis e descentralizadas, no apoio à agroecologia camponesa, na descentralização dos processos de produção, em conservar as nossas florestas e recursos hídricos – poderíamos ser um exemplo em África. Mas não. Não estamos interessados em soberania energética, alimentar, económica e política.

 

Uma das críticas mais recorrentes que a JA faz em seus artigos de opinião é à apatia da sociedade civil moçambicana. Acha que essa crítica está a surtir algum efeito? Acha que os moçambicanos estão a “acordar”?

Espero que sim, porque só questionando o nosso governo e as suas decisões é que poderemos viver num país livre e transparente, em que as decisões do tal de “desenvolvimento” não sejam impostas por uma minoria, e totalmente alheias ao que o povo moçambicano realmente quer. Como diz o velho ditado: “Nada para nós, sem nós”.

Para aqueles que fazem parte da pequena elite de privilegiados, está tudo bem. Afinal, são eles os grandes responsáveis pela situação actual do País.

Abaixo deles, os pequenos burgueses, fazem tudo para manter os seus privilégios, e como tal, não querem saber. Não lhes interessa a mudança. Como os três macacos sábios, não veem, não ouvem e não falam. Não estão interessados em resolver qualquer problema ou injustiça. Não acredito que esses possam deixar de viver na apatia.

Sobre os restantes, tenho plena consciência que existe muito medo de falar em certos assuntos. Medo que algo possa acontecer, ou medo que marcar uma posição possa simplesmente parecer mal. Para mim, esse medo é simples cobardia. Todo o cidadão deve pronunciar-se quando perante uma injustiça, porque quem cala consente. Penso o mesmo sobre os activistas que evitam entrevistas, ou assinar petições, mesmo concordando, por medo de represálias. Ceder ao medo só piora a situação.

Mas a luz ao fundo do túnel continua a brilhar. Hoje vejo muitos jovens mais abertos, mais interessados nos problemas ambientais e sociais, mais lúcidos em termos de valores. Exemplo disso foi a reação e a solidariedade de muitos deles face à noticia sobre a prisão do jornalista Estacio Valoi e outros, em Palma.

Não nos podemos calar quando nos deparamos com injustiças, só assim poderemos acabar com elas.

 

Há quem teorize que o desacelerar da economia nos últimos anos, abrandou também a corrida à nossa terra. O que acha desta teoria e qual o ponto de situação de casos como o ProSavana, a Portucel ou a Green Resources?

A corrida à nossa terra continua porque a nossa terra é dada de mão beijada a investidores estrangeiros. Poucos países “doam” terra como o nosso: usurpando-a a quem de direito lá vive – seja por meio de falsas promessas ou simplesmente à força. O Prosavana ilustra precisamente isso, pois apesar da vasta maioria dos afectados ser contra o programa, o governo mostra-se incapaz de tomar uma posição consonante com a vontade do povo. O mesmo acontece com as várias plantações florestais país a fora, que só têm trazido conflitos e mais pobreza para o camponeses, enquanto os nossos governantes continuam a ignorá-los e a dar mais terra a companhias que estão constantemente a violar os direitos das comunidades directamente afectadas.

 

As companhias transnacionais e o investimento directo estrangeiro são vistos, frequentemente, por países como Moçambique, como “messias económicos”. Qual é a sua opinião em relação a esta política de desenvolvimento?

Uma ilusão. As transnacionais não vêm ajudar o país. Vêm sim, enriquecer-se mais à custa dos nossos recursos, e vêm ajudar a enriquecer mais ainda a nossa já privilegiada elite. E quando os recursos terminarem – porque tanto o petróleo, como o gás, o carvão, e outros, não são recursos renováveis – vamos ficar com um país ainda mais pobre, poluído, repleto de ecossistemas destruídos e com um povo sem terra. Entretanto, durante a sua exploração, vão violar constantemente os direitos humanos e os nossos bens comuns e destruir o nosso ambiente. Enquanto as companhias transnacionais continuarem a actuar com impunidade e a ter como prioridade o lucro em vez do bem estar dos seres humanos e seus bens comuns, não haverá “desenvolvimento” para Moçambique ou qualquer outro país.

 

Vocês são frequentemente rotulados de radicais ou contra o desenvolvimento. Acha que essa vossa postura poderá estar a melindrar a vossa relação com o Estado e a privar-vos de uma relação mais colaborativa e produtiva com este?

A título de esclarecimento, nós somos rotulados de “radicais” pura e simplesmente porque somos fiéis ao que acreditamos. Se achamos que algo está errado, não cruzamos os braços e aceitamo-lo. Isso não é ser radical, é ter ética. Para mais, acreditamos que as posições que assumimos em relação às várias questões com que trabalhamos, não têm nada de radical; antes pelo contrário, por serem pela vida e pela sobrevivência do planeta, as nossas posições deveriam ser vistas como absolutamente consensuais. Radical é colocar esses princípios em segundo plano.

Vivemos numa época de crises, como por exemplo a crise climática, que apesar de ser uma ameaça cientificamente incontestável à sobrevivência do planeta e das futuras gerações, continua a ser ignorada pela maioria dos países – que preferem continuar a enveredar por soluções falsas e distrações ao problema real, quando a solução para o problema é simples: parar com os combustíveis fósseis. Mas nós é que somos os “radicais”…

Por outro lado, os primeiros a levantarem as suas vozes contra a escravidão, contra a descriminação racial ou pela igualdade de direitos das mulheres, também foram considerados radicais. Talvez ser radical não seja assim tão mau. O tempo julgar-nos-á.

No nosso país, apesar dos nossos avisos e dos exemplos mundo a fora que apontam para o abandono de energias fósseis – cada vez mais obsoletas – como a opção sensata a tomar, depois do carvão chega agora a vez do gás…

Desenvolvimento? Olhem para Tete. Vejam “tudo” o que o carvão trouxe a Tete. Em 2004/5, nós os “radicais contra o desenvolvimento” fizemos a advertência e poucos acreditaram. Hoje, a maioria já começa a perceber o triste desfecho que se adivinha.

Onde está esse desenvolvimento de que tanto falaram?

Pior que isso, aparentemente não aprendemos nada, e o gás em Cabo Delgado é a prova disso.

Respondendo à sua pergunta, estamos cientes que a nossa postura incomoda muita gente. E infelizmente, na maioria dos casos, é efectivamente muito difícil ter uma relação colaborativa e produtiva com o nosso governo porque os nossos diferendos – por exemplo em relação às questões climáticas, às plantações de monoculturas exóticas, às escolhas de recursos energéticos, entre vários outros – são inconciliáveis. As escolhas do nosso governo nessas matérias são, em nossa opinião, fundamentalmente erradas e só virão agravar a crise climática; como tal, sentarmo-nos à mesma mesa para discutir ajustes não faz qualquer sentido. Sinceramente, isto entristece-nos; mas em alguns casos pontuais até conseguimos colaborar.

Resumidamente, não podemos dizer que estamos a desenvolver-nos quando a pobreza aumenta, a educação piora e o apoio à saúde é mínimo. O que se está a passar em Moçambique não é desenvolvimento, pois quando um país se desenvolve, a vida dos seus cidadãos melhora, e não é isso que está a acontecer.

 

Trump vs. Califórnia vs. Clima

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No início de Setembro, a equipa da JA participou de uma série de eventos interessantes em San Francisco. De 12 a 14 de Setembro de 2018, o Governador do Estado da Califórnia, Jerry Brown, acolheu a Cimeira Global de Ação Climática (GCAS).

Como é claro, o mundo sabe que a política dos EUA é dominada pelo tóxico e racista Trump e sua absurda convicção de que a mudança climática é uma farsa chinesa. Mas o que está a acontecer na Califórnia? – um estado conhecido por ser progressista num país conservador. Quando Trump foi eleito Presidente dos EUA, em Novembro de 2016, o Governador Brown opôs-se a ele e saiu em apoio à ação climática. Fantástico! Certo? Então, a Califórnia é um líder climático?

A resposta infelizmente é não. É muito importante que nos oponhamos a Trump e sua vil absurdidade. Mas opormo-nos apenas a Trump é fácil, e foi isso que o Governador Brown fez ao acolher este evento. A Amigos da Terra dos EUA explicou-o perfeitamente: “O Governador Brown fala lindamente sobre a mudança climática. Mas apesar de toda a conversa, o petróleo e o gás continuam a ser um grande negócio na Califórnia, ameaçando comunidades locais e acelerando o caos climático global… Uma verdadeira liderança climática exige mais do que promessas e conferências de imprensa que denunciem Trump. A Califórnia promove-se como líder na climática global – mas as “Big Oil” (grandes petrolíferas) estão a virar-se agressivamente para o processamento do petróleo mais sujo do planeta em refinarias do estado, colocando em risco as comunidades locais, os canais costeiros e o clima global”.

Essencialmente, na Califórnia, o Governador Brown e as “Big Oil” estão a usar a idiotice de Trump para fazer com que seus mecanismos de mercado pareçam “ação climática” e para normalizar suas falsas soluções.

A movimentos de foro judicial dos EUA, como a Grassroots Global Justice Alliance, juntaram-se outros, incluindo a Friends of the Earth dos EUA, para resolver essa charada. Eles criaram a campanha “Brown’s Last Chance” (a última oportunidade de Brown). Entenderam que o GCAS era um momento gigante de lavagem verde e que a ação climática precisa ser mais profunda e exigir mudanças no sistema. Exigiram que o Governador Brown parasse de emitir novas licenças de petróleo e gás e que anunciasse um distanciamento gradual da produção existente de combustíveis fósseis.

A luta contra o REDD na Califórnia continua

Agora, o caso complica-se. Já não se trata apenas de gás e petróleo. Agora a Califórnia também está a promover falsas soluções. Pois, conforme se prevê que venha a acontecer num futuro próximo com a expansão do programa de limitação e comércio (cap-and-trade) da Califórnia, será em refinarias de petróleo como as mencionadas acima que, créditos de REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) de Chiapas, do Acre e de outras potenciais jurisdições de parceiros sub-nacionais serão usados para “compensar” a sua poluição por emissão de gases de efeito estufa.

Então, a JA juntou-se a povos indígenas do Brasil à Califórnia e ao Canadá, exigindo que a Califórnia pare com o seu perigoso esquema de REDD. Protestámos à porta do luxuoso Hotel Parc 55, onde o Governador Brown estava a planear o seu esquema de REDD. O Chefe Ninawa, da tribo Huni Kui do Brasil, entrou para entregar a nossa declaração ao governador e à sua equipa. “Não ao REDD! – cantámos lá fora.

Marcha “Rise for Climate” (Ergue-te pelo clima)

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Para mostrar o poder das pessoas, muitas vezes precisamos de sair às ruas. Os activistas da Califórnia organizaram uma grande marcha chamada “Rise for Climate”. Liderada por comunidades indígenas locais e de linha da frente, com fortes alicerces de organização de justiça ambiental de base, mobilizámo-nos para acabar com a energia suja em todo o lado e para dizer não a distrações perigosas como mercados de carbono, que nada farão para impedir a catástrofe climática. Marchámos ao lado de comunidades devastadas por incêndios florestais a apenas 90 quilómetros de São Francisco, e de movimentos porto-riquenhos cuja ilha inteira foi devastada por furacões há apenas um ano.

As exigências da marcha foram fortes:

Exigimos uma Liderança Climática Real, que requeira:

  • Justiça ambiental, racial e económica para todos;
  • Que não se edifiquem novos projectos de combustíveis fósseis e se promova um declínio controlado da produção existente de combustíveis fósseis;
  • Uma transição justa para energias 100% renováveis que proteja trabalhadores, povos indígenas e comunidades de linha de frente – tanto nessas indústrias extrativas como também de forma mais ampla – e garanta empregos que permitam sustentar famílias, que contemplem o direito dos trabalhadores se sindicalizarem, que sejam seguros para as pessoas e para o planeta;
  • Esforços justos e equitativos de resiliência e recuperação liderados pelas comunidades mais impactadas.

Mais de 30.000 pessoas saíram às ruas nesta incrível marcha que encerrou as ruas do centro de São Francisco.

Cimeira Alternativa Sol2sol

Precisamos de nos opor às acções erradas que os nossos governos estão a promover, mas também precisamos mostrar as soluções de nossos próprios povos. Os activistas da Califórnia organizaram a incrível conferência alternativa chamada Sol2Sol – que significa “solidariedade às soluções” – para destacar as soluções de comunidades da linha de frente. A JA participou e falámos sobre o nosso trabalho em Moçambique.

Protectores do céu

Um novo movimento chamado “Sky Protectors” (Protectores do céu) está a surgir. Somos activistas que sempre defenderam a terra, a água e agora estamos a ser chamados para defender o céu também. A geoengenharia é um fenómeno perigoso que consiste de manipulações tecnológicas deliberadas e em larga escala da atmosfera, dos oceanos e dos solos da Terra, com o objetivo declarado de enfraquecer alguns dos sintomas da mudança climática.

A geoengenharia é arriscada, insegura e tem implicações assustadoras. Propõe-se a mudar padrões de chuva e outros fenómenos climáticos de uma forma que ainda não entendemos. É por isso que precisamos parar e proteger o céu. A JA participou de uma reunião em São Francisco onde soube que alguns projetos de geoengenharia já estão planeados e onde se elaboraram estratégias sobre como nos opormos a eles. Atualmente, projetos estão a ser planeados na América do Norte, América do Sul e Ásia, mas esses projetos perigosos podem chegar ao nosso continente a qualquer momento.

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Um desses projectos quer colocar sulfatos na estratosfera, com o objetivo de reduzir a quantidade de luz solar que atinge a Terra. Isso mudaria completamente os padrões de chuva e vento, e prevê-se que perturbaria as monções na Ásia e aumentaria as secas na África e na Ásia. Além disso, dada a geopolítica actual e as iniquidades entre países, já imaginou uma poderosa corporação ou país a controlar o termóstato do mundo? Poderiam manter-nos a todos reféns de seus caprichos. Seria a militarização do céu e precisamos defender o nosso céu disso. Isto não é o enredo de um filme de ficção científica, existe mesmo uma experiência real de injecção de um aerossol estratosférico planeada no estado americano do Arizona. Chama-se Scopex.

Outra ideia maluca é a chamada Fertilização do Oceano, onde a ideia é lançar limalha de ferro no oceano para capturar CO2 atmosférico. Você consegue imaginar o que isso vai fazer à vida marinha e aos pescadores que dependem do oceano? Mais uma vez, esta não é uma história inventada. Um projeto chamado Oceanos está a ser planeado ao largo das costas do Chile, Peru e Canadá.

Quer ouvir mais uma ideia terrível? No ecossistema mais sensível do Ártico, no Alasca, está a ser planeado um projeto chamado Ice 911. A ideia é lançar microesferas de vidro no topo do gelo e no mar, no Alasca, para absorver o CO2. No nosso encontro, participantes de povos indígenas americanos do Alasca mostraram-se agravados por este projeto e comprometeram-se a opor-se a ele em seus territórios.

A geoengenharia é perigosa e arriscada. Mas pior do que isso, tenta perpetuar a falsa crença de que a mudança climática pode ser travada com correções tecnológicas. Ignora deliberadamente o facto de que a crise climática e as outras crises inter-relacionadas que estamos a enfrentar são resultado dos sistemas económicos, sociais e políticos injustos de hoje. A maneira insustentável como produzimos, distribuímos e consumimos coisas está a devastar a nossa ecologia e o nosso povo. Isso é o que precisa de mudar. Só uma mudança de sistema poderá interromper as mudanças climáticas.

 

CONFERÊNCIA INTERNACIONAL “TURISMO BASEADO NA NATUREZA”!

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Foi com certa pompa e circunstância que se realizou, num dos hotéis mais caros de Maputo, a CONFERÊNCIA INTERNACIONAL “TURISMO BASEADO NA NATUREZA” entre 7 e 9 de Junho de 2018. Jantar de Gala e discursos de oradores todos muito conscientes que devemos fazer um turismo virado para a Natureza…

As notícias da Conferência encheram todos os dias os órgãos de comunicação social, e não houve um telejornal da STV que não entrasse pela nossa casa adentro com a grande notícia de momento.

Todos os empreendedores, investidores, Governo, Estadistas e Ex-presidentes, assim como especialistas mundiais em conservação, marcaram presença no grande acontecimento do mês, com publicidade diária na televisão em horário nobre, com lindas imagens da fauna e flora Moçambicana a encantar os nossos olhos de tanta beleza natural que existe neste País.

Mas infelizmente a realidade é outra. A Natureza foi só um pretexto. Uma palavra bonita. Uma desculpa para chamar mais investidores. Porque hoje a moda é ser sustentável, proteger o ambiente e ser ambientalmente consciente.

Todas estas palavras bonitas servem apenas para tentar garantir mais e mais investimentos. A hipocrisia abunda no nosso meio social. Se nesta ocasião o discurso era esse, noutras promovem-se despudoradamente indústrias bastante poluidoras e que danificam – e muito – o meio ambiente: como a extracção de carvão em Tete ou as perfurações em alto mar da indústria petrolífera e de gás numa das áreas de maior beleza natural de Moçambique como é Cabo Delgado, a província das águas límpidas e cristalinas de Pemba, do Ibo, das Quirimbas, de Mocímboa da Praia e tantas outras praias.

Do Rovuma ao Maputo, em toda a costa Moçambicana, no interior e nas ilhas ao longo do Índico, existe imenso potencial turístico. No entanto, a indústria petrolífera e de gás, a indústria madeireira, o agronegócio e outros investimentos lesivos ao meio ambiente, concorrem com esse potencial. As inúmeras belezas e riquezas naturais espalhadas por Moçambique – como a lindíssima Província de Inhambane com as suas belas praias e o lindo arquipélago de Bazaruto, os planaltos e montes de Chimanimani, o Monte Mabu, a bela Gorongosa ou a biodiversidade única das nossas reservas e parques naturais – estão a ser ameaçadas por gasodutos, por portos de águas profundas, por plantações florestais, por monoculturas…

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Tantos exemplos por este Moçambique fora, e de certeza que a Natureza é a última coisa em que pensam quando assinam essas grandes negociatas, memorandos de entendimento, concessões mineiras ou mesmo os contratos fabulosos para construir hotéis ou lodges em claro desacato às mais básicas normas ambientais.

A terra Moçambicana está a sofrer. São buracos enormes abertos nas montanhas, são corais destruídos pelas plataformas petrolíferas, são florestas inteiras abatidas para vender a madeira legal ou ilegalmente. E ainda dizem de boca cheia que estão a defender a natureza? Estão sim a gastar milhões de meticais em mais uma conferência de negócios num hotel caríssimo, com jantar de gala em que o preço de uma refeição é três vezes o valor de um salário mínimo, num país onde há pessoas a morrerem de desnutrição aguda, com uma dívida enorme às costas. Um país com todo o tipo de carências básicas, dos transportes até à assistência na saúde.

CONFERÊNCIA INTERNACIONAL “TURISMO BASEADO NA NATUREZA”? Desculpem meus Senhores, mas tenham dó! Precisamos de dirigentes sérios que pensem no bem do País e na melhoria de vida do povo moçambicano. Não de dirigentes a arrotar caviar em hotéis de 5 estrelas em Maputo e a vender a Natureza ao metro quadrado ao primeiro vigarista que apareça!

Pensem a sério na Natureza e em tudo que está a ser destruído. Não nestas fantochadas de negociatas em nome da Natureza. A Natureza não merece este tratamento, nem a Natureza nem o Povo Moçambicano.

Com chuvas mas sem Água nas Torneiras?!!

Entre Outubro e Abril de cada ano, Moçambique é atingido por cheias. O fenómeno é justificado pela sua localização geográfica, – a jusante da maioria das bacias hidrográficas da África Austral – no entanto, paradoxalmente, o sul do país é igualmente afectado por secas prolongadas. De acordo com o canal de notícias online África 21 Digital, “as catástrofes naturais que atingem várias regiões de Moçambique, desde Outubro passado, já causaram pelo menos 34 mortes, de um universo de 3.925 pessoas afectadas pelo mau tempo. Segundo o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC), as mortes resultaram de descargas atmosféricas (trovoadas e relâmpagos), afogamentos, ventos fortes, electrocussão e arrastamentos em correntes de água”.

Em 2018, desde o início do ano até Março, Moçambique registou muitos dias chuvosos, alguns deles acompanhados de ventos fortes, e dos quais resultaram cheias e inundações, bem como danos infraestruturais avultados em diferentes regiões do Pais, com maior destaque para a zona Norte. Estes eventos naturais extremos, causaram a destruição de várias escolas, estradas, pontes, redes de energia eléctrica, barcos de pesca e casas, assim como os já mencionados irreparáveis danos humanos.

A verdade é que nos últimos cem anos, produtos tóxicos lançados na atmosfera pelas indústrias, carros, camiões e algumas actividades ligadas à agricultura e dos quais resulta uma concentração cada vez maior de gases de efeito estufa no planeta, impedem a saída do calor que chega à superfície da terra através da luz do sol, provocando desta forma, o aquecimento da atmosfera e consequentemente a crise climática.

Associado a isso, o acelerado crescimento das cidades e da população e o seu uso dos recursos naturais para sobreviver têm levado, por um lado, ao aumento do desmatamento, e por outro, à escassez de água.

Vários estudos têm sido levados a cabo sobre a extensão dos problemas que as mudanças climáticas podem trazer, concluindo-se que várias alterações poderão decorrer, tais como:

  1. Mudança nos regimes regionais de chuva: teremos chuvas mais abundantes, mas que deverão evaporar mais rápido devido a intensidade do calor, deixando os solos mais secos. Essa alteração, consequentemente, causará prejuízos na agricultura e reduzirá o fornecimento de água potável, que já é bastante escassa em várias regiões do mundo, como na Cidade do Cabo na vizinha África do Sul, em Bangalore na Índia ou mesmo na própria cidade e província de Maputo, só para citar alguns exemplos.
  2. O deslocamento das zonas climáticas e agrícolas em direção aos polos: é possível que as principais áreas produtoras de cereais hoje sofram secas e ondas de calor mais frequentes, prejudicando a productividade.
  3. O derretimento de glaciares e o aumento da temperatura dos oceanos: o que resultará na subida da água do mar, ameaçando e afectando consequentemente as zonas costeiras como se tem verificado na cidade da Beira e em ilhas de baixa altitude; e influenciará as correntes marinhas, causando mais mudanças climáticas.

Segundo um estudo da University of New South Wales (UNSW), o aumento de temperaturas impulsionado pelo aquecimento global, provocam tempestades cada vez mais intensas, que afectam cidades com inundações repentinas, mas deixam campos e terras agrícolas secos. Isto ocorre porque enquanto o clima mais quente provoca tempestades mais fortes, levando a inundações nas cidades, também reduz a humidade no solo que, por sua vez, absorve rapidamente qualquer excesso e reduz o fluxo de água nos rios, um cenário no qual se enquadra Moçambique nos últimos anos.

O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) prova que alguns dos impactos das mudanças climáticas previstos para o futuro já estão a ocorrer. Os modelos usados nas pesquisas, projectam que essas situações agravar-se-ão com o tempo. Enquanto se esperava que esses fenómenos só viessem a ocorrer entre 2030 e 2050, o facto é que já se verificam chuvas extremas e mais frequentes e intensas, nos últimos 50 e 60 anos, em várias regiões do mundo. Em consequência, cresce a quantidade de desastres naturais. Esses eventos extremos de chuva são resultado do aumento da concentração dos gases de efeito estufa e da urbanização. Tem chovido muito nas cidades, mas não onde deveria chover, razão pela qual não se percebe como, apesar de se verificarem chuvas fortes e frequentes na zona sul do país, a cada vez maior escassez de água nas principais bacias hidrográficas da região continua uma realidade preocupante.

Um facto curioso mas igualmente preocupante e que nos chama a atenção aos impactos das mudanças climáticas, é que durante muito tempo, achava-se que Moçambique era um país com muita água, mas hoje – sobretudo tendo em conta o que vem acontecendo na região sul do país (mais concretamente na cidade e província de Maputo) – verificamos a falta deste recurso altamente precioso devido à agravada redução de chuvas, situação que até obrigou o governo a tomar medidas visando a sua poupança. Várias famílias residentes na região vivem hoje numa situação difícil provocada pela escassez deste recurso, que a longo prazo poderá atingir outras regiões do pais, e consequentemente afectarão, sem dúvida, o sector energético; sendo que em termos de produção e fornecimento da energia eléctrica, o país ainda esta dependente da energia produzida pela barragem de Cahora Bassa, embora pouco mais de 70% da população continue sem acesso à electricidade.

Isto mostra claramente que o uso das energias limpas e renováveis é um imperativo, não apenas associado à necessidade de aumentar a disponibilidade de energia para a população, mas acima de tudo para contribuir para a tão necessária redução de emissões como solução para a problemática das mudanças climáticas, tendo em conta que os seus impactos só aumentam a nossa vulnerabilidade e reduzem a nossa capacidade de lidar com a problemática. Daí que é imperioso que o Governo deixe de promover a exploração e uso de combustíveis fósseis e aposte numa transição energética, passando a promover e implementar iniciativas energéticas limpas e renováveis, deixando de depender apenas das megabarragens, carvão, petróleo e gás – principais causas da emissão de gases de efeito estufa.

Igualmente, todos os cidadãos são chamados a fazer o seu papel para preservar o meio ambiente e ajudar a reverter a situação das mudanças climáticas. O ponto de partida é consumir menos recursos e de maneira mais consciente, alterando os hábitos, estabelecendo critérios de compra, de descarte de produtos e de contratação de serviços e pressionando e exigindo que empresas e governos façam a sua parte.

Mentes sujas não entendem energia limpa

Energia tecnológica vs Energia de commodities

A mudança é sempre difícil. Qualquer sistema que estejamos a tentar mudar, evoluiu, adaptou e solidificou o seu comportamento, visão, tendências, maus hábitos e muito mais ao ponto da dependência cega. Quão mais complexo o sistema, mais ligações, tentáculos e raízes existem a trabalhar para manter as coisas como estão.

Isso torna difícil imaginar como um novo sistema poderia funcionar, mesmo que as nossas organizações estejam comprometidas com uma mudança de sistema face às múltiplas crises. Especialmente em virtude da cada vez maior especialização e compartimentação do nosso actual sistema global, as mudanças ficam atoladas. Toda a vez que olhamos para um novo e melhor subcomponente do sistema, notamos que ele não se encaixa bem com os outros componentes mais antigos e julgamo-lo insustentável, não competitivo, etc. O problema reside no facto de nos concentrarmos em melhorar o sistema existente em vez de desenvolvermos uma nova forma de alcançar um objectivo antigo.

Examinaremos como isso funciona no sector de energia, bem como a visão de um futuro livre de carbono no meio da crise climática global. Devido à extensão e diversidade das questões, abordaremos isso numa série de artigos nos próximos meses, mas para este artigo, gostaríamos de explorar as noções de “energia tecnológica” e “energia de commodities” e o mundo de diferenças entre elas.

Em grande parte, os operadores vêem a energia como energia, e comercializam-na sem distinção. Em geral, a maioria dos especialistas em energia vem de um background de commodities e, à medida que a energia alternativa, limpa e tecnológica começou a aparecer, eles apenas a adicionaram à lista de opções para alcançar os seus objectivos energéticos. Este foi e continua a ser um grande erro, porque a economia destes dois tipos de energia é muito diferente e lidar de forma adequada com os obstáculos, projecções, viabilidade, crescimento e avaliações gerais de cada um deles, requer habilidades muito diferentes.

Para explorar essas diferenças, usaremos os exemplos da energia solar (energia tecnológica) e do petróleo (energia de commodities). Um painel solar foto-voltaico (FV) é, em termos simples, um conjunto de circuitos eléctricos embutidos numa placa de silício, uma descrição que também poderia ser usada para definir um chip de computador, de tal forma que, por vezes, os fabricantes de painéis (equivocadamente) os definiam como “semicondutores”. No entanto, apesar do uso desta definição para ambos falhar por ser simplista, o uso do mesmo modelo económico para ambos faz sentido, porque os painéis solares PV e os chips de computador se comportam de maneiras similares economicamente, daí nosso uso do termo “energia tecnológica”. Para destacar esta realidade, veja o Gráfico 1 abaixo.

gráfico 1

Gráfico 1: Custos da Potência de Processamento de Computadores, Electricidade Solar PV e do Preço do barril de Petróleo, 1976-2014 (G.Jabusch 2015)

É notória a similaridade dos drásticos declínios de preço ao longo de 4 décadas do custo por Watt da energia solar FV (linha verde) e do custo por GigaFLOP da potência de processamento de computadores (linha azul). Esse declínio é impulsionado pela crescente demanda por novas tecnologias, pela sua massificação em escala e pelo permanente avanço da fronteira tecnológica.

Em comparação, o petróleo segue o padrão usual das commodities, cujo preço flutua de acordo com factores de demanda e oferta. Apesar do gráfico 1 mostrar que o custo da energia solar FV diminuiu 170 vezes, quando comparada com o petróleo, a energia solar melhorou sua base de custos em 5.355 vezes em relação a este desde 1970 (T. Seba). O petróleo fica caro quando as economias estão a crescer, mas a energia solar FV diminui devido à sua sensibilidade à demanda/ espansão e à sua independência de um recurso finito como o petróleo, que precisa de ser extraído do solo. A energia solar FV também é menos dependente geograficamente e, portanto, é mais resistente ao risco geopolítico, cuja ameaça aumentará ainda mais quando os impactos das mudanças climáticas começarem a causar mais migrações, escassez de água, perda de terra e falhas ecológicas.

Na verdade, a tecnologia é tão sensível à demanda e à expansão que, regra geral, torna-se mais barata ao longo do tempo. Os outros factores que fazem com que as commodities flutuem geralmente afectam a taxa de declínio das tecnologias, mas a diminuição é certa. Imagine os benefícios para a economia global se se pudesse aplicar essa dinâmica de custo da tecnologia à energia. Quão mais energia de commodities usamos, mais cara esta se torna, colocando sempre um peso no crescimento, mas a energia tecnológica fica mais barata quanto mais a usamos.

Depois, há os custos inevitáveis ​​de uma energia de commodities como o petróleo. O petróleo custa muito para explorar, custa muito para extrair, custa muito para refinar, custa muito para transportar e se você considerar a lista interminável de impactos a todos os níveis, custa muito para consumir. Em 2014, o mundo teve um dos níveis mais baixos de novas descobertas de combustíveis fósseis da história recente (menos de 5 meses de consumo global), mas teve o custo mais alto para o desenvolvimento de novos aprovisionamentos de petróleo (quase 700 bilhões de dólares). Estes custos não só aumentam constantemente gerando rendimentos cada vez menores – independentemente do preço do barril e nas bombas ser baixo ou alto – mas esses custos são transferidos para todos nós de várias maneiras, como subsídios governamentais, custos de saúde, custos ecológicos e mudanças climáticas.

Por exemplo, em 2013 por cada USD $1 que qualquer um dos 20 maiores produtores mundiais de petróleo e gás investiu na nova exploração de combustíveis fósseis, mais de USD $2 foram subsidiados pelos governos do G-20. No total, o G-20 fornece USD $452 bilhões por ano em subsídios à produção de combustíveis fósseis, o que é quase 4 vezes o que o mundo INTEIRO oferece em subsídios para renováveis ​​(USD $121 bilhões). Podemos pensar que é apenas uma tendência de país rico, mas não, na África subsaariana, os subsídios à energia (especialmente o petróleo, mas também o carvão e o gás) consomem em média cerca de 5% do nosso PIB (FMI). Aqui, em Moçambique, pagamos 1% -1,5% do nosso PIB apenas pelos subsídios de gasolina e diesel e durante a recente crise económica, a nossa dívida de combustível aumentou em USD $7 a $10 milhões de dólares por mês (FMI). Apenas para colocar essa despesa em perspectiva, a nível africano, a percentagem do PIB que vai para a saúde é em média de 6% com base nos dados de 2013 para 51 países africanos.

Um facto adicional interessante relacionado à saúde, é que o custo estimado dos impactos dos combustíveis fósseis na saúde, não só não é coberto pelo sector de combustíveis fósseis, mas é uma grande parte do custo nacional de saúde de muitos países. Nos EUA, 1/3 dos custos do sector de saúde são atribuidos à queima de combustíveis fósseis (USD $9000/ pessoa/ ano, totalizando quase USD $900 bilhões) e em todo o mundo 30 a 40% das mortes são devidas à poluição (A.Lightman 2014). Na Europa, calculou-se que o custo de saúde da queima de carvão é de nada mais nada menos do que 42,8 bilhões de euros por ano (Heal 2013) e quando tomamos em consideração que as mais sujas usinas eléctricas, parques industriais, minas, etc. estão no sul global, só podemos imaginar a escala dos seus impactos na saúde e custos associados. No entanto, vamos cobrir o verdadeiro custo dos combustíveis fósseis num futuro artigo sobre a questão, incluindo a perda de ecossistemas, mudanças climáticas e muito mais.

Toda essa informação não é nova ou desconhecida para a nossa elite política, ou pelo menos não deveria ser. A verdade sobre o assunto é que a transição foi lenta porque o sistema não quer que ela aconteça. A pesquisa mostra que o maior obstáculo para o sucesso da energia limpa é a falta de vontade política e políticas adequadas, não é a tecnologia, nem os custos e nem a economia. Outra questão é que muitas vezes ouvimos pessoas discutir como consertar o sistema, o problema é que não há nada a consertar. O sistema capitalista e um dos seus pilares fundadores “os combustíveis fósseis” vem trabalhando da maneira como foi projectado e de forma muito eficiente em benefício de um pequeno grupo de elites. Não podemos esquecer o facto de que “apenas 8 homens possuem a mesma riqueza da metade do mundo” (relatório de Oxfam em 2017). Então, quando ouvimos as desculpas de que a energia solar é muito dispendiosa, não competitiva, não é confiável, não pode lidar com a grande demanda, etc, etc., por favor entenda que a pessoa ou não fez o seu trabalho de casa, ou adquiriu interesses em combustíveis fósseis, ou veio de um contexto energético de commodities da economia. No caso do último, podemos simpatizar, porque de relance, também nós subestimamos o poder da economia baseada na tecnologia.

Lembramo-nos de quando a rede celular estava a começar em Moçambique, simplesmente não conseguíamos entender como funcionaria, dado o custo super-alto para a instalação da rede, o custo dos telefonemas e o custo extremamente alto dos celulares, etc. Especialmente num país pobre como Moçambique, com um pequeno grupo de elites. O mercado parecia muito pequeno, mas quando soubemos que a estratégia também estava focada na população urbana de renda mais baixa e mesmo nas áreas rurais, ficamos ainda mais confusos sobre como poderia ser sustentável. Felizmente, aprendemos com um amigo que era um especialista em telecomunicações e tinha uma boa compreensão de como a economia baseada em tecnologia funciona, e quando essa pessoa nos explicou passo a passo, foi incrível entender como esses obstáculos seriam superados e foi a primeira vez que nos tornamos conscientes de quão sensíveis as economias baseadas em tecnologia são em relação ao aumento de demanda, à expansão maciça e aos avanços tecnológicos.

Para que a energia alternativa limpa tenha sucesso, precisamos que as pessoas tenham o conhecimento económico correcto em relação às diferenças únicas que a energia baseada em tecnologia traz, e se continuarmos a usar os especialistas que vêm de mentalidade suja e baseada em commodities, continuaremos a atrasar, a um custo enorme, a inevitabilidade e a necessidade de um futuro livre de carbono. Entendemos que o uso da palavra inevitável pode parecer forte para alguns, mas na verdade não é.

À medida que o custo da energia solar continua a diminuir, ela ganhará partes do mercado dos combustíveis fósseis. Em 42 das 50 maiores cidades dos EUA, a energia solar já é mais barata que a eletricidade da rede eléctrica (G. Jabusch 2015). O custo mais alto para menores retornos da exploração e extracção de novas reservas fósseis, a pressão para mitigar as mudanças climáticas, a diminuição dos subsídios e a absorção do custo associado aos numerosos impactos causados ​​pelos combustíveis fósseis, entre outras, são todas tendências que estão a ganhar apoio, e essas pressões irão mais cedo ou mais tarde estrangular esse monstro chamado combustíveis fósseis. Vamos ser humanos, dar a este monstro uma morte rápida e passar para um novo sistema de energia limpa, mas desta vez temos de ser também socialmente justos. Um tópico que abordaremos detalhadamente num dos nossos próximos artigos da nossa série sobre Boa Energia.

Rovuma: Mais GÁS para as Mudanças Climáticas

Nos últimos dias, em Moçambique e não só, ouvimos vários dos nossos governantes reproduzir fielmente em seus altifalantes o mesmo discurso sobre as suas certezas quanto à resolução de quase todos os problemas do país, em virtude dos negócios fechados no sector de exploração de Gás natural – o garante do desenvolvimento, segundo eles, a amputação ambiental da Bacia do Rovuma, dizemos nós. Estas negociatas fazem-se acompanhar por um slogan político que levanta várias questões: “Moçambique está de volta.”

De facto, o que os nossos governantes se esforçam por propalar é o hipotético crescimento económico que poderá advir da venda deste recurso, contudo, por exemplo, não falam dos seus reais impactos ambientais, que certamente irão pôr em causa o bem estar não-económico, sobretudo das pessoas directamente afectadas. A verdade é que além das possíveis mais-valias que o negócio do gás pode trazer, pouco se fala.

No entanto, no âmbito deste negócio, o verdadeiro papel das avaliações de impacto ambiental volta a ser colocado a nu: legitimar e nada mais.

Requisito obrigatório para a implementação de projectos como este, se estas avaliações fossem conduzidas de forma rigorosa, imparcial e como recomendam as regras (e Moçambique fosse um país sério, com governantes de facto comprometidos com um modelo de desenvolvimento sustentável e centrado nas pessoas), só pelos seus impactos ambientais, este projecto jamais seria aprovado. Sobretudo porque, tendo em conta que Moçambique é um dos países mais vulneráveis às mudanças climáticas, – cujo nível de vulnerabilidade já é exacerbado pela exploração de carvão mineral em Tete – este tipo de empreendimento coloca o país numa situação paradoxal: como se explica que um país altamente vulnerável, ao invés de contribuir para a solução, continue, de forma recorrente e orgulhosa, a contribuir “em nome do desenvolvimento” para agravar o problema?

E que desenvolvimento é esse, que contempla apenas o crescimento económico, remetendo para segundo plano o direito dos cidadãos em viver num ambiente são, com dignidade e saúde, entre outros direitos que constituem o bem estar não-económico da população?

De que vale crescer economicamente por via da destruição planetária? Uma vez destruído o planeta, onde e como usufruiremos dessa riqueza?

Ao longo dos últimos anos, – em virtude da crescente pressão no sentido de se abandonar o uso de combustíveis fósseis e, por essa via, se dar início ao necessário processo de transição energética – várias campanhas foram levadas a cabo para separar gás, de carvão e petróleo. Fazendo uso de falsas narrativas que retratam o gás como uma forma de energia alternativa e limpa, essas campanhas visam apagá-lo da infame lista dos combustíveis fósseis cujos impactos sobre o ambiente e o clima são desastrosos. Aliás, muitos decisores políticos e a grande indústria dependente de combustíveis fósseis, promovem o gás natural apelidando-o de “combustível-ponte”: um combustível de transição entre as tradicionais formas de energia (como o carvão) e as energias renováveis, até que estas possam ser implementadas em massa. Contudo, vários estudos expõem essa lógica como falaciosa porque, por um lado, o gás natural poderá estar a agravar a actual situação climática mais significativamente que o próprio carvão; e por outro, porque a possibilidade do gás poder vir a contribuir para a melhoria do acesso à energia eléctrica em Moçambique e/ou no continente é mínima.

Quando o gás natural é liquefeito (como se pretende fazer em Moçambique), à enorme quantidade de energia dispendida no processo – pois para ser liquefeito, o gás natural tem de ser arrefecido a temperaturas muito baixas (cerca de -162º Celsius[1]) e esse processo de liquefacção custa 10% da matéria-prima[2] – há que acrescentar ainda os custos ambientais do transporte, que são frequentemente omitidos. E porque o GNL, que precisa de ser mantido frio, é enviado longas distâncias, esses custos são significativos.

Todo o processo de extracção, liquefacção, transporte, re-gaseificação e combustão em usinas, é altamente dispendioso, tanto em termos de energia como de carbono. De acordo com um estudo conduzido pelo Departamento de Energia dos EUA (DOE), as emissões de gases de efeito de estufa atribuídas ao GNL são quase o dobro das emissões imputadas ao gás natural convencional.[3] Um outro estudo do DOE estima que o processo de liquefacção, transporte e re-gaseificação aumenta o ciclo de vida total de emissões de gases de efeito estufa da indústria de gás natural em 15%.[4] Um terceiro estudo, da Comissão Europeia, conclui que o GNL é pior para o clima do que o carvão.[5]

Um outro aspecto importante (e que tem sido igualmente ignorado) relativamente ao gás natural, é o facto do seu principal composto ser o metano, que constitui um poderoso e perigoso gás de efeito estufa. Apesar do poder nocivo do metano, os seus efeitos climáticos não têm sido devidamente contabilizados, o que significa que o impacto do gás natural no aquecimento global tem sido subestimado. Algumas estimativas colocam a taxa de vazamento do metano na fase de produção de petróleo e gás em 17%,[6] sendo que ainda mais metano se perde ao transportá-lo, normalmente por meio de gasodutos.[7] Essas fugas são omitidas e tratadas de forma leviana como forma de proteger os interesses económicos das grandes multinacionais que controlam o sector.

De acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o metano é um gás de efeito estufa 87 vezes mais potente que o dióxido de carbono num período de 20 anos.[8] Por força dos interesses em continuar a promover a exploração do gás natural, alguns dos estudos sobre os impactos do metano compreendem um período de 100 anos, o que não é adequado para se avaliarem os reais impactos do metano, nomeadamente quanto ao aquecimento global. O recomendável é que sejam considerados períodos de até 20 anos, pois estes reflectem mais fielmente o forte impacto do metano a curto prazo, uma vez que o seu tempo de vida na atmosfera é de cerca de 12 anos. Assim sendo, tendo em conta as exigências da ciência face à necessidade de reduzirmos significativamente a emissão de gases de efeito estufa durante a próxima década – de modo a limitarmos os impactos das mudanças climáticas – é imperativo que tomemos em conta o impacto a curto prazo do metano no aquecimento do planeta.

Ainda de acordo com estudos científicos, desta feita realizados pela Universidade de Cornell, num período de 20 anos, tanto o gás de xisto como o gás natural convencional apresentam um maior impacto climático do que o carvão ou o petróleo[9] – conclusão que, curiosamente, se baseia no facto do gás natural ser composto, em grande parte, por metano, que é muito mais eficaz na retenção de calor na atmosfera do que o dióxido de carbono. Ou seja, as emissões de metano, ainda que em pequenas quantidades, podem ter uma pegada climática superior às emissões de dióxido de carbono.

No caso específico do GNL, porque depois de liquefeito o gás é transportado, re-gaseificado, e novamente transportado ao seu destino final através de gasodutos ou de outros meios de transporte, o risco de perda de metano é ainda maior.

Outro estudo sobre metano e outros gases, realizado no estado do Colorado nos EUA, revela ainda outra problemática. A análise do estudo revelou que as empresas cobaia emitiam três vezes mais do que os seus relatórios mostravam.[10] Esta constatação levanta sérias perguntas quanto à idoneidade e à capacidade dos responsáveis por projectos em estimar correctamente e monitorar as emissões nos locais de extracção de gás natural, usinas e infra-estruturas relacionadas, assim como nos terminais de exportação de gás natural liquefeito.[11]

Resumidamente, mesmo considerando uma baixa taxa de vazamento, qualquer hipotético benefício para o clima, ao substituir o carvão pelo gás natural, acaba por ser contrabalançado, por um lado, pelas fugas de metano e, por outro, pela marginalização das energias renováveis.[12]

A exploração de gás natural levanta várias questões quanto à genuinidade do interesse manifestado em desenvolver o país com base num modelo sustentável; pois para que o país se possa desenvolver sustentadamente, é fundamental que se dêem passos largos no sentido de abandonar o modelo baseado em combustíveis fósseis, e que se abracem, de uma vez por todas, as energias limpas e renováveis. Até porque a promoção e o investimento em gás natural (como energia limpa), além de fraudulentos, acabam por constranger o financiamento/ promoção/ crescimento das fontes de energia renováveis.

Importa ainda mencionar que mesmo quando o gás natural deixa de ser extraído, os locais de extracção podem continuar a libertar metano, de forma significativa, por período indeterminado.

Um exemplo recente de alguns dos riscos associados ao gás natural, é o caso do enorme vazamento de gás natural que ocorreu há um ano, num armazenamento perto de Los Angeles, e que resultou na libertação de mais de 97.000 toneladas métricas de metano.[13] Durante o auge do vazamento, a quantidade de metano emitida diariamente foi equivalente a adicionar 7.000.000 de carros na estrada.[14] Esse único vazamento de gás foi a maior contribuição da Califórnia para as mudanças climáticas.[15] Além do seu impacto no clima, o vazamento também representou um risco de segurança grave, obrigando milhares de famílias próximas a serem evacuadas de suas casas, e levando o governador da Califórnia a declarar Estado de Emergência.[16]

Se este tipo de incidentes ocorre em países como os EUA, munidos de recursos, e profissionais experientes e competentes em todos os ramos, que garantias existem que não ocorrerão em países em desenvolvimento como Moçambique? Entre outros aspectos, a fragilidade que caracteriza as nossas instituições, bem como a nossa limitada capacidade técnico-profissional, logística e financeira para monitorar adequadamente projectos dessa magnitude, aliada ainda à complexidade do sector e às jogadas neoliberais dos barões do grande capital que o caracterizam, certamente não oferecem garantia alguma.

Mas, independentemente desta problemática socio-ambiental, será a exploração de gás natural um investimento inteligente? A verdade é que, num período em que o uso de carbono tem de ser limitado, projectos de grande capital como estes acarretam cada vez mais o risco de se tornarem em activos ociosos caso as suas emissões se tornem incompatíveis com os requisitos de redução de emissões estipulados. Até 2035, projecções indicam que 379 bilhões de dólares em novos investimentos em GNL tornar-se-ão incompatíveis com as reduções necessárias para evitarmos um aumento de temperatura média global de 2º Celsius – uma meta já perigosamente alta,[17] uma vez que a larga maioria da comunidade científica defende que esse aumento deveria ser mantido abaixo de 1,5º Celsius. Ou seja, um investimento em gás natural em Moçambique não só contribuiria para o agravamento das mudanças climáticas – um problema que promete vir a assolar-nos violentamente, mas também constituiria um investimento de risco face à actual conjuntura política em torno desta questão da redução de emissões.

[1] Joe Romm, Exporting Liquefied Natural Gas Is A Dreadful Idea For The Climate, Think Progress, Mar. 12, 2014, http://thinkprogress.org/climate/2014/03/12/3384911/exporting-lng-climate/

[2] U.S. Energy Information Agency, Effect of Increased Levels of Liquefied Natural Gas Exports on U.S. Energy Markets (2014), https://www.eia.gov/analysis/requests/fe/pdf/lng.pdf; Gwynne Taraska & Darryl Banks, The Climate Implications of U.S. Liquefied Natural Gas, or LNG, Exports (2014), https://cdn.americanprogress.org/wp-content/uploads/2014/08/TaraskaLNG_report.pdf. O estudo Taraska e Banks observou que o estudo Skone et al. de 2014 assumiu, incorretamente, uma taxa de vazamento muito baixa e, portanto, subestimou os impactos climáticos de GNL.

[3] Timothy J. Skone, Role of Alternative Energy Sources: Natural Gas Technology Assessment, DOE/NETL-2012/1539 (2012), http://www.netl.doe.gov/File%20Library/Research/Energy%20Analysis/Publications/DOE-NETL-2012-1539-NGTechAssess.pdf; Anthony Zammerilli et al., Environmental Impacts of Unconventional Natural Gas Development and Production, DOE/NETL-2014/1651 (2014), http://www.netl.doe.gov/File%20Library/Research/Oil-Gas/publications/NG_Literature_Review3_Post.pdf

[4] Timothy J. Skone et al., Life Cycle Greenhouse Gas Perspective on Exporting Liquefied Natural Gas from the United States, DOE/NETL-2014/1649 (2014), http://www.energy.gov/sites/prod/files/2014/05/f16/Life%20Cycle%20GHG%20Perspective%20Report.pdf

[5] B. Kavalov, H. Petri´c, & A. Georgakaki, Liquefied Natural Gas for Europe – Some Important Issues for Consideration (2009), http://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/bitstream/JRC47887/eur%2023818%20en.pdf

[6] Oliver Schneising et al., Remote Sensing of Fugitive Methane Emissions from Oil and Gas Production in North American Tight Geologic Formations, 2 Earth’s Future 548 (2014), http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/2014EF000265/pdf

[7] Kathryn McKaina et al., Methane Emissions from Natural Gas Infrastructure and Use in the Urban Region of Boston, Massachusetts, 112 Proc. Natural Acad. Sci. 1,941 (2015), http://www.pnas.org/content/112/7/1941.full.pdf

[8] IPCC, Working Group I Contribution to the IPCC Fifth Assessment Report Climate Change 2013: The Physical Science Basis (2013), http://www.climatechange2013.org/images/uploads/WGIAR5_WGI-12Doc2b_FinalDraft_All.pdf

[9]Robert W. Howarth, A Bridge to Nowhere: Methane Emissions and the Greenhouse Gas Footprint of Natural Gas, Energy Sci. & Eng’g (2014), http://www.eeb.cornell.edu/howarth/publications/Howarth_2014_ESE_methane_emissions.pdf; Robert W. Howarth, Renee Santoro & Anthony Ingraffea, Methane and the Greenhouse-Gas Footprint of Natural Gas from Shale Formations, Climactic Change (2011), http://www.acsf.cornell.edu/Assets/ACSF/docs/attachments/Howarth-EtAl-2011.pdf

[10] Gabrielle Pétron et al., A New Look at Methane and Nonmethane Hydrocarbon Emissions from Oil and Natural Gas Operations in the Colorado Denver-Julesburg Basin, 119 J. Geophysical Res.: Atmospheres 6,836 (2014), http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/2013JD021272/full

[11] Estas medições provavelmente nem sequer refletem adequadamente a extensão do vazamento de metano porque estes estudos são muitas vezes realizados com a cooperação da indústria, o que significa que eles são muitas vezes os locais com as mais baixas taxas de vazamento. .E.g., Press Release, Robert Howarth, Cornell University, Allen et al., Paper in the Proceedings of the National Academy of Sciences, Sept. 11, 2013, http://desmogblog.com/sites/beta.desmogblog.com/files/Howarth%20press%20release%20on%20Allen%20et%20al.%20PNAS.pdf

[12] Christine Shearer et al., The Effect of Natural Gas Supply on US Renewable Energy and CO2 Emissions, 9 Envtl. Res. Letters 1, http://iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/9/9/094008/pdf; Steven J. Davis & Christine Shearer, Climate Change: A Crack in the Natural-Gas Bridge, 514 Nature 436 (2014), http://www.nature.com/nature/journal/v514/n7523/full/nature13927.html; Haewon McJeon, Limited Impact on Decadal-Scale Climate Change from Increased Use of Natural Gas, 514 Nature 482 (2014), http://www.nature.com/nature/journal/v514/n7523/full/nature13837.html

[13] S. Conley et al., Methane Emissions from the 2015 Aliso Canyon Blowout in Los Angeles, CA, Sci. (2016), http://science.sciencemag.org/content/early/2016/02/25/science.aaf2348.full

[14] Suzanne Goldenberg, A Single Gas Well Leak is California’s Biggest Contributor to Climate Change, The Guardian, Jan. 5, 2016, http://www.theguardian.com/environment/2016/jan/05/aliso-canyon-leak-california-climate-change

[15] Id.

[16] Haya El Nasser, California Governor Declares State of Emergency at Gas Leak Site, Al Jazeera Am., Jan. 6, 2016, http://america.aljazeera.com/articles/2016/1/6/california-gov-jerry-brown-declares-emergency-at-gas-leak-site.html. Moradores se queixaram de sofrer sangramento nasal, dores de cabeça, náusea e vómito após o vazamento começou. Id.

[17] James Leaton et al., Carbon Supply Cost Curves: Evaluating Financial Risk to Gas Capital Expenditures 9 (2015), http://www.carbontracker.org/wp-content/uploads/2015/07/CTI-gas-report-Final-WEB.pdf

Bye bye Paris

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“A Justiça Ambiental e a Amigos da Terra Internacional condenam fortemente este acordo, considerando-o um acordo fraco que não conseguiu atingir a escala de acção necessária para prevenir perigosas mudanças climáticas.”

Comunicado da Justiça Ambiental e da Amigos da Terra Internacional, 21 de Abril de 2016

 

– O Rei vai nu! – gritam agora aqueles que, como nós, chamaram logo à partida a atenção, não só para a mediocridade das metas acordadas em Paris, mas também para o perigoso “cada um dá o que quer” estatuído no acordo pelas denominadas iNDC’s (pretendidas Contribuições Nacionalmente Determinadas).

Apesar de então a larga maioria dos seres pensantes do planeta estarem longe de imaginar que Trump – assumidamente um céptico quanto às mudanças climáticas e ao aquecimento global – seria eleito presidente dos EUA, o carácter “macio” do acordo de Paris já deixava adivinhar os dissabores e desilusões que, agora, a saída radical de cena dos norte americanos pode desencadear.

Ora, se como já aqui foi discutido no passado, alguns criam que o único ponto positivo do Acordo de Paris fora ao menos ter sido celebrado um acordo, a inoportuna retirada dos EUA pouco mais de um ano após ratificá-lo, vem – ao abanar violentamente os alicerces não só deste acordo, mas possivelmente até de quaisquer futuros acordos sobre o tema – provavelmente deitar por terra essa tese.  Mas ao menos Trump foi franco. Poderia ter feito uso da natureza quase facultativa do acordo e ter-se deixado estar na corda bamba sem “fazer ondas”, mas não, com a prepotência que o distingue, o Chefe de Estado dos EUA presenteou o planeta com uma decisão tão controversa quão irresponsável e francamente burra (ou “contrária à inteligência humana”, como de forma mais politicamente correcta a rotulou o Ministro do Ambiente do Japão).

Agora é esperar para ver quais serão as consequências. Publicamente, já diversos líderes e governos mundo afora pronunciaram o seu ultraje face à aparente insanidade de Trump, mas estamos convictos que dos bastidores políticos de várias nações do globo, outros loucos convenientemente se juntarão a Trump na trincheira da ignorância e da ganância.

Mas como também já aqui foi dito no passado, às vezes é preciso um louco para unir o mundo.

É este o caminho?

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Reclamações, queixas e lamúrias das mais variadas têm sido o prato forte dos moçambicanos… Há, sem dúvida, razões de sobra para todas e muitas mais, pois nunca estivemos tão mal servidos, tão mal conduzidos e tão mal representados em tantos aspectos. No entanto, não deixa de ser preocupante que estas reclamações se façam maioritariamente como tema de conversas informais enquanto esperamos o próximo chapa ou estamos na bicha do pão um pouco por toda a parte, mas poucas são feitas de forma a contribuir para uma mudança, para melhorias. Em eventos públicos sobre temas de interesse público (revisão de políticas e leis nacionais, conflitos de terra, futuro da agricultura camponesa face a esta crescente gana por mega soluções, a dívida “ilegal”) verifica-se cada vez menos interesse e participação dos cidadãos. Ou seja, temos cada vez menos “cabeças” a debater e decidir sobre os mais variados temas que nos afectam a todos.

Despretensiosamente, sem elaborar grande análise crítica sobre a questão e com base na mera observação enquanto participante, diria que integram estes encontros cada vez menos cidadãos e (em certa medida) organizações da sociedade civil, e cada vez mais plataformas e redes em sua substituição. E se, por um lado, é compreensível esse afastamento em função do sentimento de que de pouco serve a participação nesses eventos já com estratégias e políticas delineadas e prontas para consumir (e muitos deles realizados apenas para obter o “selo de participação pública”, para fazer de conta que existem processos democráticos no país e que os moçambicanos participam de facto nas discussões importantes sobre o futuro de Moçambique); por outro, este divórcio com estes processos, esta falta de interesse e esta falta de sentimento de dever, agravam as já tão gritantes situações que vivemos em Moçambique.

Igualmente preocupante é esta silenciosa transferência de responsabilidades das organizações da sociedade civil e dos cidadãos para as plataformas e redes, que obviamente não nos representam a todos e em muitos casos excluem deliberadamente os mais “confusos”, os “radicais”, ou aqueles que simplesmente não aceitam processos fantoche.

Para onde ruma este país?

Inúmeros estudos e experiências, realizados um pouco por todo o mundo, demonstram que muitas das escolhas e apostas que Moçambique tem feito para assegurar desenvolvimento não são as mais viáveis. Por exemplo, apesar da agricultura camponesa ser, sem dúvida, mais social, ambiental e economicamente sustentável, a nossa aposta continua a recair no agronegócio e em todos os impactos negativos que este traz. Outro exemplo são os corredores de desenvolvimento, que como a própria denominação indica são meros corredores onde se produzem e extraem todo o tipo de comodidades e recursos, na sua maioria para exportação, alheios às necessidades internas, à soberania alimentar…

É incompreensível que perante tantas evidências dos sérios impactos que muitas destas apostas trazem, o nosso governo continue a insistir que este é o caminho.

A Jindal e a sua comunidade cercada é o caminho?

A Vale e a eterna luta dos oleiros por justa compensação é o caminho?

O cada vez maior número de hidroeléctricas projectadas para o Zambeze e Púnguè (em detrimento dum sistema energético descentralizado, assente em energias renováveis e que almeje soberania energética), é o caminho?

O Prosavana e a imensa contestação dos seus supostos beneficiários, é o caminho?

A ocupação de terra fértil, outrora destinada à produção de alimentos, por plantações de pinheiros e eucaliptos da Portucel e Green Resources (num país onde o número de analfabetos continua a crescer) é o caminho? Num país com um índice de desnutrição infantil tão elevado como o nosso, compensará de facto utilizar a nossa terra fértil para “plantar papel” e deixá-lo competir directamente com a nossa produção de alimentos em troca de alguns postos de trabalho?

Estas e outras tantas escolhas, apesar de contestadas, avançam… Avançam enquanto protestamos em silêncio. Pois enquanto nos indignamos e nos recusamos a participar nessas tomadas de decisão (convictos de que não nos afectarão), elas vão sendo tomadas sem nós, supostamente por nós. Indiferentes, permitimos que, em nosso nome, escolhas lastimáveis e que comprometem o nosso futuro e o das gerações vindouras vão sendo feitas.

O Sequestro da Energia Renovável Africana

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Há alguns anos, em Dezembro de 2015, durante as negociações das Nações Unidas sobre as alterações climáticas em Paris, 55 líderes africanos lançaram a Iniciativa Africana para as Energias Renováveis (AREI, na sua sigla em Inglês). A iniciativa prometia seguir uma abordagem centrada nas pessoas para o desenvolvimento de energia renovável e trabalhos de acesso à energia em todo o nosso continente. Falava sobre direitos e equidade, muito importantes para o nosso contexto e para a justiça. Falava sobre posse comunitária e sobre o poder distribuído entre o povo africano, em ambos os sentidos da palavra ‘poder’. Exigia novas e adicionais energias renováveis para o nosso povo – não a dupla contagem de fundos para outros projectos. Era uma iniciativa africana e liderada por africanos.

O pessoal da JA! participou nas reuniões da AREI em Paris, em Dezembro de 2015, e em Marraquexe, em Novembro de 2016. A sociedade civil foi incluída no processo desde o início. Poderia isto tornar-se em algo que fosse motivo de orgulho para nós africanos? A AREI era uma abordagem única, num continente marcado pelo crescente desenvolvimento de energias sujas, – como o carvão, o petróleo, o gás e as grandes hidroeléctricas – onde é comum sacrificar o povo, matar a ecologia local, usurpar terras e destruir o clima, tudo ao mesmo tempo. A AREI colocou em vigor critérios fortes e importantes para evitar esses impactos terríveis e disse que os projectos não apoiariam combustíveis fósseis ou nucleares.

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A AREI realmente prometeu ser diferente. E esta promessa de seguir uma abordagem diferente, baseada nas pessoas, é realmente importante. Afasta-nos de uma abordagem de reparar o sistema, para uma abordagem de mudança de sistema, para mudar os princípios básicos que impulsionam como pensamos sobre a energia para as pessoas.

Em Paris, os países desenvolvidos avançaram com US$10 bilhões em promessas para apoiar esta iniciativa. Mas esses países realmente deixariam esta iniciativa sobreviver? Ou o dinheiro falaria mais alto? A resposta assustadora veio um pouco mais de um ano depois, e no início de Março de 2017, a AREI já estava em perigo.

O primeiro ataque veio da Comissão Europeia (CE) e do governo francês, que ajudou a nascer esta iniciativa nas negociações da ONU no seu país. Como foi o ataque? Eles apresentaram na reunião da directoria um plano para financiar 19 projectos de energia renovável com um investimento de estrondosos €4,8 bilhões. Mas quando algo parece bom demais para ser verdade, geralmente é porque assim é. O crédito de €4,8 bilhões é falso, eles estão a providenciar apenas €300 milhões e ainda esperam alavancar o resto. Não apenas isso, lembra-se do compromisso da AREI com projectos novos e adicionais com critérios fortes para prevenir injustiças ambientais? Bem, esses projectos propostos já existiam parcialmente, com todo o tipo de contagens duplas e contabilidades desonestas a ter lugar no financiamento. Alguns dos projectos – como é o caso de um projecto geotérmico na Etiópia – são de 2014, um ano antes da iniciativa da AREI ter sido finalizada. O pior de tudo é que esses projectos estão a ser explorados alheios a critérios e impactos. Os nossos colegas descobriram que pelo menos um desses projectos envolve interesses de combustíveis fósseis. Ouvimos também dizer que 14 desses projectos foram recentemente carimbados, embora 5 deles nem sequer tenham sido revistos por falta de tempo. Os princípios básicos da AREI foram os primeiros a ser atacados. Até a vaga noção de mudança de sistema é ameaçadora para o sistema.

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A sociedade civil africana começou a retaliar esta afronta. No início de Abril, a JA! juntou-se a mais de 180 organizações africanas que assinaram uma carta a exigir que este sequestro da AREI fosse revertido. Na semana passada, a 18 de Maio de 2017, nas negociações das Nações Unidas em Bona, 111 organizações internacionais fora de África publicaram uma carta de apoio às demandas africanas para que a CE e a França parassem o sequestro da energia renovável africana. A comunicação social deu considerável visibilidade ao assunto.

A CE sabe que está a ser vigiada e agora está com o pé atrás. Os nossos colegas europeus foram convidados a uma reunião com eles em Bona na semana passada, onde descobriram que a CE está a tentar seriamente controlar os danos. Eles estão chocados com a repercussão na imprensa e estão a tratar do assunto como um escândalo. Mas eles ainda não estão a dizer como tencionam fazer as coisas de forma diferente. Esta reunião teve lugar a 16 de Maio de 2017. Algumas pessoas da sociedade civil mais “convencional” – aqueles que acreditam em “reparar o sistema” – já queriam parar a carta internacional, uma vez que a CE estava a dialogar connosco. Outros, disseram que não a parariam de jeito nenhum, que a CE e a França precisavam de ser expostas e certificaram-se que a carta foi divulgada dois dias depois, antes do fecho das negociações de Bona. Veja aqui o comunicado de imprensa.